Alfredo tinha 67 anos e uma melena loira rebelde. Era um homem bem constituído, fruto de uma genética favorável e de um cuidado militante com a alimentação e o desporto. Apesar da idade, via invulgarmente bem, pelo que não usava óculos; o cabelo, bem cortado, era ainda farto, e vestia-se de forma clássica mas moderna. Na importante arte da conversa era fluido, falando de temas variados com uma segurança que lhe advinha da curiosidade, não da sapiência. Se sabia, partilhava; se não sabia, perguntava. Tinha uma noção muito certa da duração das histórias: uma graça conta-se em três pinceladas, porque o excesso de pormenor não acrescenta valor, muito pelo contrário. Era uma boa companhia, aderindo a programas díspares sem qualquer preconceito: ia se o divertia ou se lhe espicaçava o interesse, independentemente de ser num palácio bem conservado ou numa agremiação desportiva com uma certa decadência.
Foi numa festa de cariz popular que se cruzou com a Paula. Encostado a um pilar com um copo de cerveja na mão, observava as pessoas a dançar, naquela espécie de exorcismo que parece caracterizar a dança de hoje em dia. Alfredo tinha da dança uma visão diferente: era, acima de tudo, um ritual de acasalamento ou uma manifestação de afecto, embora percebesse aquela agitação frenética de pessoas que querem expulsar demónios que assumem a figura de stress do trânsito, de um chefe intolerável, de um ordenado que não chega ao fim do mês ou de uma conjugalidade que já conheceu melhores dias. As pessoas dançavam - mas já não dançavam com ninguém.
Paula aproximou-se e disse-lhe uma graça: se pode usufruir da agitação dos Duran Duran, porque prefere o imobilismo de uma coluna? Ele sorriu e atirou-se com destreza modesta à pista. Nos minutos seguintes conversaram (alto, para vencer o som ambiente) e dançaram, falaram de trivialidades e dos sítios que tinham sido locais um do outro numa juventude mais distante. Embora Paula e Alfredo não se conhecessem, identificavam os sítios, os rituais, as expressões. E isso levava-os a rir e, pelo menos do lado de Alfredo, a perspectivar uma noite interessante que não sabia onde podia terminar. Alfredo sentia-se novo, interessante e interessado, disponível para uma aventura, por mais inocente que fosse. Não precisava de óculos para ver as feições interessantes de Paula a agitar-se ao som de uma música mais frenética, e porventura mais ruidosa do que ele gostaria. Em bom rigor, tudo em Alfredo estava bem conservado - apenas a audição o traía. Talvez traição não fosse a palavra certa, porque a surdez chegava com a idade, não à socapa.
Paula aproximou-se e disse-lhe: gostaria de beber um copo em minha casa no fim da festa? Alfredo tinha 68 anos e uma melena loira rebelde. Apesar dos olhos de águia tinha uns ouvidos de mouco e não compreendeu a pergunta, pelo que respondeu: não percebi... Para surpresa dele viu Paula corar brevemente e sentiu o sorriso dela esmorecer de timidez. Não percebi... Paula disfarçou, agitou o corpo com gosto e, chegando-se a ele numa distância toda cheia de pudor e vergonha, ripostou: perguntei se gostava dos Roxy Music...
JdB
Vamos lá... Mais outro bom conto.
ResponderEliminarTranquilamente [antes era Tranqüilamente] creio que a minha previsão me conduz a um orgulho algo paternal...
Abraço