08 abril 2019

Da cacofonia dos nomes e da dança

Chamava-se Amílcar Carlos e tinha um olho de cada cor. Se não era sensível à heterocromia dos olhos era sensível à cacofonia da identidade. Dizer o nome era uma espécie de gaguez inexistente que nunca perdoou aos pais, pese embora eles lhe terem dito que o segundo nome próprio Carlos era uma tradição de família. Não sendo uma tradição dramática, nem lhe tendo provocado graves inconvenientes, levou-o a pensar nisto: há estética nos nomes ou somos vencidos pela tradição apenas? Amílcar Carlos? Que sentido fazia esta junção onomástica?

Não obstante esta estranheza (o olho de cada cor era uma característica) Amílcar seguiu a sua vida. Formou-se em Contabilidade e cumpriu o seu serviço militar obrigatório com correcção e bonomia. Não se fez notar para além das noites num clube local, onde lhe puseram a alcunha Valsinhas, embora fosse mais dado às danças africanas, carregadas de uma sensualidade que ele imaginava, pois nunca havia provado. No regresso à vida civil empregou-se como contabilista numa pequena unidade industrial do Seixal. Gostava do rigor dos números e atribuía o sucesso da sua função a isso mesmo - o rigor. Sempre lhe fizera confusão aquelas pessoas que, entrevistadas pela qualidade do café que tiram, respondem à pergunta sobre o que os diferencia dos outros: o amor, dizem. Como se numa máquina o amor se sobrepusesse à qualidade da matéria-prima, à afinação da temperatura / pressão e à limpeza das peças móveis. 

Casou com Rosália, com quem se cruzara num encontro de jovens promovido pela paróquia local. Juntos viajaram pelo país, dançaram muito e com gosto, lancharam caracóis a ver o mar e passearam de braço dado pelos largos de província. Desse casamento nasceu a Júlia, que emigrara para o Canadá atrás de uma carreira como higienista oral e de um jovem de Winnipeg que conhecera num simpósio em Badajoz intitulado: fio dental. Que desafios para o futuro? A vida do casal sem a filha foi entrando num espiral rotineira feita de desinteresses, de ausências, de balancetes a desoras e de séries de televisão cujo principal encanto é o preenchimento de silêncios incómodos. Foi então que Amilcar Carlos se cruzou profissionalmente com Carla Laura. Não o encantaram os olhos azuis, as pernas longas, o cabelo encaracolado e curto. Foi o nome: Carla Laura era Amílcar Carlos no feminino - e duas cacofonias juntas eram uma espécie de fórmula matemática: menos com menos dá mais. Seis meses depois beijavam-se pela primeira vez, tocavam-se pela primeira vez, conheciam-se biblicamente pela primeira vez. O contabilista esquecia a ausência da boca da mulher na boca de outra mulher. Não teve a sensação do pecado nem do desrespeito. Teve a sensação da sensualidade exaltante, juvenil, feita de futuros inimagináveis e borboletas no estômago. Separou-se.

Carla Laura gostava das praças, de caracóis, de matinés no cinema, de viajar de comboio e de conversar. Gostava de beijar Amílcar, de lhe fazer bolos de côco, de rir muito no segundo copo de vinho e de fingir interessar-se pela contabilidade de uma pequena unidade industrial do Seixal. Passeavam de mão dada e falavam de tudo e de nada. E falavam de ir a um clube dançar. Amílcar sentiu um ínfimo torcer de dedos de Carla, um microscópico desviar de olhos, uma desatenção. Não ligou, mas sentiu o possível desacerto no ritmo. Uma semana depois, num clube da margem sul, o contabilista encostou-se ofegante a uma coluna, enquanto a sala se agitava aos som dos Boney M. Carla não gostava de dançar mas, pior do que isso, não sabia dançar: era desajeitada, insípida, desinteressada, sem química nem física. Amílcar fez o deve e o haver num instante: não havia futuro.

Seis meses depois (seria uma progressão aritmética?) escrevia à mulher: posso viver com a ausência dos teus beijos, procurando outros; posso viver com a ausência do teu corpo, procurando outro. Não sei viver com a ausência do teu ritmo. Posso voltar para casa?

JdB   

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