As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
16 março 2022
Vai um gin do Peter’s ?
PELA UCRÂNIA, ATÉ OS PIANOS, VIOLINOS E VOZES RESSOAM PELO MUNDO…
Enquanto assistimos a uma invasão bárbara, com pormenores de crueldade vergonhosos e escusados, também nos deparamos com episódios de heroísmo e generosidade espantosos. O pior e o melhor da humanidade parecem ter-se concentrado na e a propósito da Ucrânia, reverberando pelo mundo fora, a partir daquele palco de guerra.
Uma das maiores cadeias de supermercados da Polónia – a Biedronka, detida pela portuguesa Jerónimo Martins – retirou logo de venda 16 produtos de origem russa e bielorussa e em 43 lojas localizadas perto da fronteira com a Ucrânia desceu os preços de meia centena de produtos de primeira necessidade.
A plataforma de mercado imobiliário CASAFARI está a alocar metade do seu trabalho ao alojamento de refugiados e usa a sua rede social para transmitir as mensagens impressionantes dos ucranianos, que se batem por uma pátria livre e soberana.
O pavilhão ucraniano na Expo universal no Dubai tem sido revestido pelos visitantes com post-its encorajadores e de simpatia, a ponto de as paredes estarem forradas a papelinhos multicolores. Mais curioso ainda (segundo o jornalista do Público, que partilhou a experiência), é o silêncio respeitoso que reina naquele espaço, que passou a ter uma afluência inusitada, precisamente desde 24 de Fevereiro…
A principal cerimónia britânica dos galardões do cinema – os BAFTA – decorrida neste Domingo, foi animada pelas cores da bandeira ucraniana, que se tornaram familiares para todo o Ocidente livre, a somar às incontáveis manifestações de apoio, incluindo um par de gestos de caserna contra Putin. De pins a emblemas, vestidos, faixas, laços do smoking, não faltaram pretextos para envergar o azul e o amarelo ou exibir alguns dos ícones do movimento #UKRAINE:
A plataforma da Airbnb tem estado especialmente dinâmica a alugar apartamentos na Ucrânia, por generosidade de muitos ocidentais, que assim fazem chegar dinheiro fresco aos sitiados pelo cerco russo.
Nos concertos Gulbenkian de 3 e 4 de Março, a orquestra tocou o hino ucraniano, num gesto aplaudido com emoção pelo público. Para abrilhantar o momento, no final, abriram-se os panos por detrás da orquestra, para o jardim bem iluminado ficar à vista do grande auditório. O esplendor da natureza ajudou à homenagem. No site, a Fundação publicou: «Face ao conflito armado no território ucraniano, manifestamos solidariedade com os povos que sofrem as consequências deste grave desrespeito pelos princípios do Direito Internacional e dos Direitos Humanos.»
O pianista alemão Davide Martello voltou a tocar junto à nova zona de guerra. Desta vez, percorreu 5000 km com o seu piano portátil para receber os refugiados na fronteira polaco-ucraniana. Era o pequeno contributo para humanizar o medo e a tristeza dos que fugiam ao massacre dos bombardeamentos selváticos das milícias russas contra alvos civis, por ordem de um déspota sádico:
Sting pegou na guitarra para reactualizar o tema que tinha composto durante a Guerra Fria («Russians», de 1985), agora convertido em clamor pela Ucrânia e pelos russos que, no seu país, se insurgem contra o insidioso ataque de Putin, conforme explica o cantor britânico na introdução à música:
Sean Penn, com a sua proverbial coragem, viajou até Kyiv (é o nome da capital em ucraniano, enquanto “Kiev” é a versão russa), para realizar um documentário sobre a beligerância do Kremlin, visando expor os efeitos de uma guerra iníqua que o Politburo apelida de “operação especial” para repor a paz e a ordem no “país irmão”! Aproveitou para se reunir com o presidente Zelensky, bem como animar os que resistem e as populações flageladas. Em 2018, estivera na Turquia para rodar um documentário (ainda não lançado) sobre o macabro assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, perpetrado no Consulado saudita de Istambul.
«Actor and director Sean Penn attends a press briefing at the Presidential Office in Kyiv [Ukrainian Presidential Press Service/Handout via Reuters]»
No próximo dia 25 de Março (Sexta-feira), o Papa irá consagrar a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, numa cerimónia em simultâneo entre o Vaticano e Fátima [16h no horário de Portugal continental]. Na capelinha das Aparições estará o enviado especial de Francisco – o Cardeal polaco Krajewski. Esta consagração vem na senda da consagração do mundo presidida pelo Papa S.João Paulo II, a 25 de Março de 1984, diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima, que foi transportada para o Vaticano.
