30 agosto 2024

Textos dos dias que correm

Desaprender

Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: «- Cá está ele!».

Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.

Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado.

Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo. Organiza «dossiers» com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome, já de si, chamuscante), vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prémios.

É traduzido e publicado no estrangeiro. Por desfastio (e por que não?, algum dinheiro) aceita colaborar em conspícuas revistas ou em jornais efémeros como o dia a dia em que vão sendo publicados. Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.

Se as coisas continuarem indefinidamente assim, o escritor pode ser alcandorado a gloríola nacional, com todos os direitos inerentes a uma situação dessas: academia, nome de rua, estatueta ou estátua, tudo isso em devido tempo, quer dizer, já velho ou já morto o escritor.

Pedra campal sobre o assunto. 

Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"

29 agosto 2024

Efemérides dos dias que correm

Fez ontem um ano que morreu o JdC e, na altura, escrevi o que me veio à alma, e que pode ser (re)lido aqui. Na 3ªfeira, a almoçar com o meu querido amigo fq, lembrámo-lo brevemente.  

Não me é difícil fugir ao lugar-comum do ai que impressão, já lá vai um ano... Talvez me atire a outro lugar que me é comum: cumprir-se-iam, este ano, 53 anos de uma amizade muito próxima, o que não significa uma amizade toda perfeita. Para trás ficam décadas de convívio, de partilha, de confidências, de alguns afastamentos, de muito divertimento ou militância política, de alguma discordância que nunca raiou a discórdia.  

Em algumas áreas da minha vida sou mais homem de lamentar o passado que (não) foi, do que desejar o futuro que pode ser. Inclino-me mais para olhar para trás do que para a frente - uma atitude realista, até porque o ontem existiu, o amanhã não se sabe se virá. Devido ao desaparecimento dos dois padres com quem costumava conversar / confessar-me (um para o Céu, outro de regresso às ilhas) dei por mim sem orientação espiritual. Podia ir procurar outra pessoa? Como diz o anúncio, sim, podia; mas não seria a mesma coisa... O que me falta? Tempo útil. Falta-me kairos, porque chronos tenho sempre. Estou falho de paciência para contar a minha vida a alguém que me conheceu ontem. 

De alguma forma isto acontece com as amizades. Tenho bons amigos, a quem falo e de quem oiço. Tenho bons amigos que me confidenciam coisas, e a quem eu confidencio coisas, que sabem muito de mim e eu deles. Mas o JdC (e, de certa forma, o fq) conheciam quem eu fui e a minha circunstância. Eram pessoas lá de casa, como se dizia, e que percebiam o contexto de muitos acontecimentos. A pessoas novas na minha vida já não tenho tempo de qualidade / kairos para falar da infância, do impacto da educação, dos setembros da minha juventude, das minhas cicatrizes ou da minha genealogia, de pessoas que já cá não estão ou, estando, também não estão. Em bom rigor, também já nem quero maçar ninguém com informações que só para mim são relevantes, porque me constituem.  

O JdC faz-me falta: para coisas tão simples como a identificação de um embaixador, ou para coisas tão pessoais como a escuta de um lamento ou de uma recomendação. Nalguns casos, e para alguns episódios, só ele era conhecedor de eventos passados, só ele poderia, com uma propriedade total, alvitrar que eu fizesse isto ou aquilo, que seguisse este ou aquele caminho. E ouvi-o sempre, mesmo que nem sempre concordasse. E ouvi-o sempre, porque lhe reconhecia competência suficiente para merecer ser ouvido. Uma competência que não lhe advinha da experiência própria, forçosamente, mas da motivação.

Gosto sempre de pensar no que desaparece quando me desaparecem os mais próximos, o que morre com quem morre: pode ser uma ideia de amor incondicional, de memória ou de afecto. No caso dele a resposta é simples: independentemente de outras coisas, nomeadamente um passado muito comum, desaparece a interlocução. Para pessoas como eu, é desaparecer muito. 

***

A Igreja lembrou ontem Santo Agostinho de Hipona, bispo e doutor da Igreja. Não resisto a transcrever uma parte do seu livro Confissões. 

Tarde Vos amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Vós estáveis dentro de mim, mas eu estava fora, e fora de mim Vos procurava; com o meu espírito deformado, precipitava me sobre as coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava convosco. Retinha me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e dissipastes a minha cegueira. Exalastes sobre mim o vosso perfume: aspirei o profundamente, e agora suspiro por Vós. Saboreei Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes me e agora desejo ardentemente a vossa paz.

As frases tarde vos amei  e fora de mim vos procurava podem ser lidas como uma boa metáfora para outras partes da nossa vida. Por vezes vamos tarde para qualquer coisa, porque procuramos a solução fora do sítio correcto.  

JdB

28 agosto 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 FILIPA RIBEIRO DA CUNHA

Nascida há 60 anos, no dia do Patrono dos Jornalistas e da Comunicação Social, a Filipa Ribeiro da Cunha deixou-nos a 20 de Agosto, depois de dois anos especialmente difíceis, após o diagnóstico de um cancro feroz. Como era seu apanágio, até essa dura prova atravessou com insólita tranquilidade, alicerçada numa fé profunda, que não temia a morte, nem o sofrimento, o que é ainda mais raro.

