30 junho 2017

Textos dos dias que correm

A Inutilidade do Viajar

Que utilidade pode ter, para quem quer que seja, o simples facto de viajar? Não é isso que modera os prazeres, que refreia os desejos, que reprime a ira, que quebra os excessos das paixões eróticas, que, em suma, arranca os males que povoam a alma. Não faculta o discernimento nem dissipa o erro, apenas detém a atenção momentaneamente pelo atractivo da novidade, como a uma criança que pasma perante algo que nunca viu! Além disso, o contínuo movimento de um lado para o outro acentua a instabilidade (já de si considerável!) do espírito, tornando-o ainda mais inconstante e incapaz de se fixar. Os viajantes abandonam ainda com mais vontade os lugares que tanto desejavam visitar; atravessam-nos voando como aves, vão-se ainda mais depressa do que vieram. 

Viajar dá-nos a conhecer novas gentes, mostra-nos formações montanhosas desconhecidas, planícies habitualmente não visitadas, ou vales irrigados por nascentes inesgotáveis; proporciona-nos a observação de algum rio de características invulgares, como o Nilo extravasando com as cheias de Verão, o Tigre, que desaparece à nossa vista e faz debaixo de terra parte do seu curso, retomando mais longe o seu abundante caudal, ou ainda o Meandro, tema favorito das lucubrações dos poetas, contorcendo-se em incontáveis sinuosidades, fazendo incessantemente ainda mais um circuito antes de enfim descansar no leito de que se aproxima. 

Mas viajar não torna ninguém melhor de carácter nem mais são de espírito. Teremos de nos aplicar ao estudo, de frequentar os mestres da filosofia, a fim de assimilarmos os princípios já estabelecidos e investigar o que ainda está por descobrir. Só assim a alma se pode arrancar à mais dura servidão e alcançar a verdadeira liberdade. Enquanto ignorares a distinção entre o evitável e o desejável, o necessário e o supérfluo, o justo e o injusto, o moral e o imoral — nunca serás um viajante, mas apenas um ser à deriva.As tuas deambulações não te trarão qualquer proveito, já que viajas na companhia das tuas paixões, seguido sempre pelos males que te dominam. E bom era que estes males apenas te seguissem! Bom era que eles estivessem longe de ti! 

O que se passa, porém, é que os levas em cima, e não atrás de ti. Deste modo, onde quer que estejas, eles oprimem-te, destroem-te com a mesma virulência. Um doente precisa que se lhe indique um remédio, não um panorama. Se um homem parte uma perna ou faz uma entorse não vai pôr-se a passear de carro ou de barco: manda, sim, é chamar um médico que lhe ligue o membro partido ou ponha no seu lugar o osso deslocado. Ora bem: acaso pensas tu que uma alma quebrada ou torcida em tantos lugares pode tratar-se com uma simples mudança de ambiente? Não, esta doença é demasiado grave para curar-se com um passeio! A formação de um médico ou de um orador não se faz em viagem; a aprendizagem de qualquer arte não depende da geografia. 

Como pensar que a sabedoria, a mais importante das artes, se pode adquirir saltando daqui para acolá?! Podes crer que nenhuma viagem te põe ao abrigo do desejo, da ira, do medo; se tal fosse o caso, todo o género humano começaria em massa a viajar. Estes males não cessarão de atormentar-te, de desgastar-te ao longo das tuas viagens, terrestres ou marítimas, enquanto tiveres em ti as suas causas. Admiras-te que de nada valha fugir quando tens dentro de ti aquilo de que foges? 

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

29 junho 2017

Do silêncio

Tenho a certeza de que neste estabelecimento  já falei e voltei a falar sobre o tema do silêncio. O tema interessa-me sobremaneira, e tenho de encontrar uma forma de o abordar na minha tese de doutoramento. Afinal, a procura do silêncio pode ser uma forma de despojamento. Para além disso, ontem, no Observador, um psiquiatra escrevia sobre a escravatura do ruído moderno. 



O ambiente que envolve a casa onde estou de férias em França é de enorme silêncio. Não silêncio absoluto, tal como o senti em casa destes meus amigos, mas no campo inglês. Ali não se ouvia uma cigarra, uma cão a ladrar à noite, um comboio ao fundo ou uma motoreta. O silêncio era absoluto - e vagamente incomodativo. Aqui há, repito, um enorme silêncio: há cigarras, um carro a passar esporádico, o bater de asas de um pássaro. 



Entre o silêncio e o som não há incompatibilidade. Há sons que nos são familiares e agradáveis e que, por isso, não são ruído: a música que apreciamos, o vento a bater nas árvores ou as ondas alterosas a esmagarem-se contra um paredão, o lenha que arde numa lareira num contraponto ao temporal fora de casa, sons de passos nos claustros de um convento. Há sons, por mais pequenos que sejam, que não são mais do que ruído e que perturbam o silêncio em que queremos viver: as crianças dos outros que gritam, as pessoas que falam alto nas esplanadas, os murmúrios patetas face a um quadro bonito.



Não há silêncio sem som. E mesmo que se entenda que não há silêncio absoluto a não ser numa câmara anecóica, há um silêncio "humanamente" absoluto, que é o silêncio que eu encontrei no campo inglês de que falei. Todo o outro silêncio implica um som, para não se tornar cansativo como uma casa que só tem vista de mar - é preciso vista de terra para contrabalançar. 

Aqui, nestas terras de França, encontrei o mesmo silêncio confortável que consigo por vezes encontrar na zona onde vivo: um silêncio com som, que é o contrário do que o mundo moderno nos dá, e que é um constante ruído entremeado vagamente de silêncio; o tempo, no fundo, que o DJ precisa para mudar o disco com a música má que escolheu...

JdB 

Nota: fotografias da catedral de Condom, Gasconha, França    

28 junho 2017

Do campo francês

Regressei ao campo francês depois de duas curtas estadias: em 2002, no Club Med da Provence, e em 2007, numa viagem por alguns castelos do Loire. Agora estou numa zona diferente e, de caminho para uma pequena aldeia chamada Fleurence, olhei para tudo com mais atenção.



O que diferencia o campo francês do campo português, nomeadamente o do norte? Se eu quisesse fazer graça, diria que são as casas dos emigrantes. De facto, há por aqui emigração portuguesa – não só me dizem que há, o que é um bom indicador de que de facto há, como vi uma casa que ostentava à porta uma indicação, talvez em azulejo, com o o nome: “Le Portugues”. Mas o português aqui é imigrante e em Portugal é emigrante. E este simples letrinha no início da palavra marca toda a diferença. Aqui, o Sr. Silva constrói uma casa que se assemelha às dos outros franceses que por aqui vivem. Em Portugal, recheado de poupanças feitas ao longo de uma vida de trabalho árduo, o mesmo Sr. Silva constrói uma casa cujo figurino saiu da cabeça dele, não da Gasconha, onde estou agora e alguns desses senhores silvas viverão. O Sr. Silva goza, em Portugal, de uma liberdade que não goza aqui. Nesta zona, o Sr. Silva tem um gosto local. No norte de Portugal tem um gosto que sai de uma imaginação fértil e de uma vontade forte. Ser-se emigrante ou imigrante não é apenas uma questão de sair de ou de entrar em 



Este campo onde estou agora é muito bonito, suavemente ondulado, mais perto da planície alentejana do que da fraga beirã. Está bem arranjado, sugerindo trabalho, ocupação e aproveitamento. Não sei se é ilusão de óptica se resultado de uma Política Agrícola Comum que, dizem, foi toda construída para salvar a agricultura gaulesa à custa, entre outras, da portuguesa. As vilas estão muito bem arranjadas – lá está..., não há casa de emigrante. Os centros históricos bonitos, bem cuidados, com feiras de rua que também se vêem em qualquer localidade de Portugal: roupa, vegetais, plásticos, peças de joalharia caseira, sapatos a esmo. As praças, ocupadas, têm esplanadas onde um café e uma meia de leite custam 3,10€ - e não têm uma qualidade dupla que acompanhe o dobro do preço.



***

Ontem de tarde, após um calor que aumenta exponencialmente com o avançar do dia, e depois de uma trovoada seca, ruidosa e próxima, choveu durante breves horas. O ar fica mais limpo, mais fresco; cheira a terra molhada, a Outono, a dias que encurtam. É apenas uma ilusão, uma breve ilusão, porque o sol regressa (volta o sol e tu não voltas, cantará um fado) e com ele o calor, pese embora se diga que a temperatura vai baixar. Mas durante estas módicas mas caridosas horas, chega-nos a esperança de uma estação do ano que virá acompanhada de tréguas da canícula, de aromas de urze e de lama e, talvez, de um recolhimento de que todos precisamos, ainda que não o reconheçamos.