Entretanto, o Pontífice enviou dois Cardeais à Ucrânia para prestarem apoio à população e se inteirarem do que pode fazer a Santa Sé para aliviar o sofrimento dos locais. O cardeal Konrad Krajewski, que se prepara para regressar ao Vaticano após uma semana em missão, afirmou que na Ucrânia se deparou com muito sofrimento e muita fé!
Francisco tem intensificado os apelos pelo fim do conflito bélico e denunciado o horror da invasão com clareza meridiana: «Em nome de Deus, peço-vos: parem com este massacre!». Recordou as vítimas de Mariupol e assinalou a «barbárie da matança de crianças, inocentes e civis indefesos», implorando pelo fim imediato daquela «inaceitável agressão armada, [antes que] reduza as cidades a cemitérios.» Alertou igualmente para a gravidade de invocar motivos religiosos para tentar justificar o injustificável: «Deus é o Deus só da paz, não é o Deus da guerra, e quem apoia a violência profana o Seu nome» (Angelus do Domingo, 13 de Março). Palavras duras, que levaram o Secretário de Estado do Vaticano a comentar que o «Papa parecia particularmente entristecido e só pode ser assim. Estamos todos aflitos e consternados diante desta guerra que não faz qualquer sentido.»
Nas excepcionalidades: chegou a vez de o Japão prescindir da sua política muito restritiva (ou mesmo nula) de acolhimento a refugiados estrangeiros e abrir as portas a ucranianos que queiram transplantar-se para aquele país asiático. Entretanto, na cidade suíça sede do calvinismo, realizou-se um gesto ecuménico repleto de alcance histórico: volvidos cinco séculos, foi rezada a primeira Missa católica na catedral de Genebra. A celebração estivera marcada para o final de Fevereiro de 2020, mas a pandemia obrigou ao adiamento. Por fim, acabou por ter lugar no Sábado, 5 de Março de 2022, 486 anos depois de o templo ter sido ocupado pelos protestantes. Ainda hoje, as paredes contêm inscrições expressivas daquela expulsão violenta dos católicos: «No ano de 1535, abateu-se a tirania do anticristo romano e foi abolida a superstição; a Santa religião de Cristo foi restabelecida na sua pureza (…)». Mas hoje, é a união dos cristãos que marca o novo tempo, no cantão helvético francês. Naquela celebração eucarística de reconciliação, além da língua francesa, várias orações foram recitadas em português, italiano e espanhol, para se adequar a grande parte dos presentes. Rezou-se ainda pela Ucrânia e foram evocados o sacerdote ucraniano concelebrante e uma refugiada recém-chegada a Genebra.
Junto aos escombros de uma cidade ucraniana, um batalhão de militares tocou o hino do país, numa imagem (e vídeo) que se tornou viral. Adivinhamos que haverá trabalho de marketing na gestão mediática desta guerra, sendo caso para dizer: ainda bem! Comunicar capazmente mensagens válidas e verdadeiras é imperioso e sem contraindicações, como demonstrou Churchill durante a Segunda Guerra. Felizmente que Zelensky é um comunicador exímio, para ajudar a transmitir o horror a que os seus conterrâneos estão sujeitos e continuar a mobilizá-los. Tal qualidade em nada deslustra a sua óbvia coragem, antes ajuda a internacionalizá-la.
Fátima também aceitou ajudar a Ucrânia e, além de receber refugiados, vai enviar uma das imagens peregrinas de Nossa Senhora – a 13ª – para o país, anuindo ao pedido de uma das dioceses martirizadas! Percebe-se quanto a mensagem da Senhora da Cova de Iria voltou a ecoar além-fronteiras. Repete-se, sobretudo, o aviso da aparição de 13 de Julho de 1917, sobre os erros de uma Rússia expansionista, a partir de 1917 sob a batuta comunista, que sempre persistiu na expansão territorial (e ideológica), apesar de banida da praxis internacional, após a Segunda Guerra. É nisso que difere dos Romanov, pois estes seguiam a tradição da época, sendo que foram exterminados pelos revolucionários leninistas-trotskistas, em Julho de 1918. Porém, é incontornável o entusiamo de Putin pelo czar Nicolau I, cujo lema «Ortodoxia, autocracia e nacionalismo» poderia conferir algum substrato histórico (como se servisse de legitimação) à sua intenção de reunificar o «mundo russo» (ou «Russkiy Mir»). Enfim, um passadismo megalómano, impiedoso e inaceitável no século XXI.
