27 março 2019

Vai um gin do Peter’s ?

SALVA POR NAPOLEÃO E VICTOR HUGO  –  NOTRE-DAME DE PARIS

O grande escritor, que marcou o século XIX francês, usou a sua arma mais poderosa – a pena – para interessar os seus compatriotas pelo restauro da Catedral mais antiga e especial de Paris. Usou-a como metáfora de um apelo mais amplo, que se estendia também a França, empobrecida e humilhada pelos anos da Revolução e pela derrota nas Guerras Napoleónicas. Considerava que tudo deveria partir da Catedral e indignava-se com o estado de degradação a que chegara aquele templo precursor do gótico, citando o lema latino ‘Tempus edax, homo edacior,' que traduzia por «o Tempo é cego, mas o homem é insensível.»

Esse alerta deu corpo ao famoso romance de Victor Hugo – «Notre-Dame de Paris» –, publicado em 1831. Hoje, é mais conhecido pelo título que adquiriu, pouco depois, na tradução inglesa – «O Corcunda de Notre-Dame» (‘The Hundchback of Notre-Dame’). A trama mereceu filmes, inspirou músicas, animou palcos de teatro, pôs a Catedral na moda e fez mudar mentalidades. 

Ilustração do livro, a evocar um cenário para desfiar o romance, em palco.
A sua narrativa aventurosa evoca a história de França, com a Catedral no epicentro. 

Os próprios diálogos das personagens e as reflexões lapidares, ao longo do texto, fizeram furor e alastraram-se por toda a sociedade como fogo na pradaria. Seguem algumas apanhadas, ora no original, ora na versão inglesa:  

- Il ne suffit pas, de passer sa vie, il faut la gagner. 
- Les modes ont fait plus de mal que les révolutions.
- When a man understands the art of seeing, he can trace the spirit of an age and the features of a king even in the knocker on a door.
- When you get an idea into your head you find it in everything.
- Nothing makes a man so adventurous as an empty pocket.
- He reached for his pocket, and found there, only reality.
 - Il semblait au jeune homme que la vie avait un but unique: savoir.
- La beauté est parfaite, / La beauté peut tout, / La beauté est la seule chose qui n'existe pas à demi.


   SOBRE O SOFRIMENTO:

- Au dedans de moi est l’hiver, la glace, le désespoir, j’ai la nuit dans l’âme.
- L'excès de la douleur, comme l'excès de la joie, est une chose violente qui dure peu.
- A one-eyed man is much more incomplete than a blind man, for he knows what it is that's lacking.
- … Pour une mère qui a perdu son enfant, c'est toujours le premier jour. Cette douleur-là ne vieillit pas.
- ...Mothers are often fondest of the child which has caused them the greatest pain.
- He had preferred to incur her anger rather than cause her pain. He had kept all the pain for himself. 

Ilustração da primeira edição do romance, que conta com personagens nas franjas da sociedade:
a arrebatadora cigana Esmeralda e Quasimodo, o corcunda criado em Notre-Dame de Paris.

   SOBRE A CATEDRAL E O FITO DO LIVRO:

- Inspirons, s'il est possible, à la nation l'amour de l'architecture nationale. C'est là, l'auteur le déclare, un des buts principaux de ce livre ; c'est là un des buts principaux de sa vie. (…) Depuis l'origine des choses jusqu'au quinzième siècle de l'ère chrétienne inclusivement, l'architecture est le grand-livre de l'humanité, l'expression principale de l'homme à ses divers états de développement, soit comme force, soit comme intelligence.
- He therefore turned to mankind only with regret. His cathedral was enough for him. It was peopled with marble figures of kings, saints and bishops who at least did not laugh in his face and looked at him with only tranquillity and benevolence.

Como bom romântico, Victor Hugo (1802-1885) ousou tomar para heroína do seu romance aquela jóia arquitectónica debilitada, que urgia recuperar, em nome da História, da Cultura e da riqueza espiritual impregnada em oito séculos de pedra rendilhada. ‘Papa Hugo’ – como é carinhosamente chamado, no seu país – ainda conseguiu despertar a afeição dos franceses pelo legado da Idade Média, especialmente desvalorizado e até apoucado, durante os séculos XVII e XVIII.  

