30 novembro 2018

Dos profetas da graça

Há uma certa ideia, enraizada fortemente ainda que sem raizes científicas, de que se falarmos muito numa coisa essa coisa acontece. Normalmente falamos de coisas más: se falarmos muito numa doença talvez essa doença apareça; se falarmos muito num comportamento desagradável que se avizinha talvez esse comportamento se verifique. O poder desse oráculo é-lhe todo dado pelo maligno, está todo ele revestido de cheiro a enxofre. A doença de alguém pode acontecer se falarmos muito nela, mas não é por falarmos muito na cura de alguém que essa cura aparece. Pensamento positivo é outra coisa. Isto de que falo é apenas a probabilidade (ou a certeza nalguns espíritos mais fortes) de alguma coisa má acontecer se falarmos muito na possibilidade dessa coisa má acontecer.

Não sei se um profeta fala do futuro, daquilo que pode vir a acontecer - e normalmente o profeta não é um homem todo ele revestido de luz e brilho, muito pelo contrário - ou se fala para o futuro. Há a expressão profeta da desgraça, mas não há a expressão profeta da graça. Significa isto que falar do futuro (ou falar para o futuro) é sempre invocar o chifrudo, ou pelo menos deixar que ele se coloque de permeio. Falar para a frente (ou falar da frente?) nunca é um acto de virtuosismo ou de confiança - é sempre um alerta ameaçador, uma aviso para o castigo que se adivinha. Embora o dicionário diga que o profeta é alguém que prediz o futuro por inspiração divina, não me parece que seja verdade. 

Não se pode falar do passado que é sinal de imobilismo; não se pode falar do futuro que o maligno arrebita a orelha, sobretudo se falarmos muito nele. Resta-nos o presente, esse instante que se repete até à exaustão, que tem a duração de um nano-segundo, talvez menos, porque passa logo a ser passado. Resta-nos pouco do que falar, e é por isso que me dedico a isto. A alternativa poderia ser recomeçar a fumar, mas acabaram com os cigarros sem filtro.

JdB

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