É dramático que as palavras duríssimas de Vasco Pulido Valente, esperando o pior de um ex-KGB manipulador como Putin e de uma ex-grande potência decadente, se revelem certeiras, 7 anos depois! Quando foram publicadas, em Fevereiro de 2015, VPV fazia conjecturas a partir da invasão da Crimeia pelo sempiterno presidente russo, a quem os diferentes ventos da história parecem não ter humanizado e pouco ou nada ensinado, de positivo. Mostra-se, antes, mais empedernido num nacionalismo descabelado e sem escrúpulos. Na altura da queda do Muro de Berlim, Vladimir Putin prestava serviço na filial da KGB, em Dresden, que se viu rodeada por uma multidão a manifestar-se contra aqueles agentes sádicos. Putin contou, em entrevista, que telefonou logo para Moscovo a pedir reforços. Como ninguém atendeu, percebeu que estava em marcha a nova política da ‘Perestroika’. Decidiu, então, queimar os documentos incriminatórios da actividade sinistra da KGB, na Alemanha de Leste. Teve tanto para fazer desaparecer – disse, parodiando – que o forno explodiu! Sem eufemismos, o historiador português fala abertamente do início da Terceira Guerra Mundial:
Opinião
«Ver ou não ver
Os movimentos preliminares da III Guerra Mundial estão em curso: para o Ocidente ver – ou não ver.
Com as nossas preocupações domésticas, não nos sobra o tempo para pensar em coisas muito mais sérias como o expansionismo da Rússia.
Vem na Wikipédia, mas convém repetir, que a Rússia é uma federação de 22 repúblicas, 46 regiões autónomas (como a da Madeira) e nove territórios. Pior ainda, tem 160 etnias diferentes, 100 línguas diferentes, quatro grandes religiões diferentes (a ortodoxa, a islamita, a judaica e a budista) e uma enorme variedade de seitas, que constantemente varia e se multiplica. Tudo isto para uma população relativamente pequena de 140 milhões de habitantes. Qualquer pessoa de senso compreenderá que, segundo um velho hábito do século XVIII, chamamos Rússia a um Império que só pode ser governado autocraticamente e onde a democracia está para sempre condenada.
O autocrata de hoje já não é o czar Nicolau II, nem Lenine, nem Estaline, nem Khruschev, nem Brejnev. É um antigo membro da polícia secreta e, por consequência, um dissimulador, um mentiroso, um torcionário e um assassino, que dá pelo nome de Putin e que preside a uma cleptocracia, largamente caótica, a que só a violência e o seu arbítrio garantem uma vaga coesão e uma aparência de Estado. Além disso, na falta de uma legitimidade dinástica como a dos Romanov, ou ideológica como a URSS, Putin precisa, para se ir aguentando, de invocar a legitimidade imperial, principalmente depois da maior derrota que o Império sofreu desde 1613. O que não seria importante, se depois da implosão do comunismo a Rússia não permanecesse a segunda potência militar do mundo.
E se a Europa não se tivesse desarmado, como desarmou, para pagar o Estado social. A Inglaterra, por exemplo, gasta em defesa menos do que 2 por cento do PIB, no momento em que Putin (de resto, provocado pela França e pela Alemanha) embarcou numa política claramente agressiva e revanchista. A Crimeia foi o primeiro objectivo, como já o fora para Catarina, porque o Império fica fechado ao exterior sem um porto de água quente; e o segundo foi parte da bacia do Donetsk, porque a Crimeia não serve de nada sem uma ligação fácil e segura ao coração do Império.
Estaline e Hitler perceberam este ponto essencial. Putin também; e não há a sombra de uma dúvida de que não recuará. Como, tarde ou cedo, vai acabar por querer que as repúblicas bálticas voltem ao seu domínio e que a Ásia Central aceite obedientemente a sua ordem. Os movimentos preliminares da III Guerra Mundial estão em curso: para o Ocidente ver – ou não ver.»
Vasco Pulido Valente no PÚBLICO de
27 de Fevereiro de 2015
Notícia de última hora: hoje, arranca uma nova rádio digital falada em português e em ucraniano, com informações úteis para os refugiados refazerem a sua vida em Portugal e com programação musical do seu país, para os fazer sentir em casa. Trata-se de uma iniciativa muito oportuna da Rádio Comercial.