Sabemos quanto o mistério da hora da Partida convida mais ao silêncio, pois as palavras ficam aquém deste momento sagrado e estranho para os padrões humanos. Também o sentido ulterior de uma vida humana cabe mal em palavras, pelo que me fico pelo desenho de um rosto que breves traços biográficos ajudarão a reconstituir: 

De carácter enérgico e uma genica que a sua magreza não faria adivinhar, habitava-a um especial gosto pela vida, saboreada com intensidade e originalidade. Logo nos tempos de estudante, na Católica, foi pioneira no lançamento do movimento de acção social da universidade – o GASUC – marcando gerações de colegas e amigos, que passaram a guardar algum tempo livre para visitar prisões, hospitais, bairros pobres, acompanhar miúdos precisados de apoio nos estudos, etc. À medida que os anos foram passando, o seu coração generoso e audaz aguçou-lhe o sentido maternal, sempre de portas escancaradas a todos, começando pelos mais carentes. E com muitos se cruzou em diferentes pontos do globo, acompanhando o marido na sua carreira internacional. A casa de família servia de abrigo e de pontos de encontro marcantes, tal como as conferências com que animou serões em inúmeras salas de Washington e Lisboa. Conheci amigos nas franjas da fé que foram tocados pelo seu testemunho desassombrado, sustentado em grandes textos e ilustrado por telas maravilhosas e bandas sonoras de primeira água. Uma das suas apresentações versou sobre um tema que lhe era especialmente querido – as Obras de Misericórdia, explicadas através da pintura do romântico francês popularizado pela figuração idealista da revolução francesa – Eugène Delacroix:  


Não por acaso, a Filipa teve o dom e também a arte de estar rodeada de gente valorosa, começando pelos 7 filhos e pelo marido, que são per se o melhor testemunho da garra daquela Mãe memorável, que comunicava a fé por todos os poros, com uma audácia sumamente original. A escolha do poema de Sophia para a sua pagela oferece uma óptima síntese sobre a fecundidade de uma existência sob o signo de uma fé festejada a cada passo, cumprindo depressa uma vida a caminho do Pai:   
                 
                  «AS FONTES

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.»
 
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

27 agosto 2024

Duas Últimas

Tive o gosto de ver o António Zambujo um destes dias nas Festas do Mar em Cascais. Um concerto simpático, numa noite algo ventosa e fria. O que me impressionou? A quantidade de gente que vai à Baía ver um concerto musical e está o tempo todo à conversa, totalmente desinteressado do artista e desrespeitoso de quem, ao lado, quer ouvir o que se passa no palco.

JdB

 

26 agosto 2024

Da matemática e da passagem do tempo

Há dias, num repasto com amigos, alguém elaborava uma teoria matemática sobre a sensação da passagem do tempo em jovens e velhos: quando se tem 8 anos, 1 ano representa 1/8 da vida, ou seja, 12,5%; quando se tem 80 anos, 1 ano representa 1/80 da vida, ou seja, 1,25%. É por isso, dizia o autor da teoria, que os velhos têm a sensação de que o tempo passa muito depressa, enquanto os jovens têm a sensação inversa. Fica a sensação, porque o tempo passa igual para todas as idades. Acho a teoria curiosa e desafiante, embora pouco credível ou sustentável. 

Tudo se resume, diria eu, a uma diferente percepção da vida: uma criança de 8 anos - ou mesmo um jovem de 18 - não tem uma noção tão apurada da vida como tem um velho de 80. Por isso a ideia de uma perda irreversível de alguém pode afectar alguém mais idoso, porque saberá o impacto da expressão nunca mais. Um idoso de 80 anos, confrontado com uma perda significativa na sua vida, olhará para a frente com uma ideia de tristeza; mesmo que, estatisticamente, lhe sobrem menos anos até à morte, tem uma noção do impacto da solidão que um jovem de 18 anos não tem. E tem, também a certeza de que o combate da solidão é, com uma idade mais avançada, um combate difícil. 

A teoria da matemática funciona numa proporção inversa: quanto menos representa um ano na nossa vida, mais ideia se tem da rapidez com que passa. Nessa linha de pensamento, e benefício de tese, podemos desenvolver uma teoria semelhante, mas de sentido contrário: para uma criança de 8 anos, a esperança de vida são mais 74; para um velho de 80 anos, a esperança de vida são mais 2. No entanto, confrontado com uma perda, o tempo para um idoso demora muito mais tempo a passar do que para uma criança de 8, ou mesmo um jovem de 18. A matemática não tem qualquer influência. O que conta é a experiência de vida, a nitidez com que se olha para as coisas. Para um jovem de 18 a linha do horizonte está muito longe; para um idoso, a linha está muito mais próxima ou muito mais longe, tudo depende da alegria ou tristeza com que se a linha é olhada.

JdB  

25 agosto 2024

XXI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – João 6,60-69

Naquele tempo,
muitos discípulos, ao ouvirem Jesus, disseram:
«Estas palavras são duras.
Quem pode escutá-las?»
Jesus, conhecendo interiormente
que os discípulos murmuravam por causa disso,
perguntou-lhes:
«Isto escandaliza-vos?
E se virdes o Filho do homem
subir para onde estava anteriormente?
O espírito é que dá vida,
a carne não serve de nada.
As palavras que Eu vos disse são espírito e vida.
Mas, entre vós, há alguns que não acreditam».
Na verdade, Jesus bem sabia, desde o início,
quais eram os que não acreditavam
e quem era aquele que O havia de entregar.
E acrescentou:
«Por isso é que vos disse:
Ninguém pode vir a Mim,
se não lhe for concedido por meu Pai».
A partir de então, muitos dos discípulos afastaram-se
e já não andavam com Ele.
Jesus disse aos Doze:
«Também vós quereis ir embora?»
Respondeu-Lhe Simão Pedro:
«Para quem iremos, Senhor?
Tu tens palavras de vida eterna.
Nós acreditamos
e sabemos que Tu és o Santo de Deus». 

