31 maio 2024

Crónica de um viajante à África do Sul (III)

Chegámos à Cidade do Cabo no sábado. Estamos em África, mas o diálogo poderia ser curioso:

- então que animais já viram?
- pinguins, focas e baleias... 

É uma cidade fantástica que merece uma visita. É uma cidade relativamente barata, onde se come bem - e em quantidades muito apreciáveis - por pouco dinheiro. Um jantar muito simpático pode custar menos de 30€. O transporte em Uber - um serviço rápido e simpático, com motoristas quase exclusivamente do Zimbabwe - é muito barato

A cidade tem uma frente de mar igualmente bonita (da qual coloco algumas fotografias) que é larga, comprida, espaçosa, e que a contorna durante vários quilómetros. 

As pessoas são simpáticas, educadas e civilizadas. Não se buzina, há cumprimentos permanentes, toda a gente sorri e está disponível para ajudar. 

Fora do Centro da Cidade (porei algumas fotografias nos próximos dias) há praias fantásticas, em enseadas rodeadas de boas casas. 

A segurança é ainda boa, ao contrário de Joanesburgo onde parece que já não é aconselhável andar na rua. O Cabo vive ainda uma realidade globalmente diferente, embora haja sítios - como em todo o mundo - menos aconselháveis. 

Tive uma oportunidade de vir à Cidade do Cabo há 30 anos, talvez. Por diversos motivos não vim, mas já tinha vindo a Pretória e Joanesburgo em 1981, ainda nos tempos do apartheid. Talvez seja melhor vir só agora - aprecio a cidade com outros olhos, comparando o que vejo com o que vi noutros sítios. e tenho mais vagar para tudo.

De tudo o que conheço do mundo, a Cidade do Cabo está seguramente no top ten. Ao contrário do que senti na Malásia / Singapura ou na Índia, vir aqui não é uma experiência, como agora se diz. Estamos num mundo ocidental. Porém, apesar de não ser uma experiência, é um local onde gostaria de voltar. 

Amanhã parto partimos para Joanesburgo, sábado zarpamos para o Kruger, para um misto de trabalho e lazer

JdB

As fotografias abaixo são da zona de Sea Point / Green Point




30 maio 2024

Santissimo Corpo e Sangue de Cristo

Evangelho segundo São Marcos 14,12-16.22-26.

No primeiro dia dos Ázimos, em que se imolava o cordeiro pascal, os discípulos perguntaram a Jesus: «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?».
Jesus enviou dois discípulos e disse-lhes: «Ide à cidade. Virá ao vosso encontro um homem com uma bilha de água. Segui-o
e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa: "O Mestre pergunta: onde está a sala em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?".
Ele vos mostrará uma grande sala no andar superior, alcatifada e pronta. Preparai-nos lá o que é preciso».
Os discípulos partiram e foram à cidade. Encontraram tudo como Jesus lhes tinha dito e prepararam a Páscoa.
Enquanto comiam, Jesus tomou o pão, recitou a bênção e partiu-o, deu-o aos discípulos e disse: «Tomai: isto é o meu corpo».
Depois, tomou um cálice, deu graças e entregou-lho. E todos beberam dele.
Disse Jesus: «Este é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens.
Em verdade vos digo, não voltarei a beber do fruto da videira até ao dia em que beberei do vinho novo no Reino de Deus».
Cantaram os salmos e saíram para o monte das Oliveiras.

Textos dos dias que correm

 O Peso Bruto da Irritação

Se fôssemos contabilizar as paixões desta vida, os ódios e os amores, os grandes sobressaltos, as comoções, os transtornos, os arrebatamentos e os arroubos, os momentos de terror e de esperança, os ataques de ansiedade e de ternura, a violência dos desejos, os acessos de saudade e as elevações religiosas e se as somássemos todas numa só sensação, não seria nada comparada com o peso bruto da irritação. Passamos mais tempo e gastamos mais coração a sermos irritados do que em qualquer outro estado de espírito.

Apaixonamo-nos uma vez na vida, odiamos duas, sofremos três, mas somos irritados pelo menos vinte vezes por dia. Mais que o divórcio, mais que o despedimento, mais que ser traído por um amigo, a irritação é a principal causa de «stress» — e logo de mortalidade — da nossa existência.

É a torneira que pinga e o colega que funga, a criança que bate com o garfinho no rebordo do prato, a empregada que se esquece sempre de comprar maionnaise, a namorada que não enche o tabuleiro de gelo, o namorado que se esquece de tapar a pasta dentrífica, a nossa própria incompetência ao tentar programar o vídeo, o homem que mete um conto de gasolina e pede para verificar a pressão dos pneus, a mania de pôr o pacotinho vazio de açúcar debaixo da chávena de café, a esferográfica de Mário Crespo... é por estas e por outras que as pessoas se suicidam. E têm toda a razão.

