Cheguei a Buenos Aires no sábado dia 29 de Março, após uma tirada directa e cansativa de 12 horas dentro de um avião, algo que, para uma pessoa com o meu físico, é uma prova dura e difícil. Não há filmes, almofadas, livros ou boa companhia que nos salvem. É penoso - e é aguentar!
Quando chegámos ao hotel, percebi que tinha deixado o telemóvel dentro do carro, o que seria um começo de viagem auspicioso. Fruto de uma decisão racional, rápida e eficiente de alguém que não eu, telefonou-se para o meu próprio número de telefone: uma, duas, três vezes - uma eternidade... O motorista de táxi atendeu à quarta tentativa, e prontificou-se a deixar-me o equipamento no hotel dentro de 30 minutos. Assim foi. A viagem começava bem, depois de ter começado mal.
No dia seguinte fomos para a feira de San Telmo, uma espécie de feira da Ladra, feira de Sintra, mercado de antiguidades, onde comprei, por bom preço, dois artigos para uma colecção. De mochila bem protegida, já que havíamos sido alertados para os roubos, ando por ali, vendo, observando, ziguezagueando entre a multidão compacta. Sentamo-nos no interior de um café a beber uma "tirada" (a "imperial" dos argentinos) e a comer uns amendoins. Coloco a mochila debaixo da mesa, entre as minhas pernas. Há gente que entra e sai, que o dia é de movimento. Atendo uma chamada telefónica de Portugal que me ocupa exactamente 29 segundos. É nessa altura, estou certo, que a mochila me é roubada - há alguém que viu uma rapariga nova com uma criança de 8 ou 9 anos pela mão, a deambular por ali, junto às mesas. A minha mente estava formatada para me proteger de tentativas de roubo no exterior, onde há encontrões e apertos, não no interior de um estabelecimento de restauração.
Na esquadra da polícia, onde participo o roubo de várias coisas entre valioso e importante, mas de quase nenhum afecto, juntam-se na hora seguinte mais 6 ou 7 casais / famílias / agregados familiares vítimas de roubos semelhantes, ardilosos, em locais diversos da mesma feira. Depois, na meia hora seguinte, é a correria conjunta de pessoas disponíveis para bloquear cartões bancários, iniciar contactos para substituição do passaporte, minimizar a devassa dos meus ficheiros informáticos.
Há 40 anos que viajo e nunca fui roubado. Neste episódio não há só azar; há descuido da minha parte, excesso de confiança, pouca atenção naquilo com que se deve andar na rua. Também por isso os sentimentos que nos atravessam após um roubo desta dimensão são vários: desespero, irritação, ódio, frustração, fúria, esperança vã, sensação de impotência e de devassa da vida pessoal e profissional. Perdi coisas caras, coisas de que gostava, coisas que me fazem falta, coisas irrecuperáveis.
Como se mantém a alegria numa viagem que, ao segundo dia, já estava tingida desta forma? A companhia ajudou, é claro, como ajudou o exercício que consiste em transformar tudo em dinheiro, o que, por mais paradoxo que possa parecer, relativiza as coisas: é como se tudo se resumisse a uma linha num orçamento. Não há desespero, tristeza, frustração sentimento de perda: é apenas dinheiro. Dramas é outro campeonato.
Como se mantém a alegria numa viagem que começou assim? Trauteando com gosto o o tango cujo título encima este post. Tudo o resto, repito, é apenas dinheiro.
Mi Buenos Aires Querido
Cuando yo te vuelva a ver
No habrá más penas ni olvido
JdB
Esta magnifica reportagem inspirou-me a pensar na ideia de abandono mas em sinal contrário, aquele que cada um de nós fará das coisas que temos e que nos acompanham. O que «dirão» as nossas coisas quando nos perderem , quando desaparecermos, nós o seu insubstituível dono.
ResponderEliminarEm Buenos Aires as coisas deixaram-no orfão, mas é destino certo deixarmos um dia as nossas coisas orfãs.
O que serão elas sem mim... Olho o acervo de cosias que me rodeia e pergunto-me e depois de mim, o que serao, como serão.....
Não é morbidez, nem avareza, é poesia, é a vida : «Objets inanimés, avez-vous donc une âme qui s'attache à notre âme et la force d'aimer»