23 agosto 2024

Textos dos dias que correm

A Idade da Derrota Aceite

Tenho sessenta anos. Não te iludas: não estou ainda bastante fraco para ceder às imaginações do medo, quase tão absurdas como as da esperança e seguramente muito mais penosas. Se fosse preciso enganar-me a mim mesmo, preferia que fosse no sentido da confiança; não perderia mais com isso e sofreria menos. Este fim tão próximo não é necessariamente imediato; deito-me ainda, todas as noites, com a esperança de chegar à manhã seguinte. Adentro dos limites intransponíveis de que te falei há pouco, posso defender a minha posição passo a passo e recuperar mesmo algumas polegadas do terreno perdido. Não deixo por isso de ter chegado à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite. Dizer que os meus dias estão contados não significa nada; sempre assim foi; é assim para todos nós. Mas a incerteza do lugar, do tempo e do modo, que nos impede de distinguir bem o fim para o qual avançamos sem cessar, diminui para mim à medida que a minha doença mortal progride. Qualquer pessoa pode morrer de um momento para o outro, mas o doente sabe que passados dez anos já não será vivo.

A minha margem de hesitação já não se alonga em anos, mas em meses. As minhas probabilidades de acabar com uma punhalada no coração ou por uma queda de cavalo tornam-se cada vez menores; a peste parece improvável, a lepra ou o cancro afiguram-se definitivamente afastados. Já não corro o risco de cair nas fronteiras, atingido por um machado helénico ou trespassado por uma flecha parta; as tempestades não souberam aproveitar as ocasiões que se lhes ofereceram, e o feiticeiro que me predisse que eu não me afogaria parece ter acertado. Morrerei em Tíbure, em Roma ou em Nápoles quando muito, e uma crise de sufocação encarregar-se-á da tarefa. Serei levado pela décima ou pela centésima crise? É essa a única questão. Assim como o viajante que navega entre as ilhas do Arquipélago vê despontar, ao entardecer, uma espécie de névoa luminosa e descobre pouco a pouco a linha da costa, eu começo a avistar o perfil da minha morte.

Certas fracções da minha vida assemelham-se já a salas desguarnecidas de um palácio demasiadamente vasto que um proprietário empobrecido renuncia a ocupar todo. 

Marguerite Yourcenar, in 'Memórias de Adriano' 

22 agosto 2024

Da ideia de felicidade e bem-estar *

 Tivesse-nos dado Deus uns olhos diferentes e todo o mundo seria também diferente. A diferença não era uns olhos mais resistentes, sobre os quais não se pudesse dizer vista vazada; a diferença também não era um colorido diferente e ao jeito da estética, adaptado ao lenço do blazer ou à cor da blusa, como se tudo no nosso corpo e roupas adjacentes fosse um permanente ton-sur-ton. A diferença era, apenas, um olhar mais penetrante. Apenas isso.

Eu explico melhor, mesmo sabendo que tanto faz, pois às vezes a explicação é um fosso (um fenómeno muito vulgar em relações humanas) ou uma inutilidade. Mas avanço mesmo assim, arrogando-me da propriedade do estabelecimento. Apesar da minha idade, sou um velho. A frase, desinteressante, podia tê-la dito há dez anos; ou mesmo há vinte ou, quem sabe, há quarenta. Talvez tenha sido sempre um idoso de espírito, que o corpo ainda se mantém civilizado q.b. 

Sábado fui a um jantar, e ao fim de 30 minutos era eu - um velho. Mais precisamente a uma festa, onde estariam cerca de 400 comensais. Tomámos os nossos lugares e eu senti uma batida persistente no peito. Não sendo excesso de emoção, não sendo arritmia cardíaca, não sendo um amigo maçador a querer a minha atenção para uma anedota, o que poderia ser? Percebi rapidamente - era a música. Uma batida electrónica, feita seguramente por um bêbado que, após ter criado a primeira frase no computador, caiu de borco sobre a tecla repeat.  Assim durante trinta minutos, o meu coração bateu a descompasso, enquanto ao longe se perfilava uma fila para os frios - um bufete, outra coisa de que não sou apreciador.

Na sua dimensão mais corriqueira, há uma ideia erradamente certa de bem-estar e de alegria humanas. Imaginando nós uma receita - tipo alegria à morra dantas morra pim -  há ingredientes que teriam lugar cativo, e o ruído é um deles. As pessoas casam e, durante o almoço ou jantar, a música persegue-nos numa dimensão invasiva, impedindo conversas ao diâmetro da mesa; vamos a uma loja e queremos fugir, porque o volume do som violenta tudo. Etc., etc., etc. Em qualquer lugar onde vamos tem de haver ruído, som, música. O silêncio é sinal de tristeza, melancolia, solidão, depressão e seus derivados. Quem vive com som em casa é sempre feliz. Quem ouve música alegre é sempre alegre, quem ouve música triste (entremeada de silêncios) é sempre triste.

Outro sintoma de felicidade e bem-estar é a dança. Um corpo dançarino é o paradigma mais evidente de uma mente que sorri. Agitação é bom, muito bom. Uma mulher que dança sozinha (sim, porque aqui, ao contrário do Zimbabwe, os homens dançam pouco, menos ainda sozinhos) é sempre uma mulher, mais do que em paz, em êxtase com a existência. Uma pessoa que não dança é uma pessoa triste, a quem a alma castiga com lágrimas e suspiros de dor. Por isso, gente que não gosta de ruído (ou mesmo de música em permanência) e não se agita freneticamente pela pista deveria ter benefícios fiscais, protecção do sistema nacional de saúde, prerrogativas de novenas de oração.

O mundo moderno é feito por seres detentores de uma mente para a qual se deve olhar com atenção - e preocupação. Tivessem eles uns olhos diferentes - lá está, mais penetrantes - , e perceberiam que a música nem sempre é benéfica. Por vezes só serve para disfarçar ventosidades.