Estou num sítio bonito, com amigos, numas férias curtas, propositadamente curtas, onde a agitação física se faz de volta de um tacho, de um copo de vinho, de um livro e de uma conversa quase permanente em inglês. Este breve momento outonal foi quase redentor, como se ampliasse dentro de mim o desejo pacífico de me lembrar do que me faz falta: a minha geografia de espaços e de pessoas, as rotinas e os sons, o esvoaçar das borboletas.


JdB  

27 junho 2017

das invisíveis constelações *

(a todas aquelas e a todos aqueles que esperam)


quando cai a noite e é sexta-feira, os lobos, em alcateia,
sobem aos bairros - no singular -, à procura de um alvo
abstracto, de uma ideia de caça, da função instintiva que
sabem correr-lhes no sangue, desde que abriram os olhos.

como em tudo na natureza, há lobos solitários, afastados
pelos seus pares (ou que simplesmente se afastaram) desse
modo de vida ancestral, competitivo, talvez até banal,
no seu cortejo de tiques e rituais de quem treina o dente.

lembrei-me de ti, que provavelmente nem existes, quando
escrevia aquelas palavras ali de cima. lobos e homens são,
se pensarmos bem, uma e a mesma coisa - seres solitários
deitados à vida, sem clemência, orientação, guias práticos.

isto aplica-se, claro, também às raparigas. por isso, dizia,
me lembrei de ti. enfrascada em enciclopédias, enfiada decerto
em cinematecas reais ou inventadas, protegendo-te das coisas
do mundo, lutando impiedosamente contra o comando do destino.

há na resistência uma ética muito própria. um grito que perturba
os lobos, os homens, as mulheres, todos aqueles que preferiram(?)
deixar de lutar contra o sangue. estão no seu direito e talvez
venham a ser declarados vencedores, aos pontos, no ringue-mor.

admito que sim. contudo, concede-me a dúvida. deixa-me dizer-te
que prefiro, desde tenra idade, a solidão habitada por pontos
luminosos que é a tua. essa constelação de animais e de homens
e de raparigas solitárias que acendem cigarros frios contra os

céus nocturnos. estão em toda a parte: nas ruas por onde passo,
ao volante do carro; nas mesas das casas de pasto que subsistem;
nas últimas filas das salas de cinema; nalguns jardins matinais;
até sentados à mesma mesa que nós, escondidos do mundo e, creio,

de si próprios. nunca li "a balada do café triste",
mas uma coisa eu sei: há constelações invisíveis que nos fulminam,

tão extrema é a sua - a tua - a nossa

imperial beleza.

gi.

* publicado originalmente a 27 de Maio de 2011

26 junho 2017

Duas Últimas


Passo uns dias com amigos que têm uma casa em L'Isle Bouzon. Cheguei ontem, pelo que não vi nada, a não ser algumas coisas do caminho do aeroporto de Toulouse para o meu destino: campos bonitos, bem arranjados, localidades pequenas com um centro, uma igreja, um monumento qualquer que se destaca. O silêncio que por aqui se vive é quase absoluto. Não há um cão a ladrar, uma motoreta ao fundo, um comboio que apita na solidão da noite; apenas cigarras, que nos dão a certeza de que não estamos na eternidade.

Hoje deixo-vos com alguém cuja versão existência desconhecia, até os ver publicitado no placard de uma rotundo do Estoril. Cham-se "Deixem o pimba em paz", e dizem-me que têm alguma graça... Ouvi pouco e vale a pena tomar atenção. Há uma subtileza sobre a qual podemos meditar - nomeadamente "eu gosto de mamar nos peitos da cabritinha" em versão música de embalar.

JdB
   

25 junho 2017

XII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 10,26-33

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo, disse Jesus aos seus apóstolos:
“Não tenhais medo dos homens,
pois nada há encoberto que não venha a descobrir-se,
nada há oculto que não venha a conhecer-se.
O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia;
e o que escutais ao ouvido proclamai-o sobre os telhados.
Não temais os que matam o corpo,
mas não podem matar a alma.
Temei antes Aquele que pode lançar na geena a alma e o corpo.
Não se vendem dois passarinhos por uma moeda?
E nem um deles cairá por terra
sem consentimento do vosso Pai.
Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados.
Portanto, não temais:
valeis muito mais do que os passarinhos.
A todo aquele que se tiver declarado por Mim
diante dos homens
também Eu Me declararei por ele
diante do meu Pai que está nos Céus.
Mas àquele que me negar diante dos homens,
também Eu o negarei
diante do meu Pai que está nos Céus”.

24 junho 2017

Pensamentos Impensados

Cargos
Angola vai ter um presidente emérito; Portugal já teve o presidente Américo.

Show
Louis Armstrong vai patrocinar o espectáculo super boca super rouca.

Es...padeirada
Era uma padEira da família dos Alves Baeeosa.

Altos cargos
Deus é Ministro da Administração Eterna.

Botequins
Bares de alterne investigados pela Polícia de Meninas e Armadilhas.

Aberturas
Madrid  quer acabar com homens de pernas abertas nos transportes público.
Por cá, Marcelo deixa-se pintar de pernas abertas.

Escolhas
Deus não quis arriscar a que Adão morresse de parto, pois não haveria humanidade.

Atletismo
Pé de atleta pede atleta.

SdB (I)

23 junho 2017

Poemas dos dias que correm

Além-Tédio

Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, emfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A propria maravilha tinha côr!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tedio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'

***

Tédio

Sobre minh'alma, como sobre um trono,
Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, último outono,
Lançar-me as folhas últimas ao vento!

Oh! dormir no silêncio e no abandono,
Só, sem um sonho, sem um pensamento,
E, no letargo do aniquilamento,
Ter, ó pedra, a quietude do teu sono!

Oh! deixar de sonhar o que não vejo!
Ter o sangue gelado, e a carne fria!
E, de uma luz crepuscular velada,

Deixar a alma dormir sem um desejo,
Ampla, fúnebre, lúgubre, vazia
Como uma catedral abandonada!...

Olavo Bilac, in "Poesias"

22 junho 2017

Crónicas de um doutorando tardio - ofertas para o 1º semestre 2017 / 2018

A Recherche de Proust (João R. Figueiredo)

O seminário parte da afirmação de Proust, citada pela sua governanta, Céleste Albaret, de que Charlus/Montesquiou era “le noyau de [s]on affaire”. Indagando a centralidade absoluta que a "raça maldita" dos homossexuais ocupa na Recherche e o investimento literário do autor na caracterização trágico-cómica dos habitantes de Sodoma, o objectivo do seminário consiste em apresentar uma descrição unitária do romance que integre os vários temas (a memória, a percepção do tempo, o snobismo, o amor e o ciúme, a relação entre a vida e a arte, etc.) num todo orgânico regido por aquele núcleo. É requerida a leitura integral da Recherche numa língua qualquer.


Geografias literárias (Ângela Fernandes)

O objectivo do seminário será o de reflectir sobre os mecanismos conceptuais de identificação e delimitação seja de literaturas nacionais seja de campos de estudo seus conexos, prestando especial atenção à configuração histórica das áreas dos Estudos Hispânicos e dos Estudos Ibéricos.   O desafio radical à ideia de nacionalidade literária lançado por Ramón Gómez de la Serna em 1927 com a publicação de 6 falsas novelas repercute questões de diversa índole. Na sua época, a obra poderá ser entendida como elemento menor, mas não negligenciável, na discussão sobre os contornos das culturas hispânicas e ibéricas, tal como teorizadas por José Ortega y Gasset ou Fidelino de Figueiredo, entre outros. Já num contexto mais alargado, as novelas de Gómez de la Serna ocupam lugar proeminente numa linhagem de textos que manifestamente expõem a dimensão retórica de qualquer forma de geografia literária, e nesta linha procuraremos ler narrativas de Jorge Luis Borges, J.M. Coetzee ou Bernardo Carvalho.


