29 abril 2022

Poemas dos dias que correm

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Procuro mulher sincera e cautelosa,
bela, hábil na cozinha e na cama,
de boa linhagem, sábia e eficiente,
que seja cuidadosa, terna, doce,
extrovertida e de aspecto elegante.

Que se dispa lentamente e tenha
carta de condução, uma carreira,
olhos grandes e boca muito suave.
Nem muitos nem poucos anos: os necessários. 

Deverá, ainda assim, dar-me alegria.
Tem de praticar desporto, e gostar
de música clássica e de leitura;
atenta e sociável com os meus amigos. 
 
Não interessa a cor do cabelo,
a raça ou a cultura. Quero apenas amá-la.
Quero que, ao vê-la, a vida comece.
Procuro apenas uma mulher preparada
para viver a minha prolongada morte.

Toni Montesinos Gilbert


27 abril 2022

Vai um gin do Peter’s ?

NO MNAA PARTILHA-SE O BELO E A SEDUÇÃO

Numa parceria entre o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e a colecção «Gaudium Magnum», propriedade de Maria e de João Cortez de Lobão, o grande público tem oportunidade de apreciar peças interessantes daquele acervo privado. 

A tela agora em exposição no MNAA data de 1610 e foi pintada por um contemporâneo e rival de Caravaggio – Giovanni Baglione (Roma, 1566- 1643). O tema em foco é S. João Baptista em idade jovem e numa pose invulgar, que se inspirara numa estátua muito em voga na época (1610), pertencente a um dos Cardeais coleccionadores da Curia romana. A mesma contorção do dorso observada na escultura é replicada no óleo, com o braço direito a apontar no sentido oposto ao do olhar, interpelando interlocutores mais distantes e já fora do campo de visão do quadro. Poderíamos ser nós. 

Sob um fundo escuro, o vigoroso santo sobressai com um traço bem modelado. O jogo de claro-escuro característico do barroco surge aqui enriquecido pela introdução de uma faixa de paisagem de luminosidade suave, onde predomina um céu azul repleto de nuvens, ao gosto da pintura bolonhesa. De facto, Baglione foi recolhendo influências de diferentes escolas, do maneirismo ao barroco, acabando por fazer uma simbiose pessoal que lhe conferiu um estilo original, sem se deter «(n’)os passos de ninguém» – segundo o grande coleccionador de arte seu contemporâneo  – Giulio Mancini (1559-1630).

As tonalidades barrentas e aparentemente monocromáticas do corpo do santo, onde nem as vestes sobressaem, acentuam o cunho escultórico do pregador, como se tivesse sido modelado em barro. Depois, a filigrana de claros-escuros, que demarcam a figura do profeta, acentuam a tridimensionalidade da sua representação. Só falta falar ou talvez nem precise, pois o gesto que aponta para a parte do horizonte onde há céu é suficientemente sugestivo. 

Na tela, junto ao primo de Jesus aninha-se um cordeiro, imagem do sacrifício pascal. Mais acima, talvez sobre a base do escuro pedestal (ou será um banco?) onde o santo se apoia, podendo adivinhar-se a sua posterior elevação aos altares, está pousado um pano revolto em tom carmim indiciador do martírio perpetrado numa festa da corte de Herodes. Poderia também ser a capa do suplício de Jesus, que lhe fora deposta pela mesma corte impiedosa no palácio do rei Herodes. Outro símbolo da paixão, que o santo não poderia ter conhecido em vida, corresponde ao crucifixo que João segura com a mão esquerda, antecipando o sinal maior da morte do Salvador, ocorrida bem depois da decapitação do Baptista. 

«São João Baptista no Deserto», de Giovanni Baglione (Roma-1566-1643),
óleo de 1610, dimensões: 194cm x 151cm.

Baglione fez uma carreira de sucesso, sendo um dos pintores mais requisitados pelos mecenas da época, entre cardeais e príncipes italianos. Um ano antes de morrer, publicou uma colectânea com a biografia dos artistas que se tinham distinguido na fervilhante cidade de Roma, para dar continuidade à obra «Vitae» de Giorgio Vasari. O seu esquecimento póstumo é comummente atribuído às tensões que teve com o truculento milanês Caravaggio (1571-1610). Acresce que o entusiasmo do século XX pelo barroco fulgurante caravagesco ofuscou a fama de outros artistas do mesmo período. No calor da sua diatribe contra Baglione, Caravaggio declarou a arte do romano um perfeito logro e ainda compôs quadras satíricas caluniosas.  

Boa hora em que a dupla MNAA & Fundação Gaudium Magnum dão a conhecer a obra de pintores menos badalados, ajudando a alargar horizontes. Na sala contígua à do quadro corre uma curta-metragem bilingue para mostrar o contexto histórico-artístico daquele óleo, confirmando quanto a trama da arte é urdida pelo intercâmbio (mesmo o inconsciente) entre artistas. Envolve, afinal, uma permeabilidade muito enriquecedora, que Baglione explorou com especial versatilidade e alguma grandeza de carácter. Basta lembrar que na sua obra literária de fim de vida -- «Le Vite de’ pittori scultori e architetti dal pontificato di Gregorio XIII de 1572 in fino a’Tempi di Papa Urbano Otavo nel 1642» -- incluiu referências elogiosas ao arquirrival Michelangelo Merisi da Caravaggio, com quem se tinha digladiado em tribunal por ataques ferozes ad homine por parte do colérico milanês (aliás, provados judicialmente).   

