Para o A., no Céu de onde olha para nós.
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Passavam cinco minutos das nove da manhã de ontem quando recebi a mensagem esperada: uma prima minha tinha morrido. Fui vê-la no sábado e não evidenciou sinal algum de que se tinha apercebido da minha presença. Talvez fruto da doença ou dos cuidados paliativos, estava já no mundo dela, de sossego e espera. Não sei se sentiu as minhas festas; não sei se ouviu a graça que dizíamos um ao outro sempre que falávamos ao telefone: olhe A., olhe agora, olhe a casa da... O facto de não ter evidenciado que sentia ou ouvia não quer dizer que não sentisse ou ouvisse. Talvez sim ou talvez não, é pouco importante.
Há pouco mais de dois anos, no decurso da venda de uma quinta de família, escrevi o parágrafo abaixo:
Por circunstâncias próprias do meu crescimento e da minha vida familiar / social, fui consolidando a ideia de que a família não era o sangue. Podíamos sentir-nos mais familiares de uma vizinha de quem sempre fomos próximos do que de um primo direito a quem nada nos ligava. Não obstante, fui sendo educado - por via de uma capilaridade, não de uma instrução - que a família era o sangue; ou que era muito o sangue. A idade, a experiência ou uma certa sorte, permitiu uma convicção: família é tudo. Ou seja, o não sangue, mas o sangue também. Por vezes o que nos define como família não é, nem a proximidade, nem a semelhança de idades, nem uma convivência próxima, mas uma certa ideia de património imaterial que nos é comum por via de um nome de família.
Esta minha prima era da minha família em todos os aspectos: era do meu sangue e era do meu afecto. Tínhamos um nome em comum e tínhamos um património em comum: histórias, acima de tudo, porque os imóveis quase não existiam. Talvez a família se torne mais importante à medida que envelhecemos e realizamos que temos mais passado do que futuro. Conversar com ela - e com os irmãos, únicos primos direitos deste lado - era percorrer um território conhecido, familiar. Era, de certa forma, um regresso a casa. Saber que foi para o Céu é perceber, no meu pequenino egoísmo, que a minha casa afectiva está mais pequena, irremediavelmente mais pequena. Na última meia dúzia de anos foi-se esvaziando com uma rapidez injusta, porque levou gente a quem faltavam muitos anos para cumprir a estatística da esperança de vida.
Tive um desgosto grande com a morte desta minha prima. Um desgosto que não se compara ao dos filhos, netos e irmãos mas, não obstante, um desgosto. Porque era minha amiga, porque era muito boa pessoa - e porque era da minha família do coração. E porque, apesar de tudo o que a vida nos ensina, ainda nos custa aceitar que nunca mais veremos alguém de quem gostamos muito. Perde-se uma fonte de informação, uma fonte de amizade, uma presença regular na mesa onde celebrávamos datas específicas. O que se ganha, porque também se ganha, ainda que dolorosamente? A certeza da efemeridade das coisas e das pessoas, a evidência de que aquilo que separa a vida da morte é um fio de cabelo; entre estar e deixar de estar há um pedaço de nada.
Resta-nos lutar pelos que nos são mais próximos, para que permaneçam próximos e para que possamos usufruir do futuro desconhecido que temos até que vislumbremos a curva da estrada. Se estas mortes prematuras não nos derem discernimento, então tudo é vão.
JdB
Um forte abraço. Obrigada pela lembrança porque continuamos, e apesar da idade, a pensar que amanhã diremos aquilo, faremos aqueloutro e repetimos ausências de que em breve nos arrependerás.
ResponderEliminarObrigado pelo comentário. Nalguns aspectos da vida, "amanhã" não existe - ou não deveria existir. Aquilo que não dissermos hoje ou não fizermos hoje talvez não digamos ou façamos amanhã, porque há um carro desgovernado, uma análise traiçoeira, a curva do caminho. O que se adiar para amanhã pode ser em vão.
ResponderEliminarEstou contigo nestas horas tristes e difíceis.
ResponderEliminarGrande abraço,
fq
Adorei este seu Adeus a Anico.
ResponderEliminarJoao
disse tudo o que se sente mas não se sabe por em palavras
Bj catarina
4 meses depois continuo a ler um dos testemunhos que mais gostei e cada vez que o faço acrescenta sempre qualquer coisa. Obrigada por confortar o meu coração. É e será sempre uma lição de vida. Mais não seja pelo entusiasmo e orgulho que a minha M falava do querido primo. Bjs grandes K
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