Tempos Bíblicos (Teresa Bartolomei)

Ultrapassando a vulgata da simplificação que contrapõe o tempo cíclico da civilização greco-romana ao tempo linear judaico-cristão, o seminário propõe-se reconstruir a efectiva pluralidade de perspectivas temporais que articulam a exposição bíblica da experiência humana individual e colectiva, existencial e histórica: o tempo do profeta é diferente do tempo genealógico, o tempo criatural é diferente do tempo messiânico, o tempo da Lei é diferente do tempo da Graça.  Reconhecer esta variedade pode ajudar-nos a perceber melhor aspectos e momentos fulcrais da auto-representação do homem ocidental até à actual crise conjunta das noções básicas de humanidade e de história.  Uma etapa central da nossa exploração dos textos testamentários serão as cartas paulinas, em que encontramos uma explícita formulação e justificação desse pluralismo temporal: a radical contingência da condição humana consiste também no facto de não haver um tempo único, cognitivamente e praticamente ‘obrigatório’, mas uma constelação de dimensões  temporais diferentes, complementares apesar de parcialmente contraditórias, entre as quais é possível, e devido, escolher.


Ler Shakespeare (Maria Sequeira Mendes)

Apesar de, em Shakespeare, o Rei Hamlet ser a única personagem envenenada pela orelha, há muitas outras que sucumbem às insinuações ou às afirmações dos vilões, deixando que o ouvido as engane. Poder-se-ia até afirmar que as tragédias, e algumas comédias, ilustram variações no modo como cada personagem é influenciada pelo ouvido (Othello, Macbeth, King Lear, Richard II, Brutus, Benedict e Beatrice), aniquila outros com a sua retórica (Richard III), ou não se deixa manipular (Hamlet, Coriolanus, Cordelia). Neste seminário, lêem-se algumas peças de Shakespeare à luz destas variações.

21 junho 2017

Duas Últimas

Infelizmente, as boas notícias com que o País e a generalidade dos portugueses têm sido contemplados nos últimos tempos sofreram no passado fim-de-semana um forte, brutal, abalo.

Arrepiantes as imagens que nos foram sendo mostradas, naquelas noite e madrugada terríveis.

Não sendo ainda o tempo de procurar as explicações que a gravidade da situação exige, como bem sublinhou MRS, não posso no entanto deixar de pensar no que nos foi dado ver ou confirmar: a progressiva desertificação do interior, a escassez de hortas e pomares, que também serviam para criar distâncias de salvaguarda entre as casas e as matas, o excesso de eucaliptos, as florestas de "minifúndio" por limpar, a dificuldade dos bombeiros em se organizarem. Agravando de forma decisiva uma situação climatérica já de si extremamente adversa, como foi o caso.

Que o sucedido nos ajude a mudar. Também neste ranking temos de melhorar radicalmente. Estou convicto que o diagnóstico está feito, temos gente competente e com saber na matéria. Há que actuar, outros já o fizeram com sucesso (e coragem). Se continuarmos a adiar, qualquer dia o remédio será entregar o interior a quem queira tomar conta dele...

Vi grandes exemplos humanos nas reportagens televisivas. De homens mas sobretudo de mulheres, empenhadas com valentia na defesa dos seus - pessoas e bens - em cenário de pavor.

Dolores O' Riordan, vocalista dos Cranberries, também é uma mulher corajosa, defendendo com intransigência a sua Irlanda. Com uma voz forte e límpida, numa figura frágil na aparência.

Espero que também apreciem.

fq




20 junho 2017

Vai um gin do Peter’s?

No rescaldo da tragédia do incêndio que deflagrou neste Sábado, durante (talvez causado pel’) a trovoada seca, fica-se sem palavras.  O horror do número galopante de vítimas mortais, no interior do país, nem dá para acreditar. Pedrogão Grande está de luto e com ele todo o país.

É a hora do silêncio ou da música mais profunda, capaz de exprimir o que já não está ao alcance das palavras, depois de uma multidão ter sido devorada pelas chamas.

O pianista e compositor russo Rachmaninov (Rússia 1873-1943 EUA) – que foi aluno de outro génio da música, Tchaikovsky (Rússia 1840-1893) – escreveu concertos para piano e orquestra que elevam a dor a um patamar sagrado, onde o horizonte infinito desconhece os limites da condição terrena. Ainda que não ofereça a solução prática (e indispensável), pode ser consolador e, sobretudo, inspirador para quem enfrenta um desgosto, uma nova dificuldade. De facto, não há soluções que dispensem o envolvimento directo das pessoas atingidas.

Voltando a Rachmaninov: é consensual reconhecer que as suas árias estão impregnadas de espiritualidade. Segundo testemunha o violinista Gidon Kremer: «Entra-se num espaço espiritual onde cada emoção é permitida, mas a principal é familiar a todos e está ligada ao amor. (…) Tocar a sua música é como participar numa missa.» O próprio russo, marcado por uma vida bastante tormentosa, colocava o amor no âmago da expressão artística: «A poesia [como a música] nasce do coração e dirige-se ao coração. É amor. A poesia é irmã da música, e mãe do sofrimento».

Especificamente, o segundo andamento do célebre Concerto nº 2 para Piano, Op. 18, contém passagens de uma beleza, que nos lava por dentro. Profundamente libertador, foi alvo de adaptações posteriores. É o caso da composição do violinista judeu-austríaco Fritz Kreisler (1875-1962), que parte da peça do russo para a assumir como oração. Escolheu para título o termo italiano «Preghiera» reduzindo a orquestração portentosa do original a um trio virtuoso de violino, piano e violoncelo:



Claro que a obra de Rachmaninov não é menos intensa na sua riqueza polifónica, extremamente delicada e aqui magistralmente dirigida pelo maestro Claudio Abbado, com o solo do piano interpretado pela instrumentalista francesa, que também se dedicou à protecção dos lobos – Hélène Grimaud. São 11 minutos especiais:



Como diz uma outra oração de milénios anteriores: há uma hora para falar e outra para calar; uma hora para chorar e outra para rir; uma hora para lembrar e outra para esquecer. Também para Pedrogão Grande haverá um tempo para as lágrimas e outro para a reconstrução, sabendo que conta com um país a mobilizar-se para dar o melhor apoio. Aliás, não têm faltado gestos generosos e profissionais, inclusive vindos de outros países, para mitigar a violência inaudita deste incêndio, em território nacional.

O fogo mais mortífero das últimas décadas, agravado pela recusa de muita gente em abandonar a casa, apesar do perigo iminente, além dos c. 30  automobilistas apanhados numa via que se tornou num inferno. Um piloto, envolvido no combate aéreo, fala de uma junção terrífica e invulgar de fenómenos naturais: um relâmpago a atear as chamas, ventos de rajada a espalhá-las em todas as direcções e sequência de dias com temperaturas elevadíssimas.


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

19 junho 2017

Das épocas e dos refúgios

Sábado jantei em casa de amigos. Em conversa com alguém, vimos uma criança, de 8 anos, talvez, a brincar num baloiço: impulso de pernas para cá e para lá, e o baloiço cada vez mais alto. Esteve ali dez minutos, seguramente, naquele vaivém ligeiramente monótono, mas seguramente gerador de uma qualquer adrenalina infantil. Ao lado, num trampolim, outras crianças saltavam e brincavam. Mas foi na criança no baloiço que focámos a nossa atenção. 

"Sabes, tenho inveja daquela criança. E quase me apetecia dizer-lhe a ela, e às outras crianças, que percebo bem o gozo que elas estão a ter.". 

Já aqui escrevi o que me lembro da frase e já aqui redigi ideias sobre o tema em apreço: em momentos de maior tensão / preocupação / angústia / desgosto / apreensão, o refúgio de um Homem são as suas memórias. O meu interlocutor, face à pergunta sobre se era esta a idade na qual ele se "refugiaria", porque os 8 anos não me dizem nada em termos de memórias, disse que sim, que era aquela idade - e explicou porque não eram os 16, 17, 18 anos que são o meu refúgio. 

Não será, seguramente, um assunto de grande interesse para o comum dos mortais, mas a mim, que me interessam estas coisas do passado e das explicações sobre emoções, suscita-me interesse. Gosto de saber porque é a minha adolescência tão importante para mim, e gostei de perceber porque não era para este meu interlocutor, que por volta dessa idade já vivia bastante sozinho, qualquer que tenha sido o impacto disso na sua vida. 

Os tempos das memórias felizes dizem muito de nós. Só falta quem se interesse pelo tema...

JdB

PS: hoje seria dia de escrever sobre a tragédia que assola Pedrogão Grande. Falam-me de mensagens com apelos à oferta de bens, falam-se me mensagens com apelos à oração de Avé-Marias. Embora crente, sou mais levado, neste caso, pelo pragmatismo: os bombeiros precisam de água ou de compressas; as populações precisam de roupa, de comida, de ajuda financeira. Se ninguém der nada ninguém terá nada. Quanto ao apoio divino, ele é dado a cada pessoa individualmente, sendo que cabe a cada pessoa, na forma como encara a tragédia, "perceber" esse apoio. Admito que neste momento ninguém o perceba, porque talvez as energias estejam voltadas para o desespero e para a revolta. Tudo tem o seu tempo. Rezemos para que o tempo da bonança chegue o mais cedo possível ao coração de todas aquelas famílias dizimadas.    