É nos engarrafamentos, na bicha do supermercado ou do multibanco, no cinema atrás do cabeçudo que não nos deixa ver, no autocarro cheio de gente, que somos diariamente irritados. Há-de reparar-se que as pessoas que mais nos irritam são as que estão à nossa frente. São estas as pessoas que demoram, que levam horas a tirar o porta-moedas para pagar o táxi, que insistem em passar um cheque para comprar um quilo de cebolas e uma embalagem de Super-Pop, que se mexem na cadeira e desembrulham rebuçados durante a cena mais dramática do filme, que têm um tempo de reacção ao semáforo verde de aproximadamente 360 segundos, que pagam as contas da água, da luz e do telefone ao Multibanco, que se esquecem de tomar banho antes de usar um transporte público e depois insistem em esfregar-se contra quem tomou.

Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'

29 maio 2024

Crónica de um viajante à África do Sul (II)

 Nunca gostei de ir ao barbeiro; gostei sempre de sair de lá - não pelo horror inerente, que não tinha, mas porque tinha o cabelo cortado. Era, por assim dizer, a alegria que advinha de um serviço comprido. A lembrança mais interessante que tenho de um barbeiro é da Barbearia Campos, ao Chiado, onde cortei o cabelo enquanto miúdo. Gostava da dimensão do estabelecimento, do alinhamento das cadeiras e da senhora que, sentada numa cadeira e com um ar educadamente íntimo, arranjava as unhas aos fregueses de mais idade. 

Entrei neste cabeleireiro no centro comercial Victoria & Alfred na Waterfront, Cidade do Cabo. Fi-lo, não por necessidade de desbastar a gaforina (precavi-me disso antes de partir de viagem) mas por absoluto fascínio. Criado por um inglês amigo do Príncipe Filipe de Inglaterra (atestado por fotografias) é agora gerido pelo genro, que também foi cabeleireiro / barbeiro - um homem simpático que me pacificou com os produtos pós-barba, depois de me ter oferecido uma loção não alcoólica onde deitou um pingo de água de colónia. Eu, que não uso nada, estive a pontos de adquirir bálsamos benfazejos. 


Tal como dizia a um amigo a quem enviei estas fotografias, estabelecimentos como este fazem parte de um Portugal que nunca existiu, ou desapareceu. Aqui, cortar o cabelo ou aparar a barba são experiências, como agora se diz; não são coisas de índole prática. Eliminado o branco decorativo dos cabeleireiros actuais que revela uma assepsia que maça, estamos em casa, ou numa casa que nunca tivemos mas que suscita um certo fascínio. Ficamos então rodeados de artigos que nos atiram para um tempo em que havia vagar, havia estética, havia objectos de madeira e, talvez mesmo, objectos pouco práticos. 30 minutos aqui e sai-se com o cabelo cortado - e a alma lavada. 

JdB 

28 maio 2024

27 maio 2024

Crónica de um viajante à África do Sul (I)

 

Há em todos nós, creio eu, uma dose grande de preconceito à espera do momento certo para se revelar. Por mais tolerantes que sejamos, somos xenófobos quando vemos chineses a falar muito alto, ou racistas (num certo sentido mais comum) quando nos confrontamos com negros a ouvirem música aos gritos. Na mesma linha, reside em nós um grande amor às crianças até elas nos matarem o sossego num avião ou numa esplanada onde ouvimos um trio de jazz a tocar; e adoramos os jovens até os vermos enroscados aos beijos num lugar público, a falar alto de chapéu de pala e com os pés em cima do sofá. 

Obviamente que o contraponto a este argumento é simples: nós não somos xenófobos, nem racistas, nem intolerantes, nem o que quer que seja - limitamo-nos a não gostar de falta de educação ou daquilo que nos parece ser falta de civismo. Não é bem assim. Viajar de avião, andar em aeroportos, estar em sítios públicos é um convite à revelação do que há de pior em nós: num momento bramamos contra o turismo, no momento a seguir lembramos - com saudade e uma lágrima furtiva - o tempo em que viajar era uma actividade de elite, em que andar de avião algo diferente de um desporto de massas. 

Cruzei-me com este cartaz à porta do Azoka - um restaurante, bar e lounge - na Cidade do Cabo. O dress code é simples e claro: não aceitam clientes com fato de treino, camisolas com capuz, chapéus, vestuário desportivo, calções, havaianas ou mochilas. Num certo sentido, o Azoka é um eliminador de raivas e uma ferramenta para o bom feitio. Janta-se no Azoka, bebe-se uma cerveja no Azoka, e nada nos fazer ser racista, xenófobo, intolerante ou snob. Disciplinados pela estética e pela regra, revela-se em nós um pouco de paraíso.

JdB

26 maio 2024

Solenidade da Santíssima Trindade

 EVANGELHO – Mateus 28,16-20

Naquele tempo,
os onze discípulos partiram para a Galileia,
em direção ao monte que Jesus lhes indicara.
Quando O viram, adoraram-n’O;
mas alguns ainda duvidaram.
Jesus aproximou-Se e disse-lhes:
«Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra.
Ide e fazei discípulos de todas as nações,
batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei.
Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».