JdB        

* publicado originalmente a 11 de Maio de 2015

21 agosto 2024

Poemas dos dias que correm

 PEQUENO-ALMOÇO

Ele pôs o café
Na chávena
Pôs o leite
Na chávena de café
Pôs o açúcar
No café com leite
Com a colher pequena
Mexeu
Bebeu o café com leite
E pousou a chávena
Sem me falar
Acendeu
Um cigarro
Fez argolas
Com o fumo
Pôs a cinza
No cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Levantou-se
Pôs
O chapéu na cabeça
Pôs
A gabardine
Porque estava a chover
E partiu
À chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
E eu pus
A cabeça entre as mãos
E chorei.
.
Jacques Prévert
(1900 - 1977)
In "Jorge Pinheiro os Pemas da Minha Vida"
(Tradução de Vasco Graça Moura)

19 agosto 2024

Do vocabulário *

Republico este texto, não porque me falte inspiração (também falta...) mas porque andei à procura de textos que tenha escrito ou publicado sobre gratidão. O assunto veio-me à mente no decurso de um casamento: na homilia, o celebrante falou nas três expressões que o Papa Francisco suscitava que se repetissem diariamente: desculpa, obrigado, se faz favor. E lembrei-me de uma expressão que costumo repetir e da qual pessoa próxima não gosta. Relativamente a alguém que teve uma papel importante numa fase qualquer da minha vida, digo: tenho com fulano uma dívida de gratidão. E lembrei-me disto um destes dias, ao pensar no gosto que é agradecer a alguém a sua existência, aos mais diversos níveis, na nossa vida. 

*** 

Ao nível do indivíduo, as diferenças de entendimento de uma mesma palavra ou de um mesmo conceito são enormes. Alguns exemplos, apenas: aquilo a que eu chamo conservação de energia outra pessoa chamará preguiça; uso muito a expressão dívida de amizade; há quem não goste da expressão, dando-lhe um carácter menos positivo. Em bom rigor, neste último caso não me sinto obrigado a nada nem a ninguém. Sinto, isso sim, que relativamente a algumas pessoas fui beneficiário da sua atenção numa altura específica, e que isso me ficou no coração. Só talvez não possa ser devedor porque não sei se conseguirei pagar a dívida... 

Por último, um dia destes dei por mim a referir-me a uma qualidade grande que certa pessoa tinha: gratidão. Esta pessoa agradece sistematicamente o apoio, atenção e confiança que determinada família lhe deu ao longo de mais de duas décadas. Simpatizo com a ideia de gratidão, embora alguém me diga que não gosta de sentir que as pessoas lhe agradecem alguma coisa. Se acharmos que os outros não devem agradecer-nos nada, será que conseguimos agradecer-lhes convenientemente?  

Num outro plano há, entre o nosso vocabulário e aquilo que somos e fazemos, uma relação biunívoca importante: a maneira como agimos afecta o nosso vocabulário, mas o vocabulário que utilizamos também afecta aquilo que fazemos. Isto é, nas palavras de um orgulhoso empedernido, a expressão perdão faz pouco sentido (e talvez ele nunca a use), mas, se utilizarmos persistentemente a expressão perdão talvez acabemos por incorporar o seu conceito no nosso léxico comportamental. 

Também pelo referido acima é importante, para quem é crente, a frequência da igreja. De tanto ouvirmos expressões como serviçopróximoamorcompaixão, acabamos por interiorizar a necessidade de os materializarmos em actos constantes. É muito por isso que alguma abordagem actual aos problemas alheios assentam em ideias que me são desconfortáveis, porque muito voltadas para o próprio: tens de ser feliztens de pensar em titens de olhar para o que é bom para ti. Esta atitude de pensar primeiro em nós próprios talvez só seja válida nos aviões: em caso de despressurização da cabine, só depois de colocarmos a nossa própria máscara de oxigénio é que deveremos por a de uma criança. O léxico cristão (por oposição a um certo léxico laico) usa expressões mais voltadas para o outro, para o próximo, para os que sofrem ou precisam mais. 

bondade - no seu sentido mais genérico - não é privilégio nem monopólio dos crentes. Mas há uma importância no vocabulário que usamos no dia a dia. Será muito difícil sermos santos se nunca proferirmos a palavra; será muito difícil percebermos o conceito de ajuda se nunca a pedirmos, alegando os mais diversos motivos.


JdB

* publicado originalmente a 21 de Dezembro de 2018

18 agosto 2024

XX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – João 6,51-58

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«Eu sou o pão vivo que desceu do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei-de dar é minha carne,
que Eu darei pela vida do mundo».
Os judeus discutiam entre si:
«Como pode ele dar-nos a sua carne a comer?»
E Jesus disse-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Se não comerdes a carne do Filho do homem
e não beberdes o seu sangue,
não tereis a vida em vós.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue
tem a vida eterna;
e Eu o ressuscitarei no último dia.
A minha carne é verdadeira comida
e o meu sangue é verdadeira bebida.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue
permanece em Mim e eu nele.
Assim como o Pai, que vive, Me enviou
e eu vivo pelo Pai,
também aquele que Me come viverá por Mim.
Este é o pão que desceu do Céu;
não é como o dos vossos pais, que o comeram e morreram:
quem comer deste pão viverá eternamente».

16 agosto 2024

Arquitetura: Igreja, «espaço indizível» sagrado e místico

Partimos de um antigo aforisma da tradição judaica: «O mundo é como o olho: o mar é o branco, a terra é a íris, Jerusalém é a pupila e as imagens nela refletidas é o templo». O dito ilustra de maneira nítida e simbólica a função no templo de acordo com uma intuição que é primordial e universal.

São duas as ideias subjacentes à imagem. A primeira é a de “centro” que o lugar sagrado deve representar: o horizonte exterior, com a sua fragmentação e com as suas tensões, converge e aplaca-se numa área que pela sua pureza deve incarnar o sentido, o coração, a ordem do ser inteiro.