18 junho 2017

11º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 9,36-10,8

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus, ao ver as multidões, encheu-Se de compaixão,
porque andavam fatigadas e abatidas,
como ovelhas sem pastor.
Jesus disse então aos seus discípulos:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao Senhor da seara
que mande trabalhadores para a sua seara».
Depois chamou a Si os seus doze discípulos
e deu-lhes poder de expulsar os espíritos impuros
e de curar todas as doenças e enfermidades.
São estes os nomes dos doze apóstolos:
primeiro, Simão, chamado Pedro, e André, seu irmão;
Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão;
Filipe e Bartolomeu; Tomé e Mateus, o publicano;
Tiago, filho de Alfeu, e Tadeu;
Simão, o Cananeu, e Judas Iscariotes, que foi quem O entregou.
Jesus enviou estes Doze, dando-lhes as seguintes instruções:
«Não sigais o caminho dos gentios,
nem entreis em cidade de samaritanos.
Ide primeiramente às ovelhas perdidas da casa de Israel.
Pelo caminho, proclamai que está perto o reino dos Céus.
Curai os enfermos, ressuscitai os mortos,
sarai os leprosos, expulsai os demónios.
Recebestes de graça, dai de graça».

17 junho 2017

Pensamentos Impensados

Politiquices
A política nos EUA vai uma grande Trump-alhada.

Beijos e abraços
Nove em cada dez estrelas (não desesperem) serão "afectadas" por Marcelo.

Arco-íris
A padeira de Aljubarrota está classificada na categoria das ultra-violentas.

Éden
Qualquer loja das Finanças é eu paraíso fiscal...para o respectivo Ministério.

Tombos
Quando Salazar tirou o curso, esqueceu-se de tirar a Cadeira da cadeira.

Grafias
Numa escala de 0 a 20, Saramago não tem pontuação.

Géneros
A fêmea do salpicão é a salpicadela.

Anexins
Quem conta um conto, é porque tem cinco euros.

SdB (I)

16 junho 2017

Notas dissonantes - Duas últimas

Há alturas em que gosto da ideia de nota dissonante, uma expressão que podia ser substituída pela ideia de incoerência sociológica, por exemplo. Eu explico: numa família de gente feia, há alguém que se destaca pela sua beleza. Há ali uma dissonância estranha, que podia ser ao contrário - a fealdade pontual no meio de uma beleza generalizada. O encanto manter-se-ia. Em Buenos Aires fui confrontado com este conceito mais do que uma vez, talvez porque estivesse mais atento, não sei porquê, talvez porque tenha conseguido explicar a ideia a um companheiro pontual de viagem de uma geração abaixo da minha. 

Na rua Caminito encontrei uma casal sentado à mesa numa esplanada. Ele era preto, ela era branca. Ambos estiveram o tempo todo de volta dos seus próprios telemóveis, nunca falando um com o outro. Passados 15 minutos, talvez, a artista que no restaurante cantava e dançava tango para os clientes veio buscá-lo para uma fotografia conjunta: a artista todo sensual e coleante e ele de chapéu de feltro debruçado sobre um olho, como se ambos fossem dançarinos locais. Mas ele era preto, e o tango é uma música de brancos, como há músicas de pretos, ou de chineses. Havia ali uma dissonância, como se víssemos um esquimó vestido de campino a dançar o fandango. 

Em San Telmo, no bairro onde fui roubado, o domingo é agitado de gente pelas ruas, pelas bancas, pelas esplanadas, pelos cafés ou pelos bancos de jardim. Não há sofisticação, elitismo, elegância fruto de casacos de peles bonitos ou de gente assumidamente milionária. E não obstante, no restaurante onde estávamos a beber umas tiradas e a comer amendoins com casca, um casal jovem bebia uma garrafa de Moet et Chandon, como se estivessem num hotel sofisticado de Paris.

Deixo-vos com Concha Buika em duas notas dissonantes: a cantar Jacques Brel e a cantar Carlos Gardel.

JdB




15 junho 2017

Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo

EVANGELHO – Jo 6, 51-58

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«Eu sou o pão vivo descido do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei de dar é a minha Carne
pela vida do mundo».
os judeus discutiam entre si:
«Como pode Ele dar-nos a sua Carne a comer?»
Jesus disse-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Se não comerdes a Carne do Filho do homem
e não beberdes o seu Sangue,
não tereis a vida em vós.
Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue
tem a vida eterna;
e Eu o ressuscitarei no último dia.
A minha Carne é verdadeira comida
e o meu Sangue é verdadeira bebida.
Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue
permanece em Mim, e Eu nele.
Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai,
também aquele que me come viverá por Mim.
Este é o pão que desceu do Céu;
não é como aquele que os vossos pais comeram, e morreram;
quem comer deste pão viverá eternamente».

***

Corpo de Deus: A carne humana, a vida de Jesus


A Igreja celebra esta quinta-feira a solenidade do Corpo de Deus, festa teológica e dogmática instituída no séc. XIII para afirmar a doutrina eucarística contra quantos a interpretavam de maneira não conforme à Igreja romana. O novo ordenamento litúrgico manteve essa festa, que se torna assim ocasião para compreender melhor o grande mistério da Eucaristia e para adorar o corpo e sangue do Senhor, esse corpo que Ele deu e esse sangue que derramou por toda a humanidade, amando-a até ao extremo.

O trecho do Evangelho segundo João proclamado na liturgia é extraído do capítulo 6, dedicado à narração da multiplicação dos pães, às palavras de Jesus que explicam esse acontecimento e depois respondem às perguntas e às contestações dos seus ouvintes. A perícope proclamada na missa (versículos 51 a 58) é breve mas muito densa, como emerge das cinco palavras que nela ocorrem várias vezes, como uma espécie de fio condutor: «comer», «beber/bebida», «carne», «sangue», «vida/viver».

Escutamos antes de tudo uma declaração de Jesus: «Eu sou o pão vivo, descido do Céu». Os ouvintes são remetidos por Jesus não para alguma coisa com carácter de extraordinário, de grandeza, de força, mas para a humilde realidade do pão que cada um come diariamente para se sustentar e que muitos têm de procurar, por vezes até mendigar na sua pobreza. O pão, esse alimento humilde e simples, mas que é o símbolo da vida, do alimento "necessário" para viver.

Jesus dirige-se precisamente a esta realidade necessária ao homem, mas simples e humilde, para revelar algo de si e para significar o dom de si mesmo a nós. Jesus diz que Ele mesmo é pão, um pão para a vida, um pão vivo que não vem dos homens, que os homens não podem dar a eles próprios, mas vem do Céu, de Deus. Um pão para a vida eterna, que é comunhão com Deus, vida para sempre com Deus, participação definitiva no seu amor.

No quarto Evangelho este pão, chamado nos sinóticos de «Corpo», é indicado como «carne», que no sentido bíblico não é a substância física do corpo humano, mas é a totalidade do ser vivo, a inteira pessoa humana. Toda a vida de Jesus está portanto no pão que Ele nos dá através da sua existência gasta no amor, oferecida através da morte na cruz e ressuscitada pelo Pai no poder do Espírito Santo. É por isso que Jesus diz: «Eu sou o pão vivo, descido do Céu. Se alguém comer deste pão viverá eternamente e o pão que Eu darei é a minha carne, dada para que o mundo viva».

São palavras que devemos contemplar, não explicar, porque não conseguimos compreendê-las em plenitude. Se nós queremos viver da vida verdadeira e plena, não só da nossa vida biológica que vai em direção à morte, devemos comer o pão que Jesus nos oferece, Ele próprio. Toda a sua vida, toda a sua ação, todas as suas palavras, do nascimento em Belém até à morte de cruz, tudo está enxertado na vida do Filho para sempre e para sempre no seio do Pai, e por isso é vida eterna que nos é oferecida, se estamos à procura, famintos dessa vida.

Atenção: esta vida não é só vida divina, em vista de uma divinização, mas é também e antes de tudo a vida humana de Jesus, a vida por Ele vivida na carne frágil e mortal que tinha assumido ao nascer da Virgem Maria. Essa vida humana vivida neste mundo por amor de nós, humanos, vida de um homem que a gastou, consumou até à morte de cruz, é para nós alimento de vida para sempre.