23 maio 2024

22 maio 2024

Vai um gin do Peter’s ?

 COMO A ARTE COMUNICA SEM PALAVRAS

A superlativa companhia de dança moderna calha ser norte-americana e, por discriminação positiva, apenas composta por afro-descendentes – a Alvin Ailey American Dance Theater. Criada em 1958 pelo texano que dá nome à companhia, concebe a dança como uma expressão ao alcance de qualquer ser humano, como costumava dizer: "Dance is for everybody. I believe that the dance came from the people and that it should always be delivered back to the people». 

Alvin Ailey, fundador da companhia de dança com o seu nome, em 1958, em Nova Iorque.

Quem já assistiu a actuações dos Alvin Ailey, ao vivo, confirma-lhes a excelência, equiparável ao melhor ballet clássico, distinguindo-se apenas pelo gosto de cada um, quando calha haver gostos muito segmentados.  Na sua história já longa, a Companhia junta, frequentemente, os belíssimos espirituais negros com um sublime ballet de vanguarda, numa fusão de expressões artísticas de uma beleza comovente:  

Tudo no palco transborda harmonia e uma eloquência narrativa, apenas sustentada em gestos loquazes, certeiros, maravilhosamente orquestrados entre os dançarinos, que formam centopeias dançantes, quando actuam em uníssono. Os sons impregnam a tal ponto os movimentos e as poses coreográficas, que a música também irromperá daqueles corpos ágeis e comunicativos. A suprema naturalidade dos seus gestos eleva a plasticidade humana a um patamar notável, embora flua com tal facilidade, que chega a parecer óbvio e universal… Pura ilusão essa aparente simplicidade, que implica um trabalho hercúleo em contínuo. 

Os cenários estilizados e decorativos, a par da alegria do guarda-roupa, imprimem um ritmo colorido e festivo às coreografias, adensando a mensagem central desenhada por proezas corporais harmoniosas, que pertencem ao argumento, sem exibicionismos laterais. A fusão entre os movimentos dançantes e a música atinge tal depuração artística, que suplanta a mera exibição atlética, por assombrosa que seja, e também é.

Do lado de cá do Atlântico, várias galerias de exposição em Londres resolveram dar vida a telas famosas, através de um método cinematográfico que envolve o público na experiência pictórica imortalizada pelos pintores. Na chamada “frameless art experience” recorre-se à nova arte imersiva, em que várias expressões artísticas têm dado os primeiros passos, da música ao teatro, passando pela pintura, que assim simula a terceira dimensão. Numa tela de Rembrandt, mergulhamos no mar tempestuoso do episódio bíblico onde a barcaça dos apóstolos é açoitada por ondas aterradoras, no mar da Galileia, até que assoma no horizonte a figura de Cristo, imune à intempérie e salvador dos apavorados discípulos, pois só à palavra do Senhor da criação as águas amainaram definitivamente: 

Frameless Exhibition London, Christ in the Storm on the sea of Galilee... | frameless london | TikTok

Neste itinerário imersivo, Monet, Caravaggio, Dalí, Klimt transbordam das molduras para preencher todo o espaço, envolvendo o público em 360º: 

https://www.youtube.com/shorts/Kqq7GaPKb0g

Se em Londres o truque provém dos avanços tecnológicos, em Nova Iorque, o mérito está no trabalho árduo, empenhado de cada participante. Ao estilo pragmático dos americanos, também foi criada uma unidade para o cidadão comum – a The Ailey Extension, onde se prometem «Real Classes for Real People». O slogan soa anedótico, mas é evidente o nível de elite da companhia profissional, que quase desconhece a força da gravidade… As imagens explicam por que há lugar para todos, enquadrando-se cada um no contexto que melhor lhe quadra: 

De um lado, voa-se e… 

… no outro, aproveitam-se as aulas de fitness
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

21 maio 2024

Das perdas e das demolições

Ontem ao princípio da tarde recebia, de uma boa amiga brasileira, o whatsapp abaixo:

Bom dia/ boa tarde, João
Espero que esteja bem.
Na última noite, nossa grande amiga Fernanda descansou, depois de uma árdua batalha!
Estava em casa, cercada de sua família, como ela desejou.
Obrigada por ter trazido a ela esperança e luz ao apoiar nosso projeto!
Um grande abraço. 

Conheci a Fernanda por motivos desafiantes. Tinha perdido um filho pequeno para o cancro e fora-me apresentada por uma amiga comum. A Fernanda fazia parte de um projecto no Brasil (projecto que ela acarinhava muito) para o qual eu havia sido convidado, e mantivemos reuniões via zoom que geraram uma grande confiança e amizade mútuas. A morte recente do filho era ainda motivo de muito sofrimento, e ela socorria-se de mim para escrever sobre o tema, para perguntar como se sobrevive a isto, como se recupera disto, que sentido damos a tudo isto. 

