08 outubro 2020

De dois aforismos

Há um aforismo antigo que afirma que os olhos são o espelho da alma. Um aforismo porventura menos antigo, e de Wittgenstein, afirma que o corpo humano é a melhor imagem da alma humana. Se não nos ativermos à diferença estrita entre espelho e imagem, podemos deduzir que ambos - o corpo e os olhos - reflectem a alma de cada um de nós. Ora, em acreditando que só o ser humano é detentor de alma, devemos então inferir, de ambos os aforismos, que os olhos ou o corpo são aquilo que nos distingue dos animais. 

No entanto, é curioso pensar que esta distinção assenta num elemento - a alma. Não é o cabelo, a forma dos pés, a colocação das orelhas num crânio, o formato das unhas. Esse elemento chama-se alma, algo que nunca ninguém viu, e de cuja existência muita gente duvida. Por outro lado, se entendermos que os olhos são o reflexo da alma e que o corpo é o espelho da alma, uns olhos que sejam muito humanos, ou um corpo muito semelhante ao humano, poderão significar uma alma muito parecida com a humana - o que quer que isso seja. Alguns símio têm um corpo quase humano; podemos deduzir que também podem ter uma alma quase humana? 

Uns olhos estrábicos reflectem o quê? Uns olhos zargos indicam o quê? Uma deficiência física de nascença revela o quê? A que tipo de corpo ou a que tipo de olhos devemos - ou podemos - associar uma alma perfeita? Podemos construir um corpo que seja o lugar geométrico do corpo de todos os santos de todas as épocas e, com base nessa fusão, determinar o que é um corpo bom (diferente de um bom corpo) que reflecte o que é uma boa alma?

A utilização obrigatória da máscara em sítios públicos trouxe o(s) aforismo(s) para a actualidade. Numa repartição pública, numa igreja, num autocarro ou numa livraria, aquilo que deixamos ver são os olhos. A ninguém se exige um sorriso, a ninguém podemos criticar uma boca de desdém, porque nem o sorriso nem o desdém se veem. 

Por outro lado, esta época de grande apreço pela condição física (tal como já aqui disse, os obesos são os alvos a abater nos dias de hoje) é concomitante com um grande e desconhecido e involuntário apreço pelas qualidades humanas. De facto, a elegância do corpo é o espelho da elegância da alma. O excesso ponderal faz suspeitar uma alma gorda, na linha do fígado gordo ou do baço gordo.

Os aforismos são interessantes; levados à letra poderão ser perigosos.

JdB

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