Até 3 de Julho, o MNAA convida-nos a saborear mais uma tela de um dos grandes de Itália, ainda que menos mediático, sob o título expositivo «O BELO, A SEDUÇÃO E A PARTILHA - obras da coleção Maria e João Cortez de Lobão».  A não perder.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

26 abril 2022

Textos dos dias que correm

Compreendi então que, para um homem como ele, um homem essencialmente melancólico, para quem o mundo era sobretudo uma fonte de angústias e desilusões, o humor era uma coisa não apenas bela como também necessária: contar uma boa piada podia proporcionar um momento — fugaz, mas maravilhoso — em que a vida ganhava sentido e deixava de aparecer arbitrária, caótica e impenetrável.

Jonathan Coe (tirado daqui)

***

O humor não salva; o humor, em definitivo, não serve para quase nada. Podem ver-se, durante anos, muitos anos mesmo, os acontecimentos da vida com humor. Nalguns casos pode adoptar-se uma atitude divertida praticamente até ao fim; mas a vida acaba sempre por nos deixar de rastos. Por melhores que sejam as qualidades de coragem, sangue-frio e humor que criemos ao longo da vida, acabamos sempre por ficar com o coração em fanicos. E, então, deixamos de rir. No fim de contas, só nos resta a solidão, o frio e o silêncio. No fim de contas, só nos resta a morte.

Michel Houellebecq, in 'As Partículas Elementares'

24 abril 2022

II Domingo da Páscoa

EVANGELHO – Jo 20,19-31

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu-lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão na seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou-Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu-Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse-lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.

22 abril 2022

Das low-costs

Escrevo este pequenino texto a bordo de um Airbus A320 da companhia aérea Lauda, ao serviço da Ryanair, com quem voei até Viena de Áustria.

Percebi há muito que a ideia de viajar me aterroriza; não tenho medo de aviões, não penso que vão cair, a minha claustrofobia não vai a tanto e já dei de barato que o tamanho do meu corpo não permite uma viagem confortável. O terror é a comparação com o que já foi andar de avião. A viagem de avião que eu conheci está na dimensão do petromax – sabemos que existiu, alguns de nós foram contemporâneos desse equipamento, mas já não existe. Andar de avião como se andava há 30 anos também já não existe, a não ser na mente e memória de felizardos – ou de pessoas algo idosas. Os meus filhos e netos não saberão o que era andar-se de avião ou fazer-se turismo nos anos 70, 80, ou mesmo 90.

Podem dizer-me que uma low cost é isso mesmo. O problema é que a TAP se tornou nisso mesmo também. E talvez outras companhias boas – isto, claro está, se pensarmos em viagens na Europa, que o longo curso tem algumas diferenças - se tenham aproximado deste modelo: comida má, serviço a roçar os mínimos, que ser assistente de bordo foi encanto que já deu uvas.

Viajei na fila 20. As iguarias que o serviço a bordo disponibilizava por 10€ ou 12€ desapareceram todas até à fila 10, porque depois comecei a ouvir o comissário de bordo a dizer que não tinha. Quando chegou à minha vez havia um pacotinho de azeitonas, chocolates, Pringles e lasanha de bolonhesa (foi assim que foi anunciado) vegetariana. O casal que viajava ao meu lado tirou da mochila umas bananas e umas bolachas; na fila ao lado, uma família de pai, mãe e filho adolescente tiraram umas sanduíches, embrulhadas em papel de alumínio, e uns sumos. Não vejo motivo para que, nas filas atrás de mim, não houvesse alguém a comer sopa de feijão ou um bacalhau com broa que tenha sobrado do Natal. 

O turismo (cuja palavra vem de Gran Tour, uma viagem pela Europa só acessível aos muito ricos) é um tema sensível. Gostaria de ir a Budapeste, onde estive em 1982, talvez. Quero viajar 3 horas ou mais num avião apinhado, com um serviço mau? Quero levar uma sanduíche, um gaspacho ou um ragoût para não passar fome? Não sei.... Provavelmente cederei, porque já interiorizei que nada é como vi pela primeira vez - Praga ou Budapeste do tempo da cortina de ferro já não existem. Em bom rigor já não existe nenhuma cidade que eu conheci nas minhas viagens dos anos 80 - estão todas pejadas de gente que fotografa, tira selfies, pica listas e faz barulho.

Volto à Ryanair. É uma companhia má? Não, de todo - cumpre seguramente o objectivo de transportar gente do local A para o local B ao mínimo custo possível. Eu não gosto, porque conheci outra realidade. Mas as pessoas que viajam agora não têm o gosto daquilo que está entre A e B; querem chegar. Só quem viajou na TAP há 30 anos sabe do que falo. Mesmo que não diga nada, para me deixar ficar a mim com o ónus do saudosista pateta.