Fora-lhe diagnosticado um cancro muito agressivo, mas ainda teve tempo e força para ir ao congresso de Outubro em Ottawa. Abraçámo-nos longa e apertadamente, como dois amigos de longa data. O nosso abraço confirma a ideia de que a amizade é um produto da antiguidade e da intensidade. A amizade que nos unia era forte, porque assentava num sofrimento e numa partilha comuns. Até àquele abraço nunca nos tínhamos encontrado.

Tive um desgosto muito grande. Nestes momentos é fatal que nos assalte a dúvida sobre a justiça da vida, sobre os dramas de quem passa pela morte de filhos e vem a morrer pouco tempo depois, deixando também filhos pequenos. Só me resta lembrar a forma como ela (também a meu pedido, porque eu gostava muita da expressão) acabava os mails que me escrevia: gratidão sempre.    

***

Recebi esta fotografia no mesmo dia em que soube da morte da Fernanda. O que se vê por detrás daquela máquina é o que resta de uma casa onde eu vivi entre 1981 e 1986 e onde voltei com uma grande regularidade, porque foi ali que a minha mãe morou até morrer, há quase 9 anos, parece-me. 

É possível que não tenha sentimentos por casas, ou não tenha vivido em nenhuma o suficiente para criar afectos ou laços. Ver a casa demolida numa fotografia é ver uma casa demolida numa fotografia. Talvez a minha emoção seja diferente quando vir - ao vivo - o que resta daquela moradia no Monte Estoril. A casa faz parte da minha história: dali saía para namorar, dali saí para casar, ali voltava casado e com filhos, e também em circunstâncias particulares diferentes, algumas muito difíceis, outras de esperança. Porém, apesar das memórias, nada me bate muito fundo. Tenho uma lembrança afectuosa desse tempo, não do espaço que contém esse tempo.

***

O que torna a fotografia da casa e a morte da Fernanda pontos do mesmo contínuo? A ideia de que a vida pode ser uma máquina pesada: num instante aproxima-se de coisas ou pessoas e deita-as abaixo. Tudo é efémero e fruto de caprichos, quer seja dos negócios, quer seja do destino. Resta-nos acarinhar o que ainda temos, porque ninguém sabe quando chega o bulldozer.   

JdB  

20 maio 2024

Da sorte das escolhas *

 Sobre alguém que nos é conhecido se disse: foi inteligente nas escolhas que fez. Pensei na frase e na possibilidade do raciocínio se poder aplicar a mim. Para o efeito, o adjectivo inteligente é irrelevante - a frase poderia incluir burro que eu me debruçaria sobre ela na mesma. O que me interessava era meditar sobre o tema as minhas escolhas

Definamos três colunas principais sobre as quais assenta uma vida corriqueira: as relações conjugais, as relações sociais e as relações profissionais. Portanto, cônjuges, amigos, emprego. Há mais colunas? Sim, seguramente, mas, olhando para dentro de mim, são estas as colunas que me suportaram e / ou que me formaram enquanto pessoa. Podia falar na fé, na espiritualidade, mas não se enquadra naquilo que são opções que podem fazer-se. Olho então para as três colunas e o que vejo? Vejo que não fiz escolhas, o destino (ou Deus, já agora) escolheu-me tudo.  

Uma relação afectiva, que pode determinar uma vida inteira ou um pedaço importante de vida, pode estar dependente de um olhar dirigido ao acaso num instante específico numa sala cheia de gente; pode depender de um convite para jantar onde está alguém, ou de um amigo que nos fala de alguém. Uma vida profissional pode começar numa centena de curriculuns que se enviam com a esperança alimentada de uma mão pouco cheia de respostas. Por último, um amigo pode surgir da improbabilidade de um encontro, de um sofá partilhado num evento social ou da curiosidade interessada que nos toca e nos abre à revelação. 

Não escolhi quem fez parte da minha vida sentimental: alimentei, com tudo o que sou e sei, um acaso encantador e fortuito, nada dependente de uma escolha racional. Não escolhi os meus amigos: acolhi os que se aproximaram, manifestei gosto em eu próprio ser acolhido; os três ou quatro mais importantes não são fruto de escolhas deliberadas. Por último, não elegi deliberadamente a multinacional onde trabalhei 20 anos e que fez de mim o profissional que sou. De 100 CVs mandados, foi aquela empresa que me respondeu. 

Um amigo com quem partilhei esta dúvida, e a quem disse que não tinha mérito nenhum das escolhas - ou seja, no início do caminho - mas apenas na arte com que o prosseguia, respondeu-me:  de  facto o mais importante é o que fazemos com aquilo que nos acontece, e não tanto o como ou o porquê das coisas acontecerem. Muitas vezes, tal como tu, fico a pensar se as causas das coisas não são meros acasos, casos fortuitos, bambúrrios de sorte ou má mão de azar... na minha vida "foi por um triz"... 

Olho para a minha vida. Não fui inteligente nas escolhas que fiz, mas também não fui burro. Nas coisas mais importantes, tenho de reconhecer, tive sorte. O mérito, a haver, está apenas na inteligência com que segui a estrada que o destino (ou Deus, já agora) me ofereceu. 