Pois bem, creio que esta festa nos consente, melhor, nos pede que aprofundemos tal realidade decisiva para nós, crentes cristãos. Nós vamos para Deus através de Jesus, «a imagem do Deus invisível»: narrando Deus com a sua vida, Jesus julgou todas as imagens e os rostos de Deus que os seres humanos fabricam com as próprias mãos, julgou todas as projeções humanas que muitas vezes atribuem a Deus o rosto de um Deus "perverso". Doravante o que de Deus pode ser conhecido e pregado é o que foi vivido e pregado por Jesus. Ora, se é verdade que para a fé dos cristãos é decisivo aderir a Jesus, é preciso no entanto entender bem as palavras: quando se diz "Jesus", estamos a referir-nos a um verdadeiro homem, débil, frágil e mortal como nós; um homem de carne, a sua carne que Ele nos dá. Um homem que nasceu, viveu e morreu como cada filho de Adão: "humanissimus", como gostavam de o definir os padres monásticos medievais.

Se portanto há um Deus, para nós, cristãos, é o Deus que deve ser conhecido, lido e "visto" na existência humana de Jesus de Nazaré. Por este motivo o cristianismo exige que Jesus seja conhecido através da sua vida narrada e testemunhada nos Evangelhos por parte de quem esteve envolvido na sua vida, os discípulos, tornados «servos da Palavra»; só através deste conhecimento poderemos também crer nele até o amar, até o confessar «Messias», «Senhor», «Filho de Deus», «Salvador», e assim chegar à fé em Deus, ao conhecimento do Deus vivo e verdadeiro.

Se, ao contrário, não se conhece a humanidade de Jesus, acaba-se - repito-o - por acreditar nele como numa realidade por nós imaginada e construída. É absolutamente necessário olhar para a sua existência humana quotidiana, encontrar nela a própria vida de Deus, ler nela a expressão cumprida de Deus, e, consequentemente, colher também os elementos "extraordinários" da sua vida, como signos, sinais capazes de orientar a nossa fé.

É por isso a sua forma de vida - a sua carne e o seu sangue, para o dizer com a página evangélica deste dia - que é Evangelho, boa notícia para sempre e para todos, enquanto que se se aclama Jesus como Deus sem o confessar «vindo na carne», acaba-se por o desnaturar. Aqui está a singularidade do cristianismo: Deus revelou-se em Jesus, fez-se conhecer na sua humanidade; Deus fez-se homem e a incarnação é a humanização de Deus. Sim, Jesus viveu a sua existência terrena como homem pobre e frágil, exatamente como os homens e as mulheres com quem entrava em relação; o Filho entrou na história como homem, plenamente homem: um homem capaz de fazer da sua vida uma obra-prima de amor. E é este amor, nada mais do que este amor recíproco, vivido e praticado a partir do seu exemplo, que Ele nos deixou como «mandamento novo», último e definitivo, como prática que nos permite sermos reconhecidos como seus discípulos e discípulas. (...)

Também nós, como os ouvintes judeus, estamos pelo menos perturbados pelas palavras de Jesus "remeditadas" e reditas pelo quarto Evangelho: como é possível que um homem nos dê a sua carne como alimento? É uma loucura! E todavia Jesus não tem medo de escandalizar com uma afirmação tão forte; aliás, ao comentá-la, torna-a ainda mais escandalosa: «Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis em vós a vida». Linguagem dura - como dirão desde logo muitos dos seus discípulos - mas com a qual Jesus procura revelar-nos que comer o pão eucarístico e beber o cálice da bênção é receber a realidade misteriosa (isto é, no mistério, no sacramento) de Cristo, humanidade transfigurada na ressurreição e vida divina do Filho no seio do Pai. Assim, na Eucaristia a vida de Cristo torna-se nossa vida e nós tornamo-nos corpo de Cristo, seus membros vivos, pelo mesmo sopro que é o Espírito Santo. Este é o "pão" que não se corrompe e nos faz viver para a vida eterna.

Não devemos, contudo, esquecê-lo: tudo isto vivemo-lo sacramentalmente, tendo diante de nós pão partido e vinho para beber. Mas o nosso olho, se é habilitado pelo Espírito Santo, discerne nesse pão e nesse vinho o corpo e sangue de Cristo. Deles nos alimentamos e eles, entrados em nós, no metabolismo eucarístico - contrário ao biológico - fazem-nos tornar corpo do Senhor. Este é o grande mistério que nós adoramos antes de tudo: «A palavra fez-se carne» em Jesus; a carne de Jesus fez-se pão, nosso alimento; o pão nosso alimento, que é Jesus com toda a sua vida, morte e ressurreição, dá-nos a vida eterna.


Enzo Bianchi
In "Monastero di Bose"
Trad. / edição: SNPC:
Publicado em 12.06.2017

14 junho 2017

Textos dos dias que correm

Coisas inúteis

D. R. 
«Ninguém se torna um grande homem se não tem a coragem de ignorar uma infinidade de coisas inúteis.» É de Carlo Dossi (1849-1910), autor esquecido, ainda que dotado de uma originalidade vivaz, que extraio a frase acima reproduzida.

São palavras úteis não tanto para exaltar os «grandes homens» (a expressão pode por vezes adquirir uma gradação irónica, porque talvez precisemos mais de homens normais), mas para apontar o dedo às «coisas inúteis».

É conhecida a história segundo a qual o filósofo grego Sócrates (séc. V a.C.) andava entre as bancas do mercado de Atenas para descobrir alegremente quantas coisas poderia dispensar.

Hoje, infelizmente, a publicidade marteladora, pronta a não deixar respirar na tentativa de nos enfiar um produto na boca, envolveu-nos numa rede inextricável de «coisas inúteis», de necessidade não necessária, de exigência infundada.

Torna-se, assim, difícil resistir à sedução da "inutilidade", do consumo, do desperdício, enquanto, paralelamente, se torna fácil ignorar a realidade profunda, íntima e bem mais necessária.

Há, por isso, de um lado uma paradoxal riqueza de coisas, e de outro uma igual desconcertante pobreza de espírito, de humanidade, de consciência, de inteligência.

Deste síndrome todos são algo afetados e - aqui tem razão Dossi com os seus «grandes homens - agora as pessoas mais aclamadas e celebradas são aquelas que mais possuem, ostentam, detêm, acumulando tesouros, bens e riquezas totalmente «inúteis» para a sua própria existência.


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In "Avvenire"
Trad. / edição: SNPC
Publicado (texto e fotografia) em 10.06.2017

13 junho 2017

Dia de Santo António



Passeio de Santo António

Saíra Santo António do convento,
A dar o seu passeio costumado
E a decorar, num tom rezado e lento,
Um cândido sermão sobre o pecado.

Andando, andando sempre, repetia
O divino sermão piedoso e brando,
E nem notou que a tarde esmorecia,
Que vinha a noite plácida baixando…

E andando, andando, viu-se num outeiro,
Com árvores e casas espalhadas,
Que ficava distante do mosteiro
Uma légua das fartas, das puxadas.

Surpreendido por se ver tão longe,
E fraco por haver andado tanto,
Sentou-se a descansar o bom do monge,
Com a resignação de quem é santo…

O luar, um luar claríssimo nasceu.
Num raio dessa linda claridade,
O Menino Jesus baixou do céu,
Pôs-se a brincar com o capuz do frade.

Perto, uma bica de água murmurante
Juntava o seu murmúrio ao dos pinhais.
Os rouxinóis ouviam-se distante.
O luar, mais alto, iluminava mais.
.
De braço dado, para a fonte, vinha
Um par de noivos todo satisfeito.
Ela trazia ao ombro a cantarinha,
Ele trazia… o coração no peito.

Sem suspeitarem de que alguém os visse,
Trocaram beijos ao luar tranquilo.
O Menino, porém, ouviu e disse:
- Ó Frei António, o que foi aquilo?…

O Santo, erguendo a manga de burel
Para tapar o noivo e a namorada,
Mentiu numa voz doce como o mel:
- Não sei o que fosse. Eu cá não ouvi nada…

Uma risada límpida, sonora,
Vibrou em notas de oiro no caminho.
- Ouviste, Frei António? Ouviste agora?
- Ouvi, Senhor, ouvi. É um passarinho.
.
- Tu não estás com a cabeça boa…
Um passarinho a cantar assim!…
E o pobre Santo António de Lisboa
Calou-se embaraçado, mas por fim,

Corado como as vestes dos cardeais,
Achou esta saída redentora:
- Se o Menino Jesus pergunta mais,
… Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!