Mas V. Hugo não foi o primeiro, nem o último, a trazer a Catedral dos poetas para a literatura. Desde a sua edificação, serviu de musa a incontáveis escritores e artistas plásticos, sobretudo de língua francesa. Um, viveu ali uma experiência mística que lhe mudou a vida. Era o dia de Natal de 1886… como narra o artigo gentilmente cedido pelo autor:  

«A catedral de Notre-Dame, em Paris, construída há cerca de 850 anos numa ilha no meio do rio Sena é mais do que uma igreja e uma obra de arte, é um monumento da engenharia dedicado a Nossa Senhora.

Cada um é tocado por Deus a seu modo e a seu tempo. Por exemplo, o grande escritor francês Paul Claudel (1868 – 1955) escreve o seu encontro com esta catedral quando tinha 18 anos: «...o meu estado habitual continuava a ser a sensação de asfixia e de desespero. Eu era esse miúdo infeliz que, no dia 25 de Dezembro de 1886, foi a Notre-Dame de Paris ver as cerimónias do Natal. Tinha começado a escrever e pareceu-me que iria encontrar nos ofícios católicos, apreciados com superior diletantismo, a inspiração e o assunto para uns exercícios decadentes. Foi com essas disposições que, acotovelado e empurrado pela multidão, assisti, com um prazer medíocre, à missa solene. Depois, como não tinha nada melhor para fazer, voltei para as vésperas. Os meninos de coro de túnicas brancas e os alunos do seminário menor de Saint-Nicolas-du-Chardonnet cantavam o que, soube mais tarde, era o “Magnificat”. Eu estava em pé, no meio da multidão, perto do segundo pilar na entrada do coro, do lado direito da sacristia. E foi então que o acontecimento que dominou toda a minha vida ocorreu. Num instante, o meu coração foi tocado e ACREDITEI. Acreditei com tanta força de adesão, com tal arrebatamento de todo o meu ser, com uma convicção tão poderosa, com uma tal certeza que não deixava espaço para qualquer espécie de dúvida, que desde então todos os livros, todos os raciocínios, todos os azares de uma vida agitada, não conseguiram abalar a minha fé, nem, sequer, tocá-la. Experimentei, de repente, o sentimento inebriante da inocência, da eterna filiação de Deus, uma revelação inefável» (“Ma Conversion”, Oeuvres en Prose, 1913).

Para um escritor, está bem. Não serei eu a tirar valor a todas as conversões e a todos os acontecimentos históricos que tiveram lugar nesta catedral, mas ela tem igualmente uma faceta tecnológica que merece ser contada.

Até àquela época, os edifícios mais altos tinham 15 ou 20 metros de altura e estavam parcialmente abrigados por árvores ou pelas construções circundantes. Em contrapartida, o telhado de Notre Dame eleva-se a 43 metros de altura, as torres têm 69 metros e a flecha alta chega quase aos 100 metros. A subida de 20 para 43 metros foi a ocasião de os construtores descobrirem os efeitos do que hoje chamamos a camada limite atmosférica, isto é, o progressivo aumento da velocidade do vento com a altura ao solo.
Na Idade Média, o projecto de uma catedral já se baseava em cálculos relativamente sofisticados, mas a grandeza do desafio não dispensava a verificação experimental. Uma das técnicas consistia em pintar as paredes com cal, para detectar o aparecimento de fissuras: onde elas aparecessem, as tensões eram demasiado grandes e devia-se reforçar a estrutura. Em Notre-Dame, verificou-se que se produziam fissuras na base das paredes quando sopravam ventos mais fortes e compreendeu-se que isso era devido a uma força lateral aplicada na parte superior do edifício. Ao mesmo tempo, constatou-se que a catedral era mais escura que o habitual, porque as únicas janelas ficavam a grande altura.