JdB

* publicado originalmente a 11 de Maio de 2016

19 maio 2024

Solenidade do Pentecostes

 EVANGELHO – João 20,19-23

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou,
também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».


16 maio 2024

Alice Munro (1931 - 2024)

Singapura, Maio de 2023

 Ela estava a aprender, já muito tarde, aquilo que muitas pessoas à sua volta aparentavam já saber desde a infância – que a vida pode ser perfeitamente satisfatória mesmo sem grandes conquistas.

Alice Munro 

15 maio 2024

Poemas dos dias que correm

Conselho amigável a imensos jovens adultos 

Vai ao Tibete. 
Anda de camelo.
Lê a bíblia.
Tinge os sapatos de azul.
Deixa crescer a barba.
Dá a volta ao mundo numa canoa de papel.
Assina o Saturday Evening Post.
Mastiga com o lado esquerdo da boca apenas.
Casa-te com uma mulher com uma perna e faz a barba
                                     com uma navalha de barbear.
E grava o teu nome no braço dela.
 
Escova os dentes com gasolina.
Dorme todo o dia e trepa às árvores à noite.
Sê um monge e bebe buckshot e cerveja.
Mete a cabeça debaixo de água e toca violino.
Faz dança do ventre diante de velas cor-de-rosa.
Mata o teu cão.
Concorre a Presidente da Câmara.
Vive num barril.
Parte a cabeça com um machado.
Planta túlipas à chuva.
 
Mas não escrevas poesia.  
  
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018

14 maio 2024

Dos agradecimentos *

 Há um menor múltiplo comum forte entre a ideia de que "os homens não choram" e a ideia consubstanciada na frase "uma nova sonoridade do fado". O que as une? A deseducação. No primeiro caso a deseducação dos sentimentos - um homem chora, pois claro - e, na segunda, uma deseducação dos sentidos: afinal se progredirmos sem pudor nem limite em sonoridades novas permanentes, um dia o fado já não é nada. Sobre sonoridades de fado já por aqui falei, pela equivalência que têm com as novas experiências gastronómicas. Motiva-me agora a deseducação dos sentimentos. 

Conheço uma pessoa que não cessa de agradecer à família que a contratou há muitos anos para um determinado serviço e que se tornou, seguramente, na família nuclear dela; conheço uma pessoa que, tendo sido muito autónoma toda a vida, se vê agora numa situação de grande dependência; a todas as pessoas diz obrigado, por mais simples que seja a tarefa; eu próprio verbalizo com frequência um sentimento que não é consensual em quem me ouve: a ideia de ter dívidas de gratidão a pessoas cuja existência foi importante - ou mesmo determinante - em períodos da minha vida. 

Como é fácil perceber, nos três exemplos revelados acima há algo que é comum: o agradecimento. Em nenhum dos casos se agradece um serviço prestado; em nenhum dos casos o agradecimento é um simples - ainda que importante - acto de cortesia. Não se agradece um café, um lugar no comboio, alguém que se debruça para nos apanhar algo que caiu no chão. O agradecimento de que falei acima é um agradecimento que vai além do desfocado da educação - é uma delicadeza do coração. Talvez eu já tenha agradecido almoços que eu próprio paguei, porque o importante não foi a qualidade das iscas, mas a profundidade da refeição.  

Por trás da ideia de que um homem não chora há um estereótipo de força, de coragem, de ausência de medo, de uma certa auto-suficiência, de fragilidades que não se têm ou, seguramente, que não se mostram. Tendo a achar que as pessoas que perfilham estas ideias têm uma visão própria do agradecimento - seja à vida, seja aos outros. Afinal, pode dar-se o caso de de que aquilo que agradecemos é aquilo que não conseguimos fazer sozinhos - e isso prova que não somos auto-suficientes, o que pode ser constrangedor. Num certo sentido, o agradecimento é um nivelador: põe-nos a todos como criaturas iguais, com necessidades e fraquezas, dependências e disponibilidades.  

JdB

* publicado originalmente a 6 de Maio de 2019

12 maio 2024

Solenidade da Ascensão

 EVANGELHO – Marcos 16,15-20

Naquele tempo,
Jesus apareceu aos Doze e disse-lhes:
«Ide por todo o mundo
e pregai o Evangelho a toda a criatura.
Quem acreditar e for batizado será salvo;
mas quem não acreditar será condenado.
Eis os milagres que acompanharão os que acreditarem:
expulsarão os demónios em meu nome;
falarão novas línguas;
se pegarem em serpentes ou beberem veneno,
não sofrerão nenhum mal;
e quando impuserem as mãos sobre os doentes,
eles ficarão curados».
E assim o Senhor Jesus, depois de ter falado com eles,
foi elevado ao Céu e sentou-Se à direita de Deus.
Eles partiram a pregar por toda a parte
e o Senhor cooperava com eles,
confirmando a sua palavra
com os milagres que a acompanhavam.

