15 julho 2022

Das mudanças *

 A noção de aperfeiçoamento, o auto-conhecimento, a ambição do Céu como recompensa máxima, o sentido de sobrevivência ou o desejo de agradar atiram-nos para a mudança. A mudança é, paradoxalmente, a única constante da vida, e devemos mudar - ou pelo menos estar dispostos a. Não falo da mudança de emprego, de casa, de mulher ou de cão. Falo da mudança do que somos.

No livro Lo Specifico del Dottor Menghi (Italo Svevo) este cria um remédio que lhe anularia todas as emoções e lhe permitiria, por isso, criar melhor, pois as emoções só atrapalham o trabalho do artista. Esta pílula milagrosa (e o itálico reflecte alguma ironia...) provoca, obviamente, uma mudança profunda em quem a tomasse. Deixemos este caso mais radical e no domínio de uma certa ficção e baixemos ao terreno comezinho que é a nossa existência corriqueira: pode haver curas que matem um homem? Pode haver mudanças que nos descaracterizem de tal forma que possamos dizer que determinada cura matou determinada pessoa?

Somos egoístas, vaidosos, directivos, forretas, adictos, rancorosos, orgulhosos, preguiçosos. Apaixonamo-nos pelos outros apesar dos defeitos ou por causa dos defeitos? Até que ponto uma mudança pode ser de tal forma intensa que a pessoa já não é a mesma, foi despida do que a caracteriza para manter apenas uma pele? No fundo, como se fossemos uma roupagem que permanece sobre um interior que se altera em função das circunstâncias. E então, o manuel é um número de contribuinte perene, porque aquilo que ele é dentro de si é caduco. Quem é, então, o manuel?

Podemos replicar o raciocínio a uma potência infinitamente ridícula: o tratamento que elimina a agitação à maria e lhe dá, por isso, uma certa indiferença que ela nunca teve, curou ou matou? As cirurgias plásticas (por questões estéticas apenas) curam pessoas ou matam pessoas? Vou mais longe, usando um termo sensível: o prolongamento artificial da vida. O que significa, na realidade, prolongamento artificial? Significa que a vida tem um tempo definido? Alguém que se habituou a estar à cabeceira de moribundos afirmava que fica sempre algo de belo, quanto mais não seja a cor de uns olhos. Talvez matemos as pessoas - apesar de as mantermos vivas - quando já não as conhecemos, já não lhes revemos os beijos, o cheiro da pele, a tristeza dos outonos, os risos límpidos. 

Podemos curar e com isso curar, mas podemos curar e com isso matar. A diferença é tudo, e talvez não tenha importância, afinal...

JdB 

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* publicado originalmente a 16 de Outubro de 2014

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