JdB

21 abril 2022

Textos dos dias que correm *

O sexo e o centro da moralidade cristã

Sabemos mais sobre a moral sexual do que sobre as obras de misericórdia, ou até quantas e quais são. Cristãos e não cristãos têm todos qualquer coisa importante a dizer sobre o dilema dos divorciados e das pessoas que vivem em uniões de facto, sobre o seu lugar no seio da Igreja e sobre o acesso aos sacramentos – se têm ou não esse direito. Muitos têm opiniões construídas e elaboradas sobre o modo de vida dos outros, assim como tinham as alcoviteiras das aldeias de antigamente, lendo-lhes a alma e julgando os seus pecados – como se fosse possível julgar pecados. Na mesma linha de sabedoria popular, também são raros os católicos que não tenham discutido algures no tempo e à mesa de um bar qualquer, quase sempre aos gritos – porque da moral trata-se aos gritos -, as razões filosóficas ou só porque sim, da castidade no namoro, da homossexualidade ou dos diversos “tipos” de infidelidade. Como encaixar tudo isto no Cristianismo? Foram jantaradas regadas destes assuntos. E os preservativos: lembram-se quando o debate público sobre a cristandade se resumia ao uso dos preservativos e ao que a Igreja tinha a dizer sobre o assunto?

Escreveu CS Lewis há décadas: “Dizem que o sexo se tornou um problema grave porque não se falava sobre o assunto. Nos últimos anos não foi isso que aconteceu. Todos os dias se fala sobre o assunto e continua a ser um problema. Se o silêncio fosse a causa do problema, a conversa seria a sua solução. Mas não foi. Acho que é exactamente o contrário”. Depois de dedicar ao tema um capítulo do livro, Mere Christianity – livro este baseado num programa de rádio transmitido durante a II Guerra Mundial e que devia ser de leitura obrigatória a todos os cristãos -, CS Lewis acaba assim a sua reflexão simples e resumida: “Apesar de eu ter falado bastante a respeito de sexo, quero deixar tão claro quanto possível que o centro da moralidade cristã não está aí. (…) Existem duas coisas dentro de um ser humano que competem entre si para fazerem com que a pessoa se torne predominantemente numa delas: a parte animal e a diabólica. A diabólica é a pior das duas. E é por isso que um moralista frio e pretensiosamente virtuoso, que vai regularmente à Igreja, pode estar bem mais perto do Inferno do que uma prostituta. É claro, porém, que é melhor não ser nenhum dos dois”.

Lemos as Escrituras e aprendemos que Jesus preocupou-se pouco ou nada com quem dormia com quem. Preocupou-se antes de tudo, com todo o vigor e de todas as formas possíveis, em nos mostrar através de parábolas, episódios concretos e dando exemplos simples, que não devemos, não precisamos, nem temos de julgar o comportamento moral ou ético uns aos outros. Jesus veio libertar-nos desse fardo, dessa tarefa do julgamento, que obviamente não é humana e que a História e outras culturas e religiões nos têm mostrado o quão desumana pode ser. Para julgar o que quer que se seja – que não pertença ao âmbito da justiça de César – está cá Ele. A nós, assiste-nos a simples tarefa de acolher e respeitar. Amar o próximo.

A moral sexual. A preparação do Sínodo, em que pela primeira vez todos os batizados podem e devem participar, vai certamente revelar aos Bispos que um dos grandes fossos que separa os jovens da Igreja, a educação cristã da educação que os pais e as comunidades dão aos seus filhos, é a moral sexual. Aquilo que tanto baralha os jovens casais, os nossos filhos, são as diferentes propostas, os diferentes mundos por onde andam e com quem convivem. Os nossos noivos vivem quase todos em união de facto, os namorados não são castos, a homossexualidade não é tabu e em cada ano que passa há mais divórcios que casamentos.

Como conciliar tudo isto como a vida das paróquias, dentro dos movimentos ou nas comunidades cristãs. Como podem sentir-se os nossos filhos e jovens parte da Igreja quando lhes dizem que vivem em pecado, que a Igreja é para os puros e quando a maioria nem faz ideia o significado do pecado e do arrependimento, da castidade como virtude cristã, ou da diferença entre uma proposta feita pela Igreja e de uma condição para pertencer à Igreja? Num mundo em que a sexualidade é uma banalidade cedo demais, em que a complexidade desta dimensão na vida dos jovens os torna vulneráveis, sem critério e desorientados, a existência da dimensão espiritual no seu crescimento é uma urgência. E o Cristianismo, mais do que nunca, é a resposta. Só precisamos de saber acolher em vez de escolher.

A gravidade de tudo isto, deste fosso, não é fundamentalmente para a Igreja em si, enquanto instituição, e para a sua crise de fiéis – como se de uma crise de sócios ou de militantes se tratasse – , mas sim, para os jovens. Os jovens, ao afastarem-se da Igreja passam a ter de enfrentar este mundo complexo sozinhos, sem Deus, apenas e só porque na sua inocente ignorância não se acham dignos de entrarem numa Igreja. Sim, os nossos Bispos têm uma gigantesca tarefa pela frente.

Jesus estava a desenhar no chão, continuava pacientemente à espera que aqueles homens decidissem o que fazer com Maria Madalena: se a matavam pelo seu comportamento imoral ou se a deixavam viver. Só lhes fez uma pergunta e deixou-os com as suas consciências. Até que um a um acabaram por deixar cair as pedras.