Voltando-lhe a carinha contra a luz
E contra aquele amor sem casamento,
Pegou-lhe ao colo e acrescentou: - Jesus,
São horas… e abalaram pró convento.

Augusto Gil

12 junho 2017

Dos diálogos conjugais

Sabe, Jorge, o erro não é uma palavra com quatro letras apenas, como você o concebe. E não é, tão pouco, uma palavra  de utilização única, como se fosse um artigo descartável

Jorge olhou para a mulher e suspirou, porque o desalento e o amor podem surgir no mesmo fôlego, na mesma expiração de ar, na mesma manifestação física de um peito que sobre e desce ao ritmo do pulsar de um coração. Por isso o suspiro, feito papel de fantasia que embrulha amor e desalento.

Você acha que o erro é como o Everest para certas pessoas: sobe-se uma vez, está subido. Ou a ressaca para outras: tem-se uma vez, e não há vontade de repetir. Ou mesmo a pena capital: não há possibilidade de repetição. Mas o erro é uma constante, porque a melhoria é constante. Tem de haver aquele para que haja esta. 

Jorge fixou-lhe o semblante. Reconheceu que Carmo, a mulher, nunca fora bonita, mas era sensual, com uma sensualidade filha de gestos elegantes, de uma ligeira assimetria do nariz face à boca, de umas pernas discretas, de um cabelo forte, de um sorriso franco que lhe denunciava um fulgor que ele bem conhecia. Carmo não era bonita - era melhor. A beleza das mulheres estava sobrevalorizada, achava ele. Era um conceito datado, contemporâneo com a ideia de que os homens não sabiam tomar conta dos filhos, pelo que a paternidade se resumia à procriação e ao sustento. As mulheres queriam-se mães e queriam-se bonitas. A inteligência, a cultura, a rapidez de raciocínio, a ligação que se estabelece entre os vários saberes do mundo não eram, na altura, atributos femininos. Por isso, pensava Jorge, numa certa radicalidade de raciocínio a vaidade exclusivamente física era uma menorização da mulher. 

O Becket é que tinha razão, quando defendia a ideia de se tentar de novo, de falhar de novo, de falhar melhor. Você é um arrogante, talvez mesmo uma espécie de ingénuo, que é uma forma de arrogância da raça humana. Os erros não se evitam, repetem-se. A única coisa que podemos fazer é minorar-lhes o impacto.

Jorge olhou para trás, para a vida. Reviveu o desastre que a mulher tinha tido dois meses após terem casado, a ideia expressa pelo médico de que a sua sobrevivência tinha sido um verdadeiro milagre, a convicção da sogra, numa fé transbordante de exagero, de que tinha havido um milagre, os terços e as peregrinações e as novenas para agradecer o milagre. Milagre não era nada daquilo. Cada vez mais se convencia de que Deus, de certa forma, desconhecia o corpo das suas criaturas, só lhes conhecia a alma, porque a presença divina se revelava apenas ao nível do imaterial, não na cura dos ossos partidos ou na cicatrização das feridas pustulentas. 

Errar faz bem Jorge; reconhecer o erro faz ainda melhor; perdoar o erro é a cereja no topo do bolo. Gosto pouco dessa sua radicalidade pouco cristã.

Jorge viu-lhe a curva do nariz, a camisa ligeiramente decotada, as calças justas, uma madeixa de cabelo displicente. Imaginou-a sem o avental de cozinha com que estava agora; imaginou-a a despir-se lentamente, provocantemente, com uma sensualidade que eliminava o desejo de beleza. Olhou-lhe para as mãos, para os olhos amendoados com que fitava o coelho que, morto, cortado aos bocados e sujeito a uma marinada de três dias, aguardava o lume. E Jorge revelou-se prudentemente pessimista - Carmo não sabia cozinhar, nunca cozinhara um coelho. E o animal tinha sido morto por ele, com um tiro certeiro e indolor. Temeu o pior - temeu o fracasso culinário no qual o erro repetido, tão apregoado por Carmo, não tinha espaço. 

No fim da refeição olhou para ela e desejou-a; antes de a beijar teve tempo para lhe dizer: cale-se de uma vez por todas. Em culinária os erros não são admissíveis, porque são incorrigíveis - tudo o que se faça para emendar não é mais do que um retalho psotiço num tecido de luxo. E dê-me um beijo, porque me enganei na ideia dos milagres. O coelho está fantástico, e você  é péssima cozinheira.

JdB


11 junho 2017

Solenidade da Santíssima Trindade

EVANGELHO – Jo 3,16-18

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
disse Jesus a Nicodemos:
«Deus amou tanto o mundo
que entregou o seu Filho Unigénito,
para que todo o homem que acredita n’Ele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita n’Ele não é condenado,
mas quem não acredita n’Ele já está condenado,
porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus».

***

Os termos que Jesus escolhe para falar da Trindade (João 3, 16-18) são nomes de família, de afeto: Pai e Filho, nomes que abraçam, que se abraçam. Espírito é nome que diz respiração: cada vida volta a respirar quando se sabe acolhida, tomada de cuidado, abraçada.

No princípio de tudo é colocada uma relação, um laço. E se nós somos feitos à sua imagem e semelhança, então a narrativa de Deus é ao mesmo tempo narrativa do ser humano, e o dogma não permanece uma doutrina fria, mas traz-me toda uma sabedoria do viver.

Coração de Deus e do ser humano é a relação: é por isso que a solidão me pesa e atemoriza, porque é contra a minha natureza. É por isso que quando amo ou encontro amizade fico bem, porque sou de novo à imagem da Trindade.

Na Trindade é colocado o espelho do nosso coração profundo e do sentido último do universo. No princípio e no fim, origem e cume do humano e do divino, está o laço de comunhão.

Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho... Nestas palavras João encerra o porquê último da incarnação, da cruz, da salvação: assegura-nos que Deus na eternidade não faz outra coisa senão considerar cada homem e cada mulher mais importante que Ele próprio. Deus amou tanto... E nós, criados à sua imagem, «precisamos de muito amor para viver bem» (Jacques Maritain).

Que nos deu o seu Filho: no Evangelho o verbo amar traduz-se sempre com um outro verbo concreto, prático, forte, o verbo dar (não há maior amor do que dar a própria vida). Amar não é um facto sentimental, não equivale e emocionar-se ou a enternecer-se, mas a dar, um verbo de mãos e de gestos.

Deus não enviou o Filho para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo. Salvo do único grande pecado: o desamor. Jesus é o curador do desamor (V. Fasser). O que explica toda a história de Jesus, o que justifica a cruz e a Páscoa não é o pecado do homem, mas o amor pelo homem; não algo a tirar à nossa vida, mas algo a acrescentar: porque quem quer que acredite tenha mais vida.

Deus amou tanto o mundo... E não apenas os seres humanos, mas o mundo inteiro, terra e colheitas, plantas e animais. E se Ele o amou, também eu quero amá-lo, cuidá-lo e cultivá-lo, com toda a sua riqueza e beleza, e trabalhar para que a vida floresça em todas as suas formas, e narre Deus como fragmento da sua Palavra. O mundo é o grande jardim de Deus e nós somos os seus pequenos "jardineiros planetários".

Diante da Trindade sinto-me pequeno mas abraçado, como um bebé: abraçado dentro de um vento em que navega toda a criação e que tem por nome amor.


Ermes Ronchi 
In "Avvenire" 
Trad.: SNPC 

10 junho 2017

Pensamentos Impensados

Ocupação de tempos
Marcelo não deve ter muito que fazer; só assim se percebe que tenha tempo para passarinhar por tudo o que é sítio.
Assim sendo, o que terá feito Cavaco nos 10 anos que passou encafuado em Belém?
Sestas prolongadas? Meter açorda dentro de carcaças? Coleccionar botões de ceroula?

Sobejos
As fezes são desperdício alimentar.

Bancos-tripeças
Foi pena ninguém ter-me dito que banco Popular estava à venda por 1 euro; teria dado o dobro.

Vai chamar pai a outro
Como se chamaram os filhos do Pai Natal? E a mulher? Incógnitas que cheiram a pouca vergonha.

Orações
Adão perguntou a Deus se tinha de rezar pelas almas do Purgatório.

Diferenças
Não confundir vírus do Nilo com Vénus de Milo.

Linguajares
Se for homem diz I miss you.
Se for mulher diz I mister you.

Maus costumes
A corrupção é uma espécie em vias de extensão.