10 maio 2024

Poemas dos dias que correm

contributo para as estatísticas 

Em cem pessoas, 

sabedoras de tudo melhor —
cinquenta e duas;

inseguras de cada passo —
quase todo o resto;

prontas para ajudar,
desde que não demore muito —
quarenta e nove;

sempre boas,
porque não conseguem de outra forma —
quatro, talvez cinco;

dispostas a admirar sem inveja —
dezoito;

constantemente receosas
de algo ou alguém —
setenta e sete;

aptas para a felicidade —
vinte e tal, quando muito;

individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras —
mais de metade, com certeza;

cruéis,
por força das circunstâncias —
é melhor não sabê-lo,
nem aproximadamente;

com trancas na porta depois da casa roubada —
quase tantas como
aquelas que as têm, antes da casa roubada;

não levando nada da vida a não ser coisas —
quarenta,
embora preferisse estar enganada;

agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro —
oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;

dignas de compaixão —
noventa e nove;

mortais —
cem em cem.
Número, até agora, não sujeito a alterações. 

wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006

09 maio 2024

Moleskine

Quanto tempo me sobra?

Comecei a perceber que, de certa forma, enfrentar a minha própria mortalidade não mudara nada e mudara tudo. Antes de o meu cancro ser diagnosticado, eu sabia que um dia iria morrer, mas não sabia quando. Depois do diagnóstico, eu sabia que um dia iria morrer, mas não sabia quando. Mas agora eu sabia-o de forma incisiva. O problema não era, na verdade, científico. A existência da morte é perturbadora. No entanto, não há outra maneira de viver.

Este texto (parágrafo traduzido por mim) foi publicado por Paul Kalanithi, um neurocirurgião de 36 anos diagnosticado com cancro do pulmão no The New York Times

***

Gratidão

Há gente que me é próxima que não gosta da expressão: tenho uma dívida de gratidão para com... Apesar disso continuo a usar a expressão por vários motivos, nomeadamente o facto de haver pessoas a quem devo muito mais do que finezas de amizade. Foram pessoas que, em determinados momentos mais desafiantes da minha existência, me estenderam a mão, me puxaram activamente para cima e, nalguns casos, me apresentaram projectos, ideias, horizontes que deram um sentido à minha vida. Que, por um certo prisma, me salvaram 

Gosto da ideia de gratidão; gosto da ideia de ser grato. A gratidão não assenta numa contabilidade, mas num desejo de alegria interior. Agradece-se a alguém um presente, uma mão estendida, um jantar, uma palavra. Agradece-se à vida o que ela nos deu. Mesmo que tenhamos sido nós a construir o nosso caminho, todos sabemos que grande parte do que somos é fruto de um acaso. Tudo se destrói numa curva da estrada, numa análise estranha, num acidente fatal. E por último, mas não menos importante, agradecem-se os perdões, as reconciliações, os recomeços, como se de uma dádiva se tratasse

***

Fotografias dos dias que correm

Fotografia de Herb Slodounik

Esta fotografia é curiosa, porque conta uma história. O interessante é que não se sabe qual é a história: pode ser a história de duas crianças curiosas; mas pode ser a história de duas crianças que, num museu cheio de obras de arte, escolhem não ver o óbvio, para se fixarem no que é, aparentemente, secundário.  

***

Aprendido por aí

Regra de ouro: trate os outros como gostaria que o tratassem a si

Regra de platina: trate os outros como eles querem ser tratados.

***

Lido por aí

No princípio da vida, quando somos crianças, precisamos dos outros para sobreviver, certo? E no fim da vida, quando ficas como eu, precisas dos outros para viver, certo? (...) Mas o segredo está aqui: entre uma coisa e a outra, também precisamos dos outros.

(Mitch Albom, in Às terças com Morrie, lido pela primeira vez em 2006)  

JdB

08 maio 2024

Vai um gin do Peter’s ?

MANO-A-MANO ENTRE DOIS NOBÉIS DA LITERATURA 

Dois dias depois de receber o Nobel da Literatura, Pablo Neruda (1904-1973) convidou um grupo de amigos e de artistas para irem até Paris festejar com ele o prémio. Um dos convidados foi Gabriel García Marquez (1927-2014), nessa altura a viver em Barcelona. Aproveitando o encontro dos dois colossos latino-americanos, na Cidade das Luzes, a cadeia de televisão chilena gravou, a 23 de Outubro de 1971, um frente-a-frente memorável entre ambos.  

Assumindo o papel de entrevistador, o colombiano faz o chileno discorrer sobre a criação poética e a escrita, em geral. A conversa fluí com enorme abertura e máxima valorização do trabalho do outro, percebendo-se a amizade que os une, além da admiração mútua. García Marquez enaltece a poesia – expressão maior de Neruda e diz que o chileno «era una especie de rey Midas, todo lo que tocaba lo convertía en poesia».  Por seu turno, o poeta declara o romance como o ‘bistek’ da literatura, assim atribuindo um lugar cimeiro ao trabalho do autor de «100 Anos de Solidão», que considera a obra-prima da literatura castelhana, depois de D.Quixote. Nos dois anos de vida que ainda lhe restaram, Neruda empenhou-se activamente na atribuição do Nobel a García Marquez, que veio a recebê-lo em 1982.

