O livro chama-se, de facto, Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century, mas o título do filme em inglês é apenas Nomadland. A versão portuguesa acrescentou-lhe o sobreviver na América. Não gosto do acrescento e acho, do alto da minha ignorância, que está a mais, porque o filme não trata de sobrevivência, mas de vivência, sem o sobre, o que faz alguma diferença.
Na minha opinião, o filme é sobre um modo de vida que se escolhe, não sobre um modo de vida a que se é obrigado. Quando perguntam à protagonista se ela é um sem-abrigo (homeless) ela responde que não, que é apenas uma pessoa que não tem casa (houseless). Há uma diferença, que não é apenas semântica.
O nomadismo daquela tribo (tribo no sentido lato, pois não andam sempre em grupo, apesar de se cruzarem muito) é uma escolha, ainda que possivelmente motivada, na sua origem, pelo fim de um projecto industrial que gerava emprego. São, porém, escolhas de vida, não consequências de uma vida. Viajam de terra em terra porque querem viver de terra em terra, não porque tenham de viver assim.
Há um lado fascinante naquele modo de vida: a liberdade e o despojamento. O lado menos fascinante talvez não seja a deambulação, o desapego, a não fixação, mas um desconforto que nos parece evidente: trabalhos de ocasião, higiene abaixo de um certo limiar, alimentação que sabe Deus. Talvez o lado fascinante seja, no fundo o contraponto deste menor fascínio: tudo é irrelevante quando se quer viver uma vida de total desprendimento de tudo - do conforto burguês, da higiene civilizada, da alimentação equilibrada. Nada é relevante quando se quer ter o infinito como horizonte, a liberdade como companhia de vida, a frugalidade como opção consciente.
Se conseguiria viver assim? Não, porque sou demasiado burguês: gosto das minhas coisas, do meu espaço, das minhas rotinas (o horror à rotina é também uma rotina) do meu pequenino conforto, das minhas relações pessoais. Não obstante, há algo de fascinante naquele modo de vida, repito. Talvez me lembre - e o ponto de intersecção seja a liberdade e o despojamento - um livro famoso nos meus 18 ou 20 anos: O fio da navalha. Tendo perdido tudo na Grande Depressão, o protagonista corre mundo: faz meditação no Tibete, trabalha em minas na Alemanha ou num cargueiro não sei de que nacionalidade. Depois volta a casa diferente - mas volta a casa.
À protagonista de Nomadland também lhe acontece o mesmo: volta a casa. No fundo, toda a viagem tem isso por trás - o regresso a casa, qualquer que seja ela.
JdB
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