São 14, as Obras de Misericórdia: sete espirituais e sete corporais. Se cada cristão soubesse e praticasse metade delas todos os dias, mais acolhíamos e menos excluíamos.

Inês Teotónio Pereira

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Tirado daqui

20 abril 2022

Dos nossos panteões pessoais *

Levy Strauss, nos Tristes Trópicos, cita Chateaubriand, mais ou menos assim - que a precisão não me acompanha hoje: 

Todos carregamos em nós um pequeno mundo composto por tudo o que vimos e amamos, a cujo santuário constantemente recolhemos, mesmo quando cruzamos e parecemos habitar um mundo estranho.

Cada um de nós tem os seus heróis - reais ou fictícios, que também com ficções se formam mentes. São pessoas que apreciamos, amamos, valorizamos, por quem temos apreço. São os escritores, os personagens mais marcantes da banda desenhada, os santos, os mártires, os amigos desaparecidos prematuramente, os músicos. Por outro lado, cada um de nós tem os locais das suas memórias, os livros, os cheiros. São, como já aqui escrevi um dia, as nossas famílias artificiais.

Beethoven, Bach, Eça, Mandela, Jesus Cristo, Corto Maltese, Santo Agostinho, João Paulo II, Vítor Damas, Yazalde, Melanie Safka, Janis Joplin, Amália e alguns poemas, o meu primeiro chefe na Lever, os padres que me ouvem, os amigos que me aconselham, os próximos que permanecem; rio de janeiro, praga, londres, áfrica, áfrica, áfrica, os açores; os grandes silêncios, as grandes conversas; o choro desinibido, a adolescência revisitada; os livros que me emocionam, as músicas que me elevam, a bondade que me comove.

O que une Beethoven, Corto Maltese e João Paulo II? Como junto pessoas que viveram em épocas diferentes, em realidades diferentes? No meu panteão pessoal. É nesse local que eles ganham uma importância semelhante, é lá que são verdadeiramente iguais, se irmanam num desiderato comum: fazer de mim uma pessoa melhor. Ali, nesse meu panteão, as diferenças não só se diluem, como potenciam a força que une estes e outros heróis. Ali nenhum é melhor do que o outro, porque são todos importantes. Por mais estranho que este raciocínio possa parecer.

Danielle S Allen, politóloga e escritora americana, escreveu muito sobre sociedade - sobre o que ela entendia ser uma connected society. Para ela há dois tipos de ligações: as bridging ties, que ligam pessoas diferentes, quer profissional, étnica, sócio-económica ou religiosamente, e as bonding ties, laços familiares, mais fáceis, que nos ligam à família e à comunidade imediata. E concluiu de forma evidente: as sociedades com mais sucesso são aquelas em que as principais instituições - escolas, universidades, empresas, órgãos políticos - promovem as bridging ties. Parece-me óbvio.

Os nossos panteões pessoais são micro-sociedades de sucesso, porque à volta de uma mesma mesa se junta a disparidade - Bach, Mandela, Santo Agostinho. Como poderíamos transformar estas micro-realidades em macro-realidades? De que forma o nosso panteão - todos os panteões juntos - tornaria as sociedades mais justas?  

Na minha mesa de cabeceira virtual está uma mala com as famílias artificiais que me compõem: o silêncio dos açores, o cosmopolitismo de londres, o requiem de mozart, o novo testamento, o logotipo da acreditar, o retrato dos meus mais próximos, o so long marianne do leonard cohen, o bom ladrão que pede para não ser esquecido. É lá que me recolho em tempos de borrasca interior.

Ver as famílias artificias dos outros pode ser um exercício de conhecimento alheio, mais do que de voyeurismo. Um activista anti-gay tem oscar wilde no seu panteão? Um fundamentalista religioso tem jesus cristo no seu panteão? Um pato-bravo da construção tem os açores como família artificial?

Para que serve este texto?

JdB   

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* publicado originalmente a 10 de Abril de 2014

19 abril 2022

Dos ritos

Nos últimos tempos tenho vindo a conversar amiúde sobre ritos religiosos, nomeadamente católicos, que são os que nos estão mais próximos e são mais familiares. No que a eles diz respeito, não há época melhor para os espreitarmos com interesse do que a Páscoa. Na verdade, o Tríduo Pascal é, por excelência, o momento dos ritos. Os ritos não se esgotam no interior de uma igreja: estendem-se à nossa vida social, familiar, profissional. São, como explica a Enciclopédia Católica Popular, actos executados de forma precisa por um grupo humano que lhes dá sentido. Um dicionário corrente dirá que são um conjunto de práticas de carácter mágico ou simbólico, executadas segundo ordem precisa e consagradas pelo uso ou pelas normas

A monarquia inglesa, plena de tradições e costumes, é, também ela, um esplendor de ritos. Num dos episódios da série Crown, de que já aqui falei, o Duque de Windsor, que chegou a ser Eduardo VIII, assiste, com amigos, à transmissão pela televisão da coroação da sua sobrinha como Isabel II. À medida que a cerimónia se desenrola o Duque explica o que se passa, e o que está por trás de cada gesto. Nota-se nele conhecimento histórico, informação detalhada - talvez alguma nostalgia por não ser ele o protagonista. A um dado momento um pálio cobre o trono onde a rainha será ungida com o óleo santo, e ela desaparece do campo de visão das câmaras. Alguém pergunta por que razão a unção com o óleo não é visualmente acessível a todos. O Duque de Windsor responde: porque somos apenas humanos. Na 6ª feira Santa é colocado um véu de ombros sobre as costas do celebrante para que ele leve, protegido e escondido, o viático para o sacrário, enquanto o povo canta o tantum ergo sacramentum. Somos apenas humanos.

