29 novembro 2018

Textos dos dias que correm

Kyoto, Novembro 2018

Lucidez sem Ignorância nem Sobranceria

Possivelmente não é sem razão que atribuímos à ingenuidade e ignorância a facilidade de crer e de se deixar persuadir: pois parece-me haver aprendido outrora que a crença era como uma impressão que se fazia na nossa alma; e, na medida em que esta se encontrava mais mole e com menor resistência, era mais fácil imprimir-lhe algo. Assim como, necessariamente, os pesos que nele colocamos fazem pender o prato da balança, assim a evidência arrasta a mente (Cícero). Quanto mais vazia e sem contrapeso está a alma, mais facilmente ela cede sob a carga da primeira persuasão. Eis porque as crianças, o vulgo, (...) e os doentes estão mais sujeitos a ser conduzidos pelas orelhas (ou seja, pelo que ouvem). Mas também, por outro lado, é uma tola presunção ir desdenhando e condenando como falso o que não nos parece verosímil; esse é um vício habitual nos que pensam ter algum discernimento além do comum. Outrora eu agia assim, e, se ouvia falar de espíritos que retornam, ou do prognóstico das coisas futuras, de encantamentos, de feitiçarias, ou contarem alguma outra história que eu não conseguisse compreender, vinha-me compaixão pelo pobre povo logrado por essas loucuras. Mas actualmente acho que eu próprio era no mínimo igualmente digno de pena; não que posteriormente a experiência me tenha feito enxergar acima das minhas primeiras crenças, o que no entanto não dependeu da minha curiosidade (não resultou de uma falta de curiosidade minha); mas a razão ensinou-me que condenar assim resolutamente uma coisa como falsa e impossível é atribuir a si mesmo o privilégio de saber as fronteiras e os limites da vontade de Deus e do poder da nossa mãe natureza; e que não há no mundo loucura mais imensa do que reduzi-los à medida da nossa capacidade e inteligência.
Se chamarmos de monstros ou milagres aquilo a que a nossa razão não consegue chegar, quanto disso se apresenta continuamente à nossa vista? Consideremos o quanto é pelo meio do nevoeiro e às apalpadelas que somos conduzidos ao conhecimento da maioria das coisas que temos em mãos: sem dúvida descobriremos que é mais o hábito do que o conhecimento que nos elimina a estranheza delas, Enfadados e saciados que estamos do espectáculo dos céus, ninguém mais se digna levantar a cabeça para esses templos de luz (Lucrécio). e que, se essas coisas nos fossem apresentadas pela primeira vez achá-las-íamos tanto ou mais inacreditáveis que quaisquer outras, Suponde que agora pela primeira vez elas se manifestem subitamente aos mortais e de golpe se apresentem a seus olhos: não se poderia citar algo mais admirável, e antes de vê-las os homens não teriam podido acreditar em algo semelhante (Lucrécio).

Michel de Montaigne, in 'Ensaios'

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