Tempos inimagináveis para muitos de nós, tempos de conversão para os cristãos (em plena Quaresma) e tempos de decisão para todos! Naturalmente, também de possibilidade de amadurecimento pessoal e de solidariedade com quem precisa. Mas há tantas incertezas difíceis, até porque falta entrar nesta equação a grande incógnita que é a China… Possa a humanidade estar à altura da encruzilhada histórica, que tem pela frente! O caminho, embora difícil, qual porta estreita e árdua, tem sido sulcado pela bravura e com o sangue dos ucranianos, a quem não tem faltado heroísmo para se baterem pelos valores mais elevados. Luminosos no seu exemplo.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
Fanni Kaplan estivera em Simferopol, na Crimeia, antes de rumar a Moscovo para assassinar Lenine – e, por ter falhado, ser executada na madrugada seguinte numa garagem das traseiras do Kremlin. Há um pormenor lírico no meio disto: a polícia ordenou ao poeta Damian Bedni que estivesse presente durante a execução a fim de traduzir em verso a eliminação de uma inimiga do povo. Era mau poeta e nunca versejou sobre o assunto. Mais tarde, Lenine chamar-lhe-ia “vulgar” e até “pornográfico”, o que era um juízo inesperado acerca de um “poeta do campesinato” que seria depois suspeito e silenciado até à invasão nazi da URSS. Uma das acusações sobre Bedni era a de não exaltar suficientemente Estaline e de criticar a existência de “galinhas coletivas”.
Seja como for, Fanni Kaplan falhou o seu objetivo, mas Lenine (que, de qualquer modo, se habituara a ser alvo de atentados falhados) nunca recuperou totalmente e passava pequenas temporadas em Gorki, não longe de Moscovo, numa dacha que em tempos tinha pertencido aos Morozov, uma das mais ricas família do império, ligada aos texteis. Para quem, como Lenine, praticava uma espécie de ascetismo gastronómico (Vladimir Ilitch tivera sempre um estômago delicado, atreito a maleitas e habituado a dieta) que se satisfazia com refeições de chá, sopa, pão escuro e queijo, Gorki tinha uma novidade: além dos guarda-costas e de Nadejda Krupskaia, a mulher, havia um cozinheiro, Spiridon Ivanovich Putin. Não se lhe conhece nenhuma especialidade, nenhuma criação no fogão – apenas uma lealdade silenciosa junto do líder do Sovnarkom, o Conselho do Comissariado do Povo da União Soviética, o “maior ser humano da nossa nova era”, como lhe chamou Trotsky, que teve o destino que teve.
Cem anos depois, o neto de Spiridon Putin, Vladimir Vladimirovitch – é o que sabemos. Mas se eu tivesse de eleger um personagem seria ele. Sopa de beterraba, repolho com maçã, talvez golubtsi (couve recheada com carne) e a leitura do Pravda. Nada que Vladimir aprecie.
Rússia por Rússia, antes FJV, em 27.02.22
ResponderEliminarFanni Kaplan estivera em Simferopol, na Crimeia, antes de rumar a Moscovo para assassinar Lenine – e, por ter falhado, ser executada na madrugada seguinte numa garagem das traseiras do Kremlin. Há um pormenor lírico no meio disto: a polícia ordenou ao poeta Damian Bedni que estivesse presente durante a execução a fim de traduzir em verso a eliminação de uma inimiga do povo. Era mau poeta e nunca versejou sobre o assunto. Mais tarde, Lenine chamar-lhe-ia “vulgar” e até “pornográfico”, o que era um juízo inesperado acerca de um “poeta do campesinato” que seria depois suspeito e silenciado até à invasão nazi da URSS. Uma das acusações sobre Bedni era a de não exaltar suficientemente Estaline e de criticar a existência de “galinhas coletivas”.
Seja como for, Fanni Kaplan falhou o seu objetivo, mas Lenine (que, de qualquer modo, se habituara a ser alvo de atentados falhados) nunca recuperou totalmente e passava pequenas temporadas em Gorki, não longe de Moscovo, numa dacha que em tempos tinha pertencido aos Morozov, uma das mais ricas família do império, ligada aos texteis. Para quem, como Lenine, praticava uma espécie de ascetismo gastronómico (Vladimir Ilitch tivera sempre um estômago delicado, atreito a maleitas e habituado a dieta) que se satisfazia com refeições de chá, sopa, pão escuro e queijo, Gorki tinha uma novidade: além dos guarda-costas e de Nadejda Krupskaia, a mulher, havia um cozinheiro, Spiridon Ivanovich Putin. Não se lhe conhece nenhuma especialidade, nenhuma criação no fogão – apenas uma lealdade silenciosa junto do líder do Sovnarkom, o Conselho do Comissariado do Povo da União Soviética, o “maior ser humano da nossa nova era”, como lhe chamou Trotsky, que teve o destino que teve.
Cem anos depois, o neto de Spiridon Putin, Vladimir Vladimirovitch – é o que sabemos. Mas se eu tivesse de eleger um personagem seria ele. Sopa de beterraba, repolho com maçã, talvez golubtsi (couve recheada com carne) e a leitura do Pravda. Nada que Vladimir aprecie.
Cumps