Um rito não é uma sequência de gestos avulsos e desligados entre si, mas uma espécie de código com que os membros de uma mesma comunidade se identificam - e que os identifica. Um marciano surdo que vá a uma missa todos os domingos perceberá que, em momentos especiais no ano, as coisas se alteram, e saberá que esses momentos são especiais. Olhando à volta, e percebendo como os membros daquela congregação se comportam, perceberá que há, ali, uma comunidade, porque os ritos são seguidos por todos. O raciocínio aplica-se à maçonaria, a um clube ou a uma qualquer confraria espalhada pelo país. Os membros destas agremiações utilizam gestos que os identificam como membros dessa comunidade; e essa espécie de coreografia comum dá-lhes um sentimento de pertença. 

O raciocínio aplica-se, ainda, à dinâmica afectiva de um casal, na qual os gestos ritualistas criam um carácter diferenciador: são expressões que só os próprios conhecem ou movimentos executados a momentos certos. Esses ritos são um código amoroso que distingue aquela relação de todas as outras, como a adoração da Cruz identifica um momento distinto daquele em que se adora o Menino. 

Os maçons (imagino eu) poderiam reunir-se sem cumprir ritos que lhes são exclusivos? Sim, claro. Um casal poderia viver sem ter rituais próprios? Sim, claro. A Igreja Católica poderia viver sem o incenso, sem o tantum ergo sacramentum ou sem o véu de ombros? Sim, claro. Ninguém é melhor ser humano por causa de um rito. No entanto, todos seríamos menos felizes, porque perderíamos o sentimento de pertença a algo, porque os ritos são, também, os fios que reforçam ou que diferenciam o tecido das relações humanas. Sem ritos, ou com a desvalorização dos ritos, esse tecido fica mais fino, mais impessoal, menos perene, porque pouca coisa diferencia aquela pertença de todas as outras. Sem ritos não há pertença relevante e as nossas relações humanos transformam-se num somatório de pessoas, não num conjunto de pessoas.

Não sei se sou um homem de ritos porque acredito nisto que escrevi, ou se acredito nisto que escrevi porque sou um homem de ritos. É-me indiferente, em bom rigor.

JdB

18 abril 2022

Poemas dos dias que correm *

Pouco não me serve

Sou composta por urgências:
minhas alegrias são intensas;
minhas tristezas, absolutas.
Entupo-me de ausências,
Esvazio-me de excessos.
Eu não caibo no estreito,
eu só vivo nos extremos
Pouco não me serve,
médio não me satisfaz,
metades nunca foram meu forte!
Todos os grandes e pequenos momentos,
feitos com amor e com carinho,
são pra mim recordações eternas.
Palavras até me conquistam temporariamente...
Mas atitudes me perdem ou me ganham para sempre.
Suponho que me entender
não é uma questão de inteligência
e sim de sentir, de entrar em contato...
Ou toca, ou não toca.

Clarice Lispector

* tirado daqui

17 abril 2022

1º Domingo da Páscoa

EVANGELHO – Jo 20,1-9

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predilecto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.

15 abril 2022

6ª Feira Santa

 

Raising of the Cross (Rembrandt) 

14 abril 2022

Músicas dos dias que correm *

 


* sugerido pelo comentador anónimo do dia 8 de Abril de 2022

13 abril 2022

Vai um gin do Peter’s ?

NO “OBRIGADO” OS PORTUGUESES VÃO MAIS LONGE… 

Poucas palavras se aplicarão melhor ao mistério da Semana Santa do que o OBRIGADO/A. Até porque é a quadra em que o silêncio mais se sobrepõe. 

Uma boa visita guiada à etimologia desta palavra foi oferecida por Sampaio da Nóvoa, ao concluir uma conferência numa universidade do Brasil, em Dezembro de 2014. Querendo esmerar-se no agradecimento ao apoio e carinho que costumavam dispensar-lhe do outro lado do Atlântico, lembrou-se de discorrer sobre a etimologia dos termos mais usados nas línguas ocidentais para o agradecimento, avaliando-os à luz dos três níveis identificados pelo grande filósofo e teólogo da cristandade – S. Tomás de Aquino. Na escala traçada pelo italiano no «Tratado da Gratidão» começa-se (i) pelo mero reconhecimento, (ii) avança-se depois para a gratidão (iii) até se atingir o expoente ao estabelecer um vínculo. Nóvoa encontrou inúmeros exemplos linguísticos para os dois primeiros níveis, mas apenas o caso português para o patamar mais elevado, numa proeza linguística e talvez civilizacional incomum:



Escusado será dizer quanto esta conclusão foi ovacionada pelo público brasileiro, (em geral) falante brioso da língua portuguesa, claro que com as suas variantes específicas e algo diferentes da versão usada em Portugal. Aliás, Nóvoa começou a conferência a brincar com essa óbvia diferença (não apenas fonética), que levava muitos brasileiros a ter dificuldade em reconhecê-lo como falante da mesma língua.
 