No templo, portanto, “con-centra-se” a multiplicidade da realidade e da vida que nele encontra paz e harmonia: pense-se por exemplo na planimetria de certas cidade com radiais ligadas ao “sol” idealmente concebido, representado pela catedral colocada na charneira central urbana (Milão é um exemplo evidente, com a catedral, como Nova Iorque é o testemunho de uma visão diferente, mais dispersa e babélica).

Do templo, depois, “des-centra-se” um sopro de vida, de santidade, de iluminação que deveria transfigurar o quotidiano e planta geral da cidade.

É neste ponto que entra em cena o segundo tema subentendido ao dito judaico que evocámos: o templo é a imagem que a pupila reflete e revela. Ela é, portanto – através da luz e das cores – um signo de beleza. Neste sentido, uma arquitetura sacra que não saiba dialogar com a natureza circunstante, que não consiga usar de maneira “esplêndida” a linguagem da luz através das janelas e dos vitrais, e que não seja portadora de harmonia, decai paradoxalmente da sua função, torna-se “profana” e “profanada”.

É do cruzamento destes dois elementos, a centralidade e a beleza, que desemboca o que o grande arquiteto francês, autor da admirável igreja de Ronchamp, Le Corbusier, definia de maneira fulgurante como «o espaço indizível», o espaço autenticamente santo e espiritual, sagrado e místico.

Estes dois eixos arrastam consigo muito corolários: pensemos na “surdez”, na inospitalidade, na dispersão, na opacidade de muitas igrejas construídas sem respeito pela voz e pelo silêncio, pela liturgia e pela assembleia, pela visão e pela escuta. Igrejas nas quais a pessoa se encontra perdida como numa sala de congressos, distraída como num pavilhão desportivo, esmagada como numa arena, embrutecida como numa casa pretensiosa e vulgar.

Sabe-se que no diálogo entre arte e fé nestes últimos tempos consumou-se uma espécie de divórcio. De um lado, no âmbito eclesial recorreu-se muitas vezes ao rastreamento de módulos, estilos e géneros de épocas precedentes, ou houve uma orientação para a adoção do artesanato mais simples, ou, pior, ocorreu uma adaptação à fealdade prevalecente em muitos novos bairros urbanos e no edificado agressivo, erguendo edifícios sagrados semelhantes, como dizia sarcasticamente o P. David Maria Turoldo, garagens sacrais onde se estacionou Deus e os fiéis estão alinhados.

Por outro lado, todavia, também a arte tomou as ruas da cidade secular, arquivando os templos, os temas religiosos, os símbolos, as narrativas, as figuras bíblicas e religiosas. Abandonou, considerando-a perigosa, toda a proposta de uma mensagem, considerando-a uma manifestação ideológica, consagrou-se a exercícios estilísticos cada vez mais elaborados e provocadores, confiou-se a uma crítica incompreensível à maioria e tornou-se servidora das modas e das exigências de um mercado não raro artificioso e excessivo.

Seria preciso retornar à ideia de que arte e fé são idealmente irmãs, querendo ambas procurar – como dizia o grande pintor Paul Klee em relação à arte – «não o puro e simples visível, mas o invisível que está no visível».

É certo que a ligação entre arte e liturgia é complexa. Todavia o percurso feito já avançou muito no que diz respeito à arquitetura (…). É significativo que quase todas as “estrelas” da arquitetura tenham realizado pelo menos um templo, assim como nos diferentes contextos locais é vivo o empenho em edificar novas igrejas que unam em si fé e beleza. Infelizmente nestes últimos tempos abriu-se também o capítulo muito delicado e complexo da desafetação e do reuso de templos que deixaram de ser necessários ao culto devido à mutação das estruturas urbanas e sociais. Trata-se de um tema que deverá ser atentamente encarado.

A tudo isto acrescentamos um apêndice específico. É também importante o compromisso de transfigurar com novos modelos artísticos a totalidade dos bens litúrgicos internos às igrejas (altares, estátuas, pinturas, ambões, sacrários, etc.) que sejam de qualidade estética, de modo a poder cumprir o que desejava um dos maiores teólogos ortodoxos do século XX, Pavel N. Evdokimov (1901-1970), quando escrevia: «As formas arquitetónicas de um templo, os frescos, os ícones, os objetos de culto nunca são reunidos como se estivessem expostos num museu; como os membros vivos de um corpo, são permeados por uma vida própria misteriosa, imersos num único canto de louvor».

Card. Gianfranco Ravasi
Último presidente do Conselho Pontifício da Cultura
In Chiesa Oggi
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 12.08.2024, aqui

15 agosto 2024

Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria

Hoje, mas há 30 anos, baptizava-se na Igreja de Santo António do Estoril uma criança que, estou certo, já nascera consagrada a Nossa Senhora. 

JdB 

*** 

Consagração a Nossa Senhora 

Ó Senhora minha, ó minha Mãe, eu me ofereço todo a Vós, e em prova da minha devoção para convosco, Vos consagro neste dia e para sempre, os meus olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração e inteiramente todo o meu ser.

E porque assim sou Vosso, ó incomparável Mãe, guardai-me e defendei-me como propriedade vossa.

Lembrai-Vos que Vos pertenço, terna Mãe, Senhora Nossa.

Ah, guardai-me e defendei-me como coisa própria Vossa. 

*** 

EVANGELHO - Lc 1,39-56
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direcção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».
Maria disse então:
«A minha alma glorifica o Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre».
Maria ficou junto de Isabel cerca de três meses
e depois regressou a sua casa.

14 agosto 2024

Vai um gin do Peter’s ? 

