Não posso dizer que seja um sonho com a dimensão daquele que levou Martin Luther King ao martírio por uma causa. Não posso dizer que seja uma vontade, porque vontade talvez seja outra coisa. Talvez seja, então, um desejo, não como aqueles que levam as grávidas a comer feijoada com uma rodela de ananás mas, mesmo assim, um desejo. Qual é ele? Ligar a televisão pelas oito da noite e não estranhar que ninguém fale de COVID-19. Não ver o competente José Alberto Carvalho agarrado diligentemente aos gráficos dos mortos, dos infectados, dos concelhos e dos grupos de risco; não ver o competente Rodrigo Guedes de Carvalho a dizer frases acertadas e conselhos válidos sobre o afastamento das pessoas e sobre a necessidade de ficar em casa por amor; não ver, por último, o competente José Rodrigues dos Santos com calça afunilada e olhar dramático a agitar os braços com sabedoria de orador, a inflectir a voz para realçar a dimensão da tragédia, a piscar o olho (ainda pisca?) para transmitir confiança, para passar a mensagem que a vitória é nossa e que o vírus (dava mais jeito ser plural, para colar à citação) não passará.
Penso que nada ficará como dantes quando vencermos o vírus - embora não se saiba se esse "quando" é este ano, em 2023 ou nunca. Porém, enquanto esse "quando" não chegar, gostava de fazer uma quarentena (nem que fosse uma quarentena de minutos) ao vírus, às tendências, aos dramas, ao morcego, à OMS, à incompetência deste ou daquele, ao flagelo previsível do desemprego e da desestruturação de tantas famílias. Gostava que um dia todos os canais se unissem para abrir os telejornais com histórias triviais, com receitas de cozinha, com a leitura de poemas, com a passagem de playlists de pessoas anónimas, com entrevistas a gente desconhecida que, num descampado nos confins de Portugal, não consegue dizer COVID-19 ou não sabe o que é o pangolim, confundindo o animal com um instrumento musical. Gostava que houvesse um certo deus das pequenas coisas nas aberturas do horário nobre e que, durante uma quarentena de minutos, fizéssemos uma desintoxicação daquilo que nos intoxica há semanas. Não porque os temas aflorados pelos competentes jornalistas não sejam importantes; apenas porque precisamos de um jejum, de comer maçãs durante uma semana para limpar o organismo, de ouvir frases diferentes, gráficos diferentes, tragédias diferentes.
Quarenta minutos, vá. Depois voltamos ao mesmo, juro.
JdB
OBRIGADA por se permitir er desconforme. Este cansaço das covinotícias junta-se ao meu enfado visceral das mensagens de esperança e de força que circulam nas redes sociais; à imagem falaciosa de um mundo cor de rosa onde vivem famílias felizes; ao paraíso das crianças que aumentam a sua literacia e enchem os corações dos pais; e aos planetas de pais que se descobrem numa parentalidade até então desconhecida.
ResponderEliminarHá famílias felizes sim, há pais que se descobriram, há crianças mais sossegadas e mais felizes. Há também quem viva, com duas crianças em idade escolar, num sufoco financeiro de um 4ºandar sem elevador. Há quem tenha pais para cuidar, sem uma mão que mude uma fralda ou endireite um resguardo. Há quem tenha perdido o seu rendimento e a perspectiva de o recuperar é quase nula. Há quem sofra de verdade e, com estas maravilhas que circulam nos media e nas redes sociais, fica destituído do direito de reclamar ou de chorar. Aumentam as desigualdades e escondem-se, porque incomodam.
Preocupa-me, a mentira disto tudo. O que terão alguns (muitos) de engolir para responder às expectativas de uma representação tão mediada e socialmente construída?
Há anos cuidei de um velho cigano [*]. Tinha escaras infectadas por toda a bacia. Família comerciante, abonada. Seu filho explicou-me. Na cultura deles só à mulher era permitido ver e mexer nas partes do seu homem. Sua mulher estava demente. Ninguém mais, nem ele, o filho, poderia fazer o proibido. Contrataram uma portuguesa, oito horas por dia, para cuidar do Pai, de 2a a 6a-Feira, folgando nos fins-de-semana. Diariamente [16 horas] e dois dias [48 horas, fim-de-semana] o velhote 'habitava' umas fraldas cheias de urina e de fezes. Tratámo-lo (sobretudo a enfermagem). Não ficou curado mas muito melhor. Passado um mês voltou a ser internado. Repetiram-se os procedimento [lavar, limpar, desinfectar] com bom resultado.
ResponderEliminarIsto só para lhe escrever [ACC] que tenho uma práctica de meio século de andar no fio da navalha. E bem. E que você nada mais merece nos seus comentários de bosta [palavra consagrada por maomé bá um AsPoNe do BE na AR]. Tenha juízo e boa educação.
[*] Cigano não é patetice. É uma etnia (um grupo com hábitos culturais, alimentares, musicais, etc. próprios) tal como cabo-verdiano. Sempre nos demos bem porque eu sempre os tratei como pessoas. E eles sentiam isso.
Anónimo,
ResponderEliminarNão agradecerei a sua visita.
Se "anónimo" se pode ler também "ao", sugiro que veja a minha resposta ao comentário noutro post.
Não voltarei a admitir comentários deste tipo neste estabelecimento. Como digo noutro local, conheço bem ACC e, mesmo que não conhecesse, nada no seu (de ACC) comentário justifica este arrazoado insultuoso e despropositado. Podemos discordar de um comentário; não podemos (pelo menos não neste estabelecimento) verter uma falta de cortesia que magoa e que, estou certo, não é consentânea com o "anónimo" (ou "ao"?) que vou conhecendo. São horas infelizes; talvez, seja do dia...
Como também digo noutro local, a decência deste estabelecimento não está de quarentena.
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminarAinda bem que não está de quarentena, Sendo assim a bó é maior
ResponderEliminarComo escrevi quero lá saber quem é que o senhor conhece.
ResponderEliminarA frase não o abona.
ão