SdB (I)

09 junho 2017

Textos dos dias que correm

A viagem, síntese da vida cristã

O tempo constitui fundamentalmente uma espécie de coreografia interior. Dir-se-ia que a própria vida nos solicita a que a escutemos de um outro modo. É com este imperativo que cada um de nós é chamado a confrontar-se: a irresistível necessidade de reencontrar a vida na sua forma pura. Por exemplo: se a linha azul do mar nos seduz tanto, é também porque esta imensidão nos recorda o nosso verdadeiro horizonte; se subimos às altas montanhas, é porque na visão clara de cima se alcança do real, nessa visão luminosa e sem cesuras reconhecemos uma parte importante de um apelo mais íntimo; se vamos à procura de outras cidades (e, nessas cidades, de uma imagem, de um fragmento de beleza, de um não sei quê...), é também porque estamos em busca de uma geografia interior; se simplesmente nos concedemos uma experiência do tempo dilatada (refeições tomadas sem pressa, conversas que se prolongam, visitas e encontros), é porque a gratuidade, e só essa, nos dá o sabor prolongado da própria existência.

Tomemos esse verbo cunhado por Rainer Maria Rilke que diz: «Espero o verão como quem espera uma outra vida». Este verso não nos projeta para fora de nós, antes inicia-nos na arte da imersão interior. Verdadeiramente durante os longos invernos do tempo não é uma vida estranha e fantasiosa aquela que devemos esperar (e para a qual trabalhar!), mas uma vida que realmente nos pertença. É de um verão assim que Rilke fala, e que pode coincidir com qualquer estação: uma necessária oportunidade para nos imergirmos mais a fundo, mais dentro, mais alto, aceitando o risco de colher a vida integralmente e dela nos espantarmos. Na escassez e na plenitude, na dolorosa imprevisibilidade como na sabedoria confiante. Pensemos na proposta que, mais de uma vez, Jesus faz aos discípulos: «Passemos à outra margem» (Marcos 4, 35). Passar à outra margem não significa necessariamente a transferência para outro lugar, diferente daquele em que nos encontramos.

Às vezes, tudo o que nos é preciso é habitar a vida de um outro modo. É simplesmente caminhar com um outro passo nas estradas que já percorremos a cada dia. É abrir a janela quotidiana, mas lentamente, nas consciência de que estamos a abrir. É reaprender uma outra qualidade para uma quotidianidade talvez demasiado abandonada às rotinas e aos seus automatismos. É, no fundo, saborear o gosto das coisas mais simples. Podemos fazer uma viagem inesquecível, fascinados pelo sabor do instante presente, pela contemplação da paisagem que nos é mais próxima, da sabedoria de uma conversa, do silêncio de um livro que já temos entre as mãos. Pensemos no que escreve Marcel Proust: «Talvez não haja na nossa infância dias que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que passámos com um livro predileto». Que desafio, esta noção de «dias plenamente vividos», e como nos é necessário avizinharmo-nos dela! «Passemos à outra margem.» As viagens não são só exteriores. Não é simplesmente na cartografia do mundo que o homem viaja. Fazer uma deslocação comporta uma mudança de posição, uma maturação do olhar, abertura ao novo, uma adaptação a realidades e linguagens, um confronto, um diálogo, inquietante ou encantado, que necessariamente deixa impressões muito profundas. A experiência da viagem é experiência da fronteira e de novos espaços, de que o homem tem necessidade para ser ele próprio. «Passemos à outra margem.»

A viagem é uma etapa fundamental na descoberta e na construção de nós mesmos e do mundo. É a nossa consciência que caminha, descobre cada detalhe do mundo e tudo olha de novo como se fosse a primeira vez. A viagem é uma espécie de motor desse olhar novo. Por isso é capaz de introduzir na nossa vida e nos seus esquemas, na sua organização, elementos sempre inéditos que podem operar essa recontextualização radical que, com um vocabulário cristão, chamamos "conversão". Muitas mudanças de paradigma epocais (também eclesiais) tiveram a ver precisamente com a aceitação de um olhar viajante sobre o nosso mundo habitual e as suas convenções. O escritor Bruce Chatwin utiliza, a esse respeito, a expressão «alternativa nómada», expressão secularizada mas que pode bem ser reconduzida ao campo teológico e bíblico.

Abraão é um errante. Moisés descobre a sua vocação e missão como mandato de itinerância. Muitos dos profetas de Israel, de Elias a Jonas, viveram como exilados e proscritos. Jesus não tinha onde pousar a cabeça e habitava, dando-lhe sentido, um trânsito permanente. Os seus discípulos são convidados aos quatros cantos da Terra. O cristianismo define-se assim através de uma extraterritorialidade simbólica, sem cidade e sem morada, que permite a fenda, a abertura à revelação de um sentido maior. «Passemos à outra margem», propõe-nos Jesus.


José Tolentino Mendonça 
In "Avvenire" 
Trad.: SNPC 

08 junho 2017

Poemas dos dias que correm

A propósito dos 150 anos que passam sobre o nascimento do poeta e de uma conferência a que assisti ontem, a seu respeito.

***

Inscrição 

Eu vi a luz num país perdido.
A minha alma é lânguida e inerme.
Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

***

Imagens que Passais pela Retina

Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
_ Porque ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
_ O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
_ Estranha sombra em movimentos vãos.


Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

***

Poema Final

Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
_ Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias,
No limbo onde esperais a luz que vos batize,
As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.
Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,
Adormecei. Não suspireis. Não respireis.

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

***

07 junho 2017

Vai um gin do Peter’s?

Na continuação do gin de 24 de Maio, sobre as ligações dos Papas e da história dos século XX e XXI às aparições de Fátima, retoma-se a viagem no tempo recuando ao Papa que sucedeu a Paulo VI, conhecido pelo seu mini-pontificado: 

Em 1977, um ano antes de ser sagrado como Papa João Paulo I, o então Patriarca de Veneza peregrinou até Fátima e teve uma longuíssima conversa com a Irmã Lúcia, no Carmelo de Coimbra, num encontro organizado por Olga de Cadaval (ref. num artigo (1) de José Maria André - http://o-povo.blogspot.pt/2017/05/fatima-2017.html) . Com humor, o secretário do então Cardeal citou-lhe estas palavras sobre a visita à vidente: «Sim, sim, estive com [a Irmã Lúcia]... Ah! esta freirinha bendita pegou-me nas mãos e começou a falar... estas benditas freiras, quando começam a falar, não acabam!» Num artigo que fez publicar na imprensa veneziana, defendeu que a principal missão dos santuários marianos era lembrar o Evangelho.

A 25 de Março de 1984, João Paulo II consagrou a humanidade e, em especial a Rússia, ao Imaculado Coração de Maria, cumprindo à risca os termos indicados por Nossa Senhora, em Fátima, que prometeu conceder um período de paz e o fim do império leninista-marxista, sem guerra. Unido aos bispos de todo o mundo, foi diante da imagem da Cova de Iria, trazida para a Praça de S.Pedro, que o Papa quis consumar a consagração, logo reconhecida pela Irmã Lúcia como tendo cumprido as prescrições recebidas em 1917. Nem um ano depois, começavam as reformas no Kremlin – a «glasnost» e a «perestroika» – que levaram à dissolução pacífica do colosso soviético, ecoando pelos países da Cortina de Ferro como um grito de liberdade. Dias depois da derrocada comunista na Checoslováquia, a 1 de Janeiro de 1990, a multidão imensa reunida na praça Venceslau (Praga) comemorou o fim do domínio russo ao som da Nona de Beethoven! Os estudantes distribuíram folhas-volantes com a letra do Hino da Alegria, em versão checa e alemã, para todos poderem entoar aquele último andamento reconciliador. Tudo se precipitara a partir do fim de Outubro de 1989, pondo em marcha a famosa «Revolução de Veludo», que culminara com a eleição do talentoso escritor e humanista Vaclav Havel como presidente. O lema da revolução, alimentada pelos estudantes e liderada por Havel, parecia inspirado em Fátima: «O amor e a verdade devem vencer a mentira e o ódio». 