O colombiano arranca o diálogo, interpelando o poeta sobre a relação com a realidade, desabafando que o romance o distanciara do quotidiano. Tinha o termo de comparação dos tempos do jornalismo, onde começara a escrever, no ano de 1948. Mas largara os jornais há 16 anos para enveredar pela prosa literária, que o afastara da realidade.  

Neruda confirma a mesma experiência, mas parece menos preocupado com o tema: «O poeta tende a distanciar-se da realidade viva, da realidade atual».  Partilha, depois, a sua preocupação a respeito da arte poética: «invejo a condição do novelista (romancista) que, de uma maneira ou de outra, tem acesso directo ao relato para contar coisas, o que foi abandonado pela poesia». De seguida, foca-se na necessidade de retornar à poesia épica, à maneira dos clássicos, «como Homero e Dante, a uma poesia que contava uma história, e que, penso eu, foi perdida por essa nova geração de escritores, assim como a poesia didática. Eu propus-me fazer com que ensinassem coisas com minha poesia». 

Por seu turno, García Marquez disserta sobre as incursões líricas na sua escrita: «tenho, verdadeiramente, a tendência em converter o relato, a novela, o romance em poesia… Quase estou a consegui-lo. O que aspiro com meu trabalho é encontrar melhores soluções poéticas do que narrativas».  Depois, sublinha a importância de coexistirem romancista e poeta, naturalmente, de forma pacífica e construtiva. Propõe mesmo que «os poetas sejam, cada dia, mais narradores e os romancistas cada vez mais poetas».  Porém, Neruda declara-se incapaz de relatar em prosa e confessa ter momentos em que desejaria ter por perto alguém a quem contar as milhares de histórias que lhe fluem na cabeça. 

A célebre entrevista de 1971 (em gravação de fraca qualidade):  


Para concluir o mano-a-mano entre os dois Nobel amigos seguem três citações antológicas de um e de outro:

    «… E para não tombar, para afirmar-me sobre a terra, continuar a lutar, deixa no meu coração o vinho     errante e o pão implacável da tua doçura.» – Pablo Neruda, in “Canto general”. vol. 1, 1955.

«A felicidade é interior, não exterior, por isso, não depende do que temos, mas do que somos» - Neruda 

«A escrita tornou-se então fluída, e tanto que às vezes me sentia escrevendo pelo puro prazer de narrar, que é talvez o estado humano que mais se parece à levitação.» – Gabriel García Márquez, no prólogo de “Doze contos peregrinos”.

Entretanto, aproxima-se a passos largos o dia da grande festa dos Museus –  a 18 de Maio! E hoje mesmo, o Museu Medeiros e Almeida oferece uma visita guiada ‘Fora d’Horas’, às 18h00 (entrada gratuita - Avenida Open Week 2024 - Museu Medeiros e Almeida

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

07 maio 2024

Duas Últimas *

Quando saí de Portugal em 1989 achei que tinha que levar comigo alguma música portuguesa. Na altura e para além do fado, a escolha ainda não era muita. Lembro-me que comprei então dois CD's: o "Pássaros do Sul" da Mafalda Veiga e um do Jorge Palma de que não me lembro o nome, mas que tinha a música "Deixa-me Rir" como grande sucesso. Foram estes CD's que acompanharam pois a minha nova experiência de emigração e que tocaram desalmadamente de cada vez que a saudade apertou.

Em recordação desses tempos trago-lhes hoje os dois artistas numa só música. O Jorge Palma como compositor e a Mafalda Veiga como intérprete. É uma música que numa fase posterior da minha vida constituiu quase um hino de alento quando as coisas corriam menos bem.

Aqui deixo pois "A gente vai continuar" do Jorge Palma, cantado pela Mafalda Veiga.
 
JdC

* publicado originalmente a 1 de Novembro de 2011, embora não garanta que era esta a versão. Sempre actual.


06 maio 2024

Celebrações dos dias que correm

 

Campeão Nacional de Futebol 2023 - 2024

05 maio 2024

6º Domingo da Páscoa

 EVANGELHO – João 15,9-17

Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos:
«Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei.
Permanecei no meu amor.
Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor,
assim como Eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai
e permaneço no seu amor.
Disse-vos estas coisas,
para que a minha alegria esteja em vós
e a vossa alegria seja completa.
É este o meu mandamento:
que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei.
Ninguém tem maior amor
do que aquele que dá a vida pelos amigos.
Vós sois meus amigos, se fizerdes o que Eu vos mando.
Já não vos chamo servos,
porque o servo não sabe o que faz o seu senhor;
mas chamo-vos amigos,
porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai.
Não fostes vós que Me escolhestes;
fui eu que vos escolhi e destinei,
para que vades e deis fruto
e o vosso fruto permaneça.
E assim, tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome,
Ele vo-lo concederá.
O que vos mando é que vos ameis uns aos outros».