 O TURNING POINT DE UM NAZI FERRENHO

Após a derrocada do Terceiro Reich, a 8 de Maio de 1945, começou a expectável perseguição aos oficiais nazis, em especial aos dirigentes das temíveis SS. Curiosamente, percebendo que os ventos tinham mudado, as altas patentes mais próximas do Führer e sem hipótese de escaparem, tentavam entregar-se aos americanos, para evitar cair nas mãos da outra potência que mais se assemelhava à crueldade nazi – a URSS.  Chegarem vivos às mãos dos norte-americanos tornara-se no derradeiro sonho dos seguidores de Hitler, pois era a única possibilidade de serem julgados com alguma justiça e decência humana. Bem sabiam das práticas impiedosas dos soldados do Exército Vermelho, que replicavam a violência praticada pelos regimentos alemães na invasão da Rússia e do Leste Europeu. Parecia ser a hora da vingança de um país que fora selvaticamente devastado pelos exércitos do Reich.  

A cegueira soviética, no final da guerra, evidenciara-se nas violações em massa, sem pouparem ninguém, e também por desaparecimentos indecorosos e injustos como o do responsável da Cruz Vermelha em Budapeste – o diplomata sueco, filho do Conde de Wallenberg. A 17 de Janeiro de 1945, fora raptado com o seu adjunto, apenas por se ter destacado a salvar judeus, na Hungria. Nem o fim da guerra pôs termo ao incompreensível cativeiro. Raoul Wallenberg (1912-1947? ou anos 60, nas masmorras soviéticas) nunca tinha prejudicado os interesses do Kremlin e a sua única arma fora o soft power diplomático para resgatar judeus das garras das SS. Nesse âmbito revelara uma eficiência lendária, ficando conhecido pela declaração, que travava os próprios nazis: «Ich bin Wallenberg». Tamanho êxito a fazer o bem por prestígio pessoal implicava a afirmação de uma individualidade inaceitável num regime comunista, pois apenas o Estado e o líder supremo podem exibir vontade própria. Finda a guerra, o Kremlin limitou-se a negar o óbvio rapto. Décadas depois, inventou a desculpa descabida para o desaparecimento de Wallenberg, de onde nunca mais voltou vivo: suspeita de espionagem. Estaline permitia-se mentir e negar factos a seu bel-prazer, quase como demonstração de um autoritarismo sem limites. 

Foto-passe de Junho de 1944.

Apesar do ambiente de revanchismo no Day After, os Aliados ocidentais conseguiram fazer julgamentos com regras e bom senso, sem sentido castigador, para revolta de alguns segmentos mais justiceiros. Isso tornou possível que vários dirigentes nazis se livrassem da pena capital, à parte de casos mais empedernidos e com maior responsabilidade na condução da guerra e dos odiosos Campos de Concentração nazis, como foi o caso de Höss em Auschwitz, que inspirou um filme recente: («The Zone of Interest»). Porém, o horrendo sucesso da sua carreira no Partido Nacional-socialista não teve a última palavra na sua vida, que conheceu uma reviravolta benigna e imprevisível, narrado neste artigo gentilmente cedido pelo autor:     

«RUDOLF HÖSS 

O recente filme de Jonathan Glazer, estreado em Janeiro de 2024, que não vi, foi a ocasião de um amigo me falar da história do personagem central, um monstro chamado Rudolf Höss. Não confundir com o conhecido Rudolf Hess, braço direito de Hitler.

Rudolf Höss nasceu numa família católica alemã, mas cedo se tornou ateu. Na primeira Guerra Mundial começou por trabalhar num hospital militar; depois, com 14 anos, alistou-se no exército alemão; aos 15 anos combateu no Iraque, na Palestina, chegou a comandante de cavalaria, foi ferido várias vezes, recebeu altas condecorações. Nesse período, não longe dali, ocorreram o genocídio arménio e o genocídio assírio. Quando a Guerra acabou, Höss voltou à Alemanha para fazer o ensino secundário. Juntou-se ao partido nazi, foi parar à prisão por desacatos com homicídio, voltou à liberdade graças a uma amnistia.

Com a tomada de poder pelo partido nazi começou uma carreira abominável. É difícil seleccionar exemplos. Responsável pelo campo de concentração de Sachsenhausen, mandou que todos os prisioneiros que não estavam a trabalhar formassem ao ar livre, mal vestidos, num dia de Inverno, com 26 graus negativos. Quando alguém tentou levar alguns indivíduos congelados para a enfermaria, mandou fechar as portas. 78 prisioneiros morreram durante o dia e mais 67 à noite.

O cargo mais conhecido de Rudolf Höss foi o de Director do campo de concentração e de extermínio de Auschwitz. Todos os dias chegavam vários comboios com milhares de prisioneiros cada um, para serem mortos. A operação de matar foi-se aperfeiçoando e, segundo o próprio Rudolf Höss, o processo era bastante eficiente, a limitação estava na capacidade das gigantescas fornalhas que queimavam os corpos. Num primeiro cálculo, Höss afirmou que em Auschwitz mataram 2,5 milhões de pessoas e outro meio milhão morreu de fome e doença; mais tarde, pensando na capacidade das câmaras de gás, achou que 1 a 2 milhões seria mais realista que 2,5 milhões. A própria ligeireza destas apreciações é chocante.

Rudolf Höss, na fila da frente do lado direito, numa visita de Heinrich Himmler
ao campo de extermínio de Auschwitz em 1942.

O relatório do psicólogo que examinou Höss na altura do julgamento expressa a que ponto chegou a depravação: «Höss é perfeitamente objectivo e neutro, (…) tem demasiada apatia para se pensar que tenha algum remorso e até a hipótese de vir a ser enforcado não parece incomodá-lo. Fica-se com a impressão de um homem intelectualmente normal, mas com a apatia esquizóide, a insensibilidade e falta de empatia que dificilmente se encontrariam num caso de psicose propriamente dita».