Assim, decidiu-se apoiar lateralmente a parte superior do edifício com arcos botantes e abrir grande janelas mais abaixo. Tinha surgido o estilo gótico na arquitectura!

Os construtores de catedrais da Idade Média mantinham entre si um estreito contacto, de modo que a notícia correu por toda a Europa em poucos meses e as modificações de Notre-Dame começaram a ser aplicadas a todas as grandes igrejas em construção, incluindo algumas menos altas, que não precisariam deste sistema de apoio. Em poucos meses, em toda a Europa se passou a construir no estilo gótico. 

Os quase 850 anos da catedral de Notre-Dame presenciaram muitas histórias decisivas da vida da Igreja e do mundo. Durante a Revolução Francesa, em nome da cultura, deitaram abaixo a flecha de quase 100m de altura, destruíram 28 estátuas [correspondiam a reis, que foram decapitados] do interior e todas as estátuas do exterior à excepção de uma. Ao longo destes séculos, houve tempo para partir muita coisa, mas também houve tempo para reconstruir este triunfo do engenho humano sobre a força da camada limite atmosférica. Em honra de Nossa Senhora.»

José Maria C.S. André, publicado a 10-II-2019,
em media e blogs anglo-portugueses


Embora a Cidade das Luzes abunde em templos dedicados a Maria, designados também de ‘Notre-Dame’, apenas o da l’  Île de la Cité merece levar o nome da capital gaulesa. No terreiro em frente à sua fachada principal, está assinalado o ponto zero, referencial de contagem de todas as estradas de França. É caso para dizer que todos os caminhos vão dar a ‘Notre-Dame de Paris’.  

Na estrela de oito pontas, em bronze, está gravado o «Point zéro des routes de France», ali colocado em 1924.
Fotogr. de Jean-Pierre Bazard, Wikimedia Commons // CC BY-SA 3.0

Antes de Victor Hugo, Napoleão já tinha salvo parcialmente a Catedral, ao conter a onda de vandalização que se seguiu à Tomada da Bastilha. Além de a devolver ao culto cristão, depois de ter sido reduzida a armazém, elegeu-a para ali realizar a cerimónia onde se auto-proclamou imperador. Ajudou, assim, a pôr cobro à razia feroz dos anos da Revolução Francesa. 

Nas curiosidades da Catedral, iniciada em 1163, encontra-se a famosa «floresta» instalada no telhado, porque os toros que lhe dão forma transpuseram para aquele remate cimeiro todo um bosque das redondezas. Num gesto de modernidade muito precoce, reciclou pórticos românicos de outros templos, para os adaptar em estilo e dimensão à nova estrutura gótica. A maioria dos monstros nas gárgulas superiores surgiram nas obras de restauro do segundo quartel do século XIX – as tais instigadas por Victor Hugo. Já no século XX, após o fim da Primeira Guerra, foi decidido introduzir no galo catavento, situado no topo do pináculo a 93 metros de altura, relíquias dos Santos Patronos da cidade (S.Dinis e Sta.Genoveva) e uma partícula da coroa de espinhos, para servir de «pára-raios espiritual» (assim desejado e dito pelo Cardeal Verdier), no coração de França. O implante das relíquias no corpo do galo metálico só ficou pronto no agitado ano de 1935, já perto da outra Guerra Mundial. Na visita virtual, que segue, vê-se o arrojo e a beleza dos arcos botantes ao 4:56 minuto:


Quem não treme com o aviso forte de Victor Hugo à sua geração, confrontando-a com os tempos áureos dos fazedores de catedrais: «Nos pères avaient un Paris de pierre, nos fils auront un Paris de plâtre [gesso]»? Mais de cem anos depois da morte do romancista, aquele mau presságio ressoa com um realismo assustador. Resta-nos, ao menos, continuar a apreciar e cuidar do património maravilhoso que tivemos o privilégio de herdar, nós que deixaremos às gerações vindouras um mundo meio plastificado e demasiado virtual, abaixo de gesso… 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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