03 maio 2024

Paul Auster (1947 - 2024)

Todos queremos que nos contem histórias, e escutamo-las como fazíamos quando éramos jovens. Imaginamos a história verdadeira contida nas palavras, e para fazermos isto pomo-nos no lugar da pessoa que a história fala, fingimos que podemos compreendê-la porque nos compreendemos a nós próprios. Isto é uma ilusão. Existimos por nós mesmos, talvez, e por vezes até conseguimos ter um vislumbre de quem somos, mas no fim nunca podemos ter a certeza, e conforme as nossas vidas continuam, tornamo-nos cada vez mais opacos para nós próprios, cada vez mais conscientes da nossa própria incoerência. Ninguém consegue atravessar a fronteira para entrar dentro de outra pessoa - pela simples razão de que ninguém tem acesso a si mesmo

Paul Auster in A Trilogia de Nova Iorque

02 maio 2024

Daquilo que se dá - o braço ou a mão *

 Imaginemos uma ajudante de cozinheira da nobreza inglesa do início do séc. XX. Imaginemo-la no seu labor diário pesado e ignorado; imaginemo-la por fim no seu sonho, traduzido num modesto anúncio de jornal de província, de ser cozinheira num hotel. Ela verbaliza o sonho, di-lo alto para testar a sua própria existência, para se fazer ouvir fora do ruído das panelas, do calor das gorduras ou do cheiro dos faisões que apodrecem pendurados num trave de madeira. À sua volta ela não vê só vitualhas e horários a cumprir - ela vê o mundo que deixou de estar confinado às quatro paredes do andar de baixo de uma casa senhorial. Mais do que ver outro mundo, ela vê-se noutro mundo. Quem convive com ela na sua condição de ajudante de cozinheira abre a boca de espanto - não só pela ousadia do sonho, mas pela estupefacção de imaginar que há outro mundo para além daquele mundo. 

Imaginemos agora um casal que passeia à beira mar ao fim de uma tarde de Outono. Ele põe um chapéu que é mais adorno do que protecção, ela vai de sapatos confortáveis, agasalho ligeiro, olhos confiantes na rotina das marés. Ele vai de mãos nos bolsos, sorriso seguro, passada firme. Ela dá-lhe o braço que ele oferece - ou talvez seja ela a pedir que ele abra o braço para ela entrelaçar o seu próprio no dele. Seguem em direcção ao futuro, confiantes num certo mundo que se resume às quatro paredes metafóricas onde vivem, por onde circulam, onde estão as pessoas familiares, as casas familiares, as coisas habituais. Seguem de braço dado falando de petits riens, da vida que foi e há-de vir, dos projectos ou dos outros, das vicissitudes da existência. Sorriem - e nesse sorriso não há ausência de dor, mas segurança num modelo. Num repente, vindos em sentido contrário, um casal - ele de chapéu, ela de sapatos confortáveis - passeiam à beira mar. O que os diferencia? Este segunda casal vai de mãos dadas.  

Entre o casal que circula de mãos dadas e a ajudante de cozinheira que ambiciona ser cozinheira não há diferença, assim como não há entre o casal que passeia de braço dado e a casa senhorial da nobreza inglesa do início do séc. XX. 

O espanto de ver uma ajudante de cozinheira a querer ser cozinheira em 1920 não é o horror ao sonho, mas é a incapacidade de se imaginar um mundo para além daquelas paredes e daquelas rotinas. E não só imaginar um mundo, como imaginar-se num mundo. O espanto de ver um casal de mão dada não é um horror ao exibicionismo ou uma rejeição daquela estética moderna. O horror advém da constatação de um facto: o braço dado é uma rotina e uma parede que conferem segurança; há alguém que se apoia em alguém. Ora, a mão dada é a igualdade total. Ambos dão as mãos, não há ninguém a dar um braço ao braço que alguém oferece. As mãos dadas representam o fim da luta de géneros, mesmo que não haja luta de géneros. As mãos dadas representam a igualdade de géneros, mesmo que não haja igualdade de géneros. 

A ajudante de cozinheira sai e encontra o casal que segue de mãos dadas. Olha para trás, não com saudade, mas com ternura, e despede-se da casa, como o casal que dá as mãos se despede do casal que, de braço dado, vê um certo futuro a chegar. Quem parte ganha uma consciência da sua individualidade, da possibilidade de um outro mundo onde se vê de corpo inteiro. A contabilidade do que se ganha e do que se perde fica com cada um. Continuará a haver ajudantes de cozinha felizes, continuará a haver casais que, de braço dado e ao som das marés, nisso encontram conforto. E haverá felicidade em quem parte e se atira para longe. O importante é não deixar destroços, ou não se constituir destroços. 

JdB 

* publicado originalmente a 13 de Dezembro de 2018

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