No rol dos agradecimentos, aplica-se um «obrigado» a quantos se batem pela liberdade na ponta mais massacrada da Europa, conforme têm repetido ao líder da Ucrânia vários dos líderes ocidentais de diferentes latitudes, do Japão a Itália, passando pelo Parlamento britânico, para apenas citar alguns dos primeiros a posicionar-se nesta ofensiva tremenda. Porém, como bem alertou o líder religioso ortodoxo da Ucrânia, na raiz das agressões bélicas costuma medrar a mentira, uma enorme mentira, que alimenta a megalomania, um orgulho feroz, a inveja e um egoísmo insaciável. O vocalista dos U2 resumiu o engodo que é a guerra, ao citar uma frase celebrizada na Primeira Grande Guerra: a escolha dos que não têm de ir para o campo de batalha, jogando com o sangue dos novos para tentar fazer valer as suas ganâncias. A mensagem de Bono flui ao som da Ave Maria de Schubert, num dueto memorável com Pavarotti (passado na RAI Uno em 2003): 


Inocentes atirados para a morte por líderes cruéis foi uma constante a manchar a história da Humanidade. Quantos enfrentaram a morte por generosidade e com galhardia. Quantos continuam a morrer anónimos, atirados para o esquecimento.  Quando será possível deter a mão de Caim, como tem implorado o Papa Francisco. 

Com sentido de oportunidade, o Papa decidiu que a Via Sacra deste ano será rezada pelas famílias e na estação atribuída aos ucranianos estarão também russos de boa vontade, a ajudar a levar a mesma Cruz. A cruz salvadora de todos, que há dois milénios restaurou o vínculo entre o Céu e a Terra. Grazia e obrigado(a) talvez consigam dizer o essencial. Boa Páscoa a cada um! 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

11 abril 2022

Moleskine *

Dos vários modelos de coabitação do Homem não podemos descurar o que se refere ao dele consigo próprio. Não me atenho na capacidade que cada um de nós tem para viver sozinho, mas na aptidão que revelamos para nos desdobrarmos num ‘eu’ que se observa e num ‘eu’ que se deixa observar. No fundo, como se a individualidade fossem dois – personagem e crítico – de um mesmo solilóquio. Acredito que temos um espaço confinado por onde deambular interiormente, uma espécie de terreno virtual limitado onde podemos exercer este mister. Ora, assim sendo, a dimensão dos ‘eus’ – observado e observador – é fundamental. Se o primeiro ‘eu’ – que será sempre o dominante – se estender nesta virtualidade do espaço, pouco lugar há para o segundo ‘eu’. É o Princípio de Exclusão de Pauli aplicado à não-matéria. É este exercício desejável - ou mesmo possível?


[Gregory Tapescu, in Há espaço para dois 'eus'? (Edição do Autor, Bucareste, 2010, traduzido por A. L. Andrade)]

Alberto lia, com vagar e cansaço, este artigo que lhe tinham mandado. Meditava sobre a verdadeira dimensão deste texto, como se adequaria às meditações que vinha fazendo e onde as expressões pequeno e pequenez assumiam foros de protagonismo. Leu e releu, e reforçou as suas convicções.

Sempre tivera a desadaptada e inútil mania de se fixar nas inutilidades da vida, pelo que não estranhou ter olhado mecanicamente para o relógio quando tocaram à campainha. Eram 15.51h, e percebeu que tão cedo não haveria outra capicua horária. Não que isso fizesse diferença para a rotina das marés ou para a constância das luas, mas mesmo assim era uma coincidência. Talvez não significativa, como referia Jung, mas seguramente curiosa. Um minuto de diferença e o relógio revelaria umas desinteressantes 15.50h ou 15.52h sobre as quais não poderia discorrer-se, muito menos filosofar.

Sou a nova vizinha do rés do chão. Arranja-me um pé de salsa?

Alberto já a conhecia – mas do capacho. Nesta tendência permanente, quiçá de uma limitação patológica, de pregar a sua atenção nas menoridades do quotidiano, deu em tecer considerações íntimas sobre tapetes de esparto e tipos de pessoas. O que motiva o simples mortal a comprar este ou aquele modelo? Há algum sinal exterior de onde possa inferir-se uma formação académica, um nível social ou financeiro, uma opção de vida? De facto, percebera que a vizinha usava um modelo que fazia publicidade a uma bebida energética, algo que ele nunca experimentara por temor dos efeitos. O que revelava aquele capacho por comparação com o seu, trivial e esfiampado nas orlas? 