O elemento que mudou uma personalidade tão horrorosa foi a bondade com que os carcereiros polacos o trataram. Höss esperava vingança e, afinal… Numa mensagem ao advogado de acusação escreveu:

«A consciência obriga-me a esta declaração. Na solidão da minha cela, acabei por reconhecer amargamente que pequei gravissimamente contra a humanidade. (…) Fui responsável por parte dos planos cruéis de destruição humana. Infligi feridas terríveis à humanidade. Causei um sofrimento indescritível sobretudo ao povo polaco. (…) Que Deus me perdoe o que eu fiz. Peço desculpa ao povo polaco. Nas prisões polacas experimentei pela primeira vez o que é a bondade humana. Apesar de tudo o que aconteceu, trataram-me com uma simpatia que eu nunca poderia esperar, o que me envergonha profundamente. Que a actual divulgação destes horríveis crimes contra a humanidade faça com que seja impossível estes actos cruéis repetirem-se algum vez».

Poucos dias antes do enforcamento, Höss converteu-se. O padre Władysław Lohn confessou-o e no dia seguinte foi dar-lhe a Comunhão.

Em carta de despedida à mulher, Höss escreveu:
«(…) Vejo hoje claramente, de forma muito dura e amarga para mim, que toda a ideologia em que eu acreditava tão firme e inabalavelmente se baseava em premissas completamente erradas e tinha de se desmoronar absolutamente um dia. (… ) As minhas acções ao serviço desta ideologia estavam completamente erradas, (…) o meu afastamento de Deus baseava-se em premissas completamente erradas. Foi uma luta difícil. Mas voltei a encontrar a fé no meu Deus».

Despediu-se de um dos filhos, escrevendo:
«Mantém o teu coração bom. Deixa-te guiar principalmente pela ternura e por sentimentos humanos. Aprende a pensar e a julgar por ti próprio, de forma responsável. (…) O maior erro da minha vida foi acreditar caninamente em tudo o que vinha de cima, sem ousar a menor dúvida. (…) Em tudo o que fizeres, não te guies apenas pela inteligência, escuta sobretudo a voz que fala no coração».

Neste mundo, ferido novamente por guerras dolorosas e insensatas, fez-me bem conhecer este exemplo de como os gestos de bondade realizam curas maravilhosas.»


José Maria C.S. André – publicado a 5-V-2024 
em media anglo-portugueses

Boas leituras e bons filmes calham maravilhosamente em tempo de férias e descanso.  

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 

12 agosto 2024

Duas últimas *

Passo dois dias fantásticos de férias em casa do meu querido amigo fq e mulher, em Soltroia. A casa tem, numa apreciação muito genérica, muito do que quero enquanto beneficiário de férias: saio de casa a pé por um carreiro de areia e, ao fim de 5 minutos de caminhada, estou na praia; uma praia grande, sem ninguém, desanuviada e sem toldos, com uma temperatura ambiente agradável, um mar simpático e uma água moderadamente fria (como eu gosto). Hoje em dia guio pouco, porque já não tenho de me deslocar para um posto de trabalho longe. Mas, mesmo assim, privilegio não ter de usar o carro para ir para a praia. Em cima de tudo, Setembro sempre foi um mês bom para férias: há menos gente, menos calor, menos carros em circulação. 

Porque o fq não pedia postar, decidi desafiar o filho dele, João, de 17 anos, a escolher as músicas para hoje. Dei-lhe liberdade total, mesmo que as músicas escolhidas me parecessem inaudíveis. Eis o que ele decidiu, sendo que a segunda é escolhida por causa do pai.

Sejam felizes, que hoje ainda é dia de praia para mim.

JdB

* publicado originalmente a 14 de Setembro de 2017



11 agosto 2024

XIX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – João 6,41-51

Naquele tempo,
os judeus murmuravam de Jesus, por Ele ter dito:
«Eu sou o pão que desceu do Céu».
E diziam: «Não é ele Jesus, o filho de José?
Não conhecemos o seu pai e a sua mãe?
Como é que Ele diz agora: ‘Eu desci do Céu’?»
Jesus respondeu-lhes:
«Não murmureis entre vós.
Ninguém pode vir a Mim,
se o Pai, que Me enviou, não o trouxer;
e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia.
Está escrito no livro dos Profetas:
‘Serão todos instruídos por Deus’.
Todo aquele que ouve o Pai e recebe o seu ensino
vem a Mim.
Não porque alguém tenha visto o Pai;
só Aquele que vem de junto de Deus viu o Pai.
Em verdade, em verdade vos digo:
Quem acredita tem a vida eterna.
Eu sou o pão da vida.
No deserto, os vossos pais comeram o maná e morreram.
Mas este pão é o que desce do Céu
para que não morra quem dele comer.
Eu sou o pão vivo que desceu do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne,
que Eu darei pela vida do mundo».

09 agosto 2024

Pensamentos dos dias que correm

 A Solidão é Necessária ao Convívio

As pessoas estão prontas a viver em bom entendimento, mas não querem ser viciadas em agradar. A condição humana assenta num pressuposto equilibrado: a vida agrada a uns e desagrada a outros. Há uma parte da solidão que não podemos compor, e é melhor que assim seja, porque é na solidão que assenta a diferença tão falada. É isso que se receia: que nos proíbam a solidão, esse pequeno espinho que afinal nos faz solidários na multidão. Observem um grupo de pessoas que ri da mesma anedota: estão abertas a esse prazer do momento, mas não se distraem da faculdade de serem sós na sua fundamental forma de orgulho que é serem únicas. A moral consta duma certa dose de cortesia para parecermos bons. «Só Deus é bom.» Se percebermos esta conclusão, percebemos que imitar o bem é tudo o que humanamente nos é permitido. 

Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'

07 agosto 2024

Do que comemos e do que somos

Um destes dias, no Linkedin, li as recomendações de um cirurgião (penso que americano, mas não afianço), para uma vida saudável: não fumar, não beber álcool, não beber bebidas açucaradas, fazer desporto - ou pelo menos manter actividade física. Havia uma quinta recomendação, de que não me lembro, mas que estava na linha do desporto / actividade. Ou talvez fosse, simplesmente, eliminar o stress.