A 9 de Maio de 1985, o Presidente dos EUA fez um discurso enigmático na Assembleia da República Portuguesa, onde enalteceu as três criancinhas que pastoreavam o seu rebanho na Loca do Cabeço, no primeiro quartel do século XX. Considerava-os campeões da frente de batalha mais difícil para a América do Norte: com a URSS. Sublinhou ainda o poder superior de Portugal, assente na força espiritual. Mais: disse que contava aprender com os portugueses sobre o poder que fica para a história! Elogiou ainda o seu grande aliado na luta anti-comunista – o Papa polaco. Uma mensagem marcante, mas bastante ignorada: 

«Quando me encontrei com o Papa João Paulo II, no ano passado, no Alasca, agradeci-lhe pela sua vida e pelo seu apostolado. Atrevi-me a sugerir que o exemplo de homens como ele e nas orações de pessoas simples em todo o mundo, pessoas simples como os pastorinhos de Fátima, reside mais poder do que em todos os grandes exércitos e estadistas do mundo. (…) Isto também é algo que os portugueses podem ensinar ao mundo. Porque a grandeza da vossa nação, como a de qualquer nação, reside no vosso povo. Pode ser vista no seu dia-a-dia, nas suas comunidades e vilas, e sobretudo nas igrejas simples que pontuam a vossa terra e que dão testemunho de uma fé que justifica todas as reivindicações de dignidade e liberdade dos homens. Digo-vos que é aqui que está o poder, aqui se encontra a realização final do sentido da vida e do propósito da história e aqui se encontra a fundação para uma ideia revolucionária – a ideia de que os homens têm o direito de determinar o seu próprio destino.»(3)  

A 13 de Maio de 1992, o Núncio Apostólico em Buenos Aires telefonou ao Pe. Bergoglio a pedir-lhe que o fosse esperar ao aeroporto para lhe comunicar, com máxima discrição, que João Paulo II o nomeara bispo. Segunda curiosidade: este dado só saiu a público há dias, no voo de regresso do Papa a Roma, quando a jornalista argentina Elisabetta Piqué o interpelou (2): «Hoje é o centenário da aparição de Nossa Senhora de Fátima, mas é também o aniversário de um acontecimento importante na sua vida, há 25 anos, quando o Núncio lhe disse que seria Bispo Auxiliar...». Francisco assume que só em 2017, aos pés da Imagem, reparara na coincidência: – «As mulheres sabem tudo! Não tinha reparado na coincidência; só ontem, quando rezava diante de Nossa Senhora, me dei conta de que recebi o telefonema do Núncio há 25 anos. Bem. Não sei... exclamei «ena!»... E falei com Nossa Senhora um pouco sobre isto, pedi-lhe perdão pelos meus erros, falei também um pouco dos erros de “casting” nas pessoas que escolhe... – (o Papa voltou a rir) – Foi ontem que me dei conta.»

A 13 de Maio de 2010, foi a vez de Fátima receber o Papa Bento XVI, que confidenciou ao seu antigo aluno, a concelebrar ao seu lado como bispo de Leiria-Fátima, a impressionante força daquele Santuário: «não há nada como Fátima em toda a Igreja Católica no mundo».

Em poucos anos de pontificado, o Papa Francisco já pediu várias vezes para receber a Imagem da Cova de Iria no Vaticano. 

Uma veterana das visitas ao Vaticano, desde os anos 80 do século passado. 

No centenário das aparições, Francisco quis peregrinar até à Cova de Iria para encomendar à Virgem os sofrimentos da humanidade e a homenagear com a mais alta distinção da Santa Sé – a rosa de ouro. Lembrou-nos: «Por Maria, vem-nos essa misericórdia [citando Paulo VI]: – Sempre que olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da ternura e do carinho. Nela vemos que a humildade e a ternura não são virtudes dos fracos, mas dos fortes (...). Esta dinâmica de justiça e de ternura, de contemplação e de caminho ao encontro dos outros é aquilo que faz d’Ela um modelo eclesial para a evangelização». 

Logo à chegada à Capelinha, na tarde de 12 de Maio de 2017, a deposição da rosa de ouro.

A visita do Papa a Portugal foi o acontecimento mais noticiado do mundo, no período de 12 a 14 de Maio, segundo a empresa Cision, especializada na análise dos media. Envolveu mais de 120.000 meios noticiosos online, em 190 países, para além do mediatismo óbvio em Portugal. No nosso país deu também pretexto à composição de um hino específico, com letra (4) do padre-poeta Tolentino Mendonça e música de João Gil: 


Num flash-back até ao século XV, é premonitória a tela do pintor de Bruges – Petrus Christus (1410-1475), seguidor de Van Dick, a propor a oração do terço. Também aqui Maria aparece numa azinheira, emoldurada por um entrelaçado de ramos nus. Ao longo dos séculos, a apresentação de Nossa Senhora junto à azinheira surge em várias telas, sendo esta a mais expressiva. A copa de hastes forma uma coroa de espinhos, evocativa da paixão que o Bebé ao colo da Mãe irá assumir para salvar o género humano e o reconduzir ao jardim do paraíso. Tornou-se, por isso, a verdadeira árvore da Vida.

«Senhora da árvore seca» (det.) | Petrus Christus | 1462-65 | 
Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid, Espanha.  Invulgar a acumulação de cores no manto de Maria,
a frisar a sua missão de medianeira entre o céu (azul)  e a terra (verde), através da Paixão (escarlate).


Na tradição helénica, a azinheira simbolizava desventura, por causa das copas de ramagens verdes, que tornavam os bosques impenetráveis e sombrios, ganhando má reputação. Foi o cristianismo que a reabilitou, pelo seu papel na salvação da humanidade. Conta-se que, logo após a condenação de Cristo à morte, todas as árvores se recusaram a oferecer a sua madeira para fabricar a cruz. Aos golpes dos lenhadores, desfaziam-se em pedaços, sabotando o trabalho de marcenaria. Só a azinheira teria pressentido a importância da crucifixão para redimir o mundo e o libertar do grilhão da morte eterna. Por isso, a escolha da azinheira para aparecer às três crianças, em 1917, reforça o sentido salvífico da mensagem de Maria, colaborando com o Filho. 

Porém, a alusão mais directa à mensagem de Fátima reside nas 15 letras suspensas dos ramos secos da azinheira do pintor flamengo, a enunciar as 150 Avé-Marias que compõem o Rosário. A tela de P.Christus (1462-65), exposta no fantástico Museu Thyssen de Madrid, foi visionária para a época, antecipando-se em 10 anos a difusão da oração do rosário na Europa (1475). 

Curiosas as intercepções da história, como esta que aproxima um discípulo de Van Dick de uma mensagem de séculos posteriores. O segredo estará na partilha da mesma devoção mariana. Talvez o poema do hino composto para acolher Francisco, em Portugal, explique esta afinidade que aguenta incólume a passagem do tempo. Aliás, reforça-a: «Sei que Maria nos abre caminhos/ a certeza de / não estarmos sozinhos / Quando pesava a noite sem fim / seu olhar / acendeu Deus em mim (…) Com Maria, tu sabes que estás / No caminho da esperança e da paz.»

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1)    O terceiro do conjunto da autoria de JMA, intitulado  «Ensinar os Papas».
(2) Citado no artigo de José Maria André – «As mulheres sabem tudo!» disponível em http://o-povo.blogspot.pt/2017/05/fatima-2017.html ou http://spedeus.blogspot.pt/2017/05/as-mulheres-sabem-tudo.html .
(3)   A história do discurso foi revelada pelo historiador Paul Kengor, na revista Crisis, recordando que o principal redactor da Casa Branca era Tony Dolan – católico conhecedor das aparições. Dolan tinha-lhe dito que «[Reagan] sabia de Fátima [que] era uma parte importante do movimento anticomunista. (…) e, para além disso, ele tinha uma vertente mística muito forte.». Aliás, este interesse de Reagan reacendeu-se, em 1987, nos preparativos da sua visita ao Vaticano. Foi o embaixador dos EUA junto da Santa Sé, Frank Shakespeare (que tinha estado colocado em Lisboa), quem o “briefou”, confirmando a Kengor: «Falei com Reagan sobre Fátima na viagem, tanto no avião como no carro. E ele escutou com muita, muita atenção – (…) estava mesmo muito interessado.»
(4)  Letra:

«Deus em mim

Somos apenas um traço cinzento
Estes passos levados /pelo vento
Ou haverá quem sabe / uma razão
Mais além deste muro / um clarão

Deus em mim [bis]

Com Maria, onde quer que vás
Sê peregrino da esperança e da paz
Com Maria, tu sabes que estás
No caminho da esperança e da paz

Sei que Maria nos abre caminhos
a certeza de / não estarmos sozinhos
Quando pesava a noite sem fim
seu olhar / acendeu Deus em mim

Deus em mim  [bis]

Com Maria, onde quer que vás
Sê peregrino da esperança e da paz
Com Maria, tu sabes que estás
No caminho da esperança e da paz

Deus em mim  [bis]

Haverá nos céus / um segredo
Um amor que nos cure do medo?
A Sua luz te acompanha e sustém
Mesmo se não vês o seu brilho vem»

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