A frase

Sou a nova vizinha do rés do chão. Arranja-me um pé de salsa?

fora proferida por uma mulher bonita, elegante, com umas calças justas, botas até ao joelho e decote sensual.  Imaginou-a, face a uma camisa caprichosa, a hesitar entre apertar o botão, e revelar pudor, ou não apertar, e mostrar volúpia. A vizinha estava de frente para ele, o que era vagamente perturbador, porque Alberto gostava agora de apreciar as mulheres ligeiramente por trás, para lhes descortinar os contornos - a ondulação elegante de umas costas, o desenho de um pescoço ou de um pedaço da maçã do rosto, um braço em ângulo que esconde o perfil de uns seios discretos. Apesar disso fixou a frase que lhe abriu uma possibilidade com tendências para certeza. Ele, Alberto, tinha sido observado nas suas entradas e saídas de casa e o pedido da vizinha, mais do que a necessidade de um raminho de Petroselinum crispum (outra inutilidade cultural) era uma porta que se abria, um convite, um desafio, uma hipótese, uma sugestão.

Imaginou-se a dizer-lhe que sim, a convidá-la a entrar, a levá-la à cozinha, a abrir a porta do frigorífico e ela a dizer deixe, beije-me, abrace-me e a querer fazer amor em cima da ilha de fórmica revestida a silestone, a desejar viver a loucura dos amores proibidos, dos corpos enroscados, das mãos peregrinas e exploradoras, das bocas ávidas, dos peitos desnudos e ofegantes, dos lábios frementes, da vizinhança solidária levada ao esplendor do desejo e da oferta, e ele a dizer sim, sim, era por si que eu esperava,  e a cobri-la de beijos e de luxúria, de frases tórridas, de mãos que se abrem além da possibilidade humana, de cinco dedos que são escassos para a voragem erótica que altera o eixo da terra num meio de tarde outonal.

Se calhar não tem... Deixe. Olhe, não leve a mal, mas tem um fio de caldo verde na barba...

Alberto olhou para o relógio. Eram 15.52 e tão cedo não haveria outra capicua.

JdB     
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* publicado originalmente a 25 de Outubro de 2012

10 abril 2022

Domingo de Ramos

Evangelho Lc 19, 28-40

Naquele tempo, Jesus caminhava à frente dos seus discípulos,
subindo para Jerusalém. Quando Se aproximou de Betfagé e Betânia,
perto do monte chamado «das Oliveiras», enviou dois discípulos, dizendo:
«Ide à povoação aí em frente e, ao entrardes nela, encontrareis um jumentinho preso,
que ninguém montou ainda. Soltai-o e trazei­-o. Se alguém perguntar porque o soltais,
respondereis: “O Senhor precisa dele”». Os enviados partiram e acharam tudo como Jesus lhes tinha dito. Quando estavam a soltar o jumentinho, disseram-lhes os donos:
«Porque soltais o jumentinho?» Eles responderam: «O Senhor precisa dele». Trouxeram-no então a Jesus e, estendendo as suas capas sobre o jumentinho,
fizeram com que Jesus montasse sobre ele. Enquanto Jesus avançava,
o povo estendia as suas capas no cami­nho.
E quando Ele Se aproximava da descida do Monte das Oliveiras,
toda a multidão dos discípulos começou a louvar alegremente a Deus, em alta voz,
por todos os milagres que tinham visto.
E diziam: «Ben­dito o que vem como Rei, em nome do Senhor!
Paz no céu e glória nas alturas!» Alguns fariseus, do meio da multidão disseram a Jesus:
«Mestre, repreende os teus discípulos». Mas Jesus respondeu:
«Eu vos digo: se eles se calarem, gritarão as pedras».







07 abril 2022

Textos dos dias que correm

A Vantagem da Frivolidade

O respeito que a tragédia inspira é muito mais perigoso do que a despreocupação de um chilrear de criança. Qual é a eterna condição das tragédias? A existência de ideias, cujo valor é considerado mais alto do que o da vida humana. E qual é a condição das guerras? A mesma coisa. Obrigam-te a morreres porque existe, dizem, alguma coisa que é superior à tua vida. A guerra só pode existir no mundo da tragédia; desde o começo da sua história, o homem apenas conheceu o mundo trágico e não é capaz de sair dele. A idade da tragédia só pode ser encerrada por uma revolta da frivolidade. As pessoas já só conhecem da Nona de Beethoven os quatro compassos do hino à alegria que acompanham a publicidade dos perfumes Bella. Isso não me escandaliza. A tragédia será banida do mundo como uma velha cabotina que, com a mão no peito, declama em voz áspera. A frivolidade é uma cura de emagrecimento radical. As coisas perderão noventa por cento do seu sentido e tornar-se-ão leves. Nessa atmosfera rarefeita, desaparecerá o fanatismo. A guerra passará a ser impossível.

Milan Kundera, in "A Imortalidade"

06 abril 2022

Moleskine

 Por inerência de funções assisto a muitas reuniões sobre a situação da comunidade da oncologia pediátrica na Ucrânia: evacuação, em primeiro lugar, para a Polónia onde é feita uma primeira triagem; as crianças em condições mais difíceis ficam na Polónia; as outras vão sendo encaminhadas para países europeus, mas também EUA e Canadá. Tal como já referi, neste estabelecimento ou noutro local, para Portugal não veio nenhuma criança. É certo que Portugal está longe e não é um centro de referência importante para nenhuma patologia. No entanto, o motivo principal para a não vinda de crianças é a burocracia portuguesa. Ao que parece, o governo requer a activação de uma protocolo burocrático europeu incompatível com situações de guerra (à luz do dia de hoje já só Portugal o requer) e, ao que parece, esse requisito prende-se com dinheiro: se se activar, vem dinheiro de Bruxelas; se não se activar, não vem...

As associações europeias de pais e doentes de crianças com cancro são incansáveis na recepção e no apoio a estas famílias: ajudam na organização dos transportes, na recepção e encaminhamento das famílias, na entrega de bens essenciais - por vezes uma simples escova de dentes; garantem tradutores, apoio psicológico, informações básicas. E asseguram comida, o que gera curiosidades culturais. Na Suiça assegurou-se refeições para muita gente: arroz, massa, bulgur, vegetais. Mas o que as famílias querem é batatas, que é isso que comem... Enfim, estamos sempre a aprender.

***

Todos nós já ouvimos pessoas dizerem que, ao dedicarem-se a uma determinada actividade, perderam uma parte significativa da sua vida pessoal. So many good things in life I overlooked, cantaria Bob Dylan (frase que ouvi ontem). São médicos, investigadores, exploradores, profissionais de misteres muito específicos. Perdem o crescimento dos filhos, o amor das pessoas com quem vivem, a vida social, os cinemas ou os concertos ou as exposições. O que perdem situa-se em muitas áreas; o que ganham é numa área só. Faz sentido fazer uma contabilidade? Entre o crescimento dos filhos ou uma inovação médica que altera a vida a muitas pessoas, o que tem mais peso? Entre uma vida social ou uma exploração a um local inóspito, o que se escolhe? Entre um casamento ou uma volta ao mundo sozinho num barco à vela, para que pende a nossa balança?

Talvez a resposta seja aquilo que já aqui referi esta semana: depende...

JdB 


04 abril 2022

Do que faz sentido mudar e não faz sentido mudar

Janto há umas semanas com amigos, uns com filhos(as) já casados, outros com filhos(as) ainda por casar. Fala-se de tradições: a noiva que dá a boda e o noivo que monta casa, os números de convites para cada um dos lados, o texto a colocar no convite, etc. Percebe-se que a tradição é algo fluido, pouco estático: numa grande parte dos casos o casamento é oferecido por ambos os lados, mas a noiva ainda entra pelo braço do pai; muitos casais avançam para o casamento após um período mais ou menos longo de coabitação, mas a noiva ainda quer ir de branco. Há Pais que acham que devem pagar a boda e, com isso, impor o número de convites a disponibilizar ao lado do noivo, mas a festa já é, quase sempre, dos noivos.

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Almoço há uns dias com um amigo, e conversamos sobre Igreja. Falamos de tradições, de hábitos, do que faz sentido mudar, ou mesmo se faz sentido mudar. Lembro-me de duas posições críticas - iguais mas de sentidos opostos - à Igreja Católica: uma posição diz que o mal da Igreja é manter-se ancilosada em posições antigas, que não fazem sentido; no fundo, que a igreja não se actualiza. A outra posição diz que o mal da Igreja é achar que deve actualizar-se, acompanhar os tempos; devia estar menos preocupada em navegar ao sabor do tempo.

Onde me situo eu, quer na história dos casamentos, quer na história da Igreja? Na posição mais fácil, naquela que diz confortavelmente: tudo depende. Já não faz sentido que seja a noiva a pagar a boda (excepto se o pai da noiva puder e quiser) mas faz sentido que a noiva entre pelo braço do pai. Não faz sentido a abstinência do consumo de carne nas 6ªs feiras da Quaresma, mas faz sentido que os padres andem vestidos de padre. Podemos falar das senhoras com véu, da missa em latim, da moral sexual, etc.

Percebo que a prática religiosa não deve assentar numa ideia de supermercado: sirvo-me do que quero ou me dá jeito. Sei que as regras não devem ser relativas, que não podemos deixar ao livre arbítrio de cada um o que fazer ou não fazer, o que cumprir ou não cumprir. Sei também que ser católico é fácil, requer pouco esforço, que as regras são poucas e pouco cumpridas. Porém, por outro lado, também sei que há regras que não fazem sentido à luz dos tempos modernos. No entanto...

Podia ficar aqui até amanhã a perorar sobre o assunto, mas falta-me o tempo e sobra-me a compaixão pelos meus leitores. O que fazer, então? Depende...

JdB      

03 abril 2022

V Domingo da Quaresma

EVANGELHO – Jo 8,1-11

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
Jesus foi para o Monte das Oliveiras.
Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo,
e todo o povo se aproximou d’Ele.
Então sentou-Se e começou a ensinar.
Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus
uma mulher surpreendida em adultério,
colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus:
«Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério.
Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres.
Tu que dizes?».
Falavam assim para Lhe armarem uma cilada
e terem pretexto para O acusar.
Mas Jesus inclinou-Se
e começou a escrever com o dedo no chão.
Como persistiam em interrogá-l’O,
ergueu-Se e disse-lhes:
«Quem de entre vós estiver sem pecado
atire a primeira pedra».
Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão.
Eles, porém, quando ouviram tais palavras,
foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos,
e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio.
Jesus ergueu-Se e disse-lhe:
«Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?».
Ela respondeu:
«Ninguém, Senhor».
Disse então Jesus:
«Nem Eu te condeno.
Vai e não tornes a pecar».

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