Ontem, ao ler as capas dos jornais / revistas, reparei num título: Idosos - o mundo é deles. Ainda na capa referia-se: supostamente, a pessoa mais velha tem 124 anos e, além de uma dieta rica em fruta e carne de cordeiro, mastiga folha de coca. Vou presumir que esta pessoa não é portuguesa. 

Um destes dias, também no Linkedin, li um post sobre esta ideia: somos o que comemos. Supostamente (gosto desta palavra para me defender) há uma ligação comprovadamente (não sei se comprovadamente e supostamente são contraditórios) muito directa entre aquilo que comemos e aquilo que somos. Um artigo do Observador que me mandaram fala também nesta ligação directa entre o que comemos e o nosso estado emocional. O título, Intestino saudável, vida saudável: quem o diz, viveu-o na pele, é quase auto-explicativo.

Por último, o Telejornal das 13.00h TVI de ontem falava em regimes alimentares (hipocalóricos, penso eu), que podem provocar ansiedade e depressão (não afianço a depressão) nos jovens. 

***

Ainda me falta ler muito para entender o verdadeiro alcance da frase somos o que comemos. Picuinhas como sou, penso se o verbo deve ser somos ou estamos. Isto é, até que ponto é que um intestino saudável conforma o que sou, me molda, me faz ter determinadas características, ou, por outro lado (um argumento que não me custa a aceitar, quem sou eu...) faz de mim o que estou

Olhar para os outros e avaliar o que são / estão em função do regime alimentar em que foram educados é um exercício curioso. Nas casas que frequentei enquanto criança ou jovem o regime alimentar pautava-se, talvez, pela disponibilidade financeira, por um equilíbrio do que já se sabia à altura, por uma tradição de cozinha familiar. Cruzar o que se comia à mesa com aquilo em que as pessoas se tornaram é, repito, um exercício curioso, próprio para dias indolentes e compridos, ou para noites de insónia.

Porque incluí o primeiro parágrafo, uma vez que está desalinhado com os restantes? Não só porque fala de hábitos alimentares que conduzem - supostamente! - a uma vida saudável, mas porque reforça uma irritação: no limitem estas recomendações matam o prazer da vida - e não garantem uma longevidade invejosa. Seguramente que contribuem, mas não garantem. 

Olho para a minha alimentação - a de agora e a de sempre - e fico satisfeito, pois reflecte o que eu penso ser à mesa: um homem saudável, com uma alimentação globalmente equilibrada, dado a alguns excessos. Se o que como faz de mim o que sou, então compro a ideia: sou um homem saudável, equilibrado, dado a alguns excessos... E não mastigo fohas de coca, pelo que não deverei chegar aos 124 anos.

JdB      

06 agosto 2024

Jogos Olímpicos - a visão de uma colectividade *

            

Os Jogos Olímpicos de Pequim [ver nota no fim da página] estão na sua recta final. Para a delegação portuguesa, com algumas honrosas excepções, não há euforia na Portela, vislumbra-se já a curva da estrada. Estou certo de que comungaremos todos do mesmo sentimento: desilusão. Não faremos com certeza o V da vitória, mas, se o despudor nos impelir a isso, haja uma alma caridosa que pendure as medalhas alcançadas nos dedos espetados. Sobra um dedo? Mas que maçada…

Não me parece que a culpa seja dos atletas, da falta de profissionalismo, da fatalidade das provas matinais para quem gosta do quente da cama, da penúria indigente em que nos encontramos, da falta de resistência à tensão competitiva. Há um problema de base que faz ruir a visão da bandeira hasteada, a audição do hino nacional expurgado do carácter marcial e transformado numa sinfonia pastoral. O problema está na escolha das modalidades nas quais teremos representantes. Estou certo disso, e a certeza instala-se em mim com uma convicção que pode ser incomodativa.

O País não está preparado para me ouvir (não levo a mal a impreparação) mas eu faria as coisas Jogo Olímpico a Jogo Olímpico. Eu explico: as modalidades medalhadas em Pequim ganhariam o estatuto de representação em Londres. As outras seriam riscadas ferozmente do Plano Desportivo Nacional.

(Neste momento apostamos no triatlo feminino, o que se me afigura económico).

Era imperioso que duas outras modalidades tivessem o total empenho do Governo, dos Clubes, das Autarquias – afinal, os grandes responsáveis pelo nosso desaire desportivo. Quais seriam? O bilhar e o ping pong, que os intelectuais do desporto chamam ténis de mesa. Porquê estes? Porque são os verdadeiramente praticados nas colectividades, ramo da economia onde somos fortíssimos. Há por esse país fora – na sua pluralidade geográfica, incluindo os arquipélagos – um manancial de talentos que investe horas no taco ou na raqueta, procurando o melhor efeito para esmagar o oponente. É gente que não carece de grandes patrocínios ou subsídios, que entrega a camisa à Pátria em troca de uma fanta laranja ou de uma imperial bem tirada.

Damo-nos mal com o estatuto de alta competição, embora o chapéu que alguns atletas usaram no desfile de abertura não ajude à moral. Criamos uma exagerada expectativa que, como se sabe, é a mãe da desilusão. Há almoços com o presidente da república, programas nos canais generalistas, conversas com a população local. Os atletas nacionais afadigam-se num corropio entusiasmante de entrevistas, fotografias, conversas informais, dissecação das biografias, informação sobre os gostos pessoais. Enquanto isto, os outros treinam - só assim se compreende que a poderosa Mongólia, o competitivo Uzbequistão e os entusiasmantes Camarões estejam à nossa frente no ranking. A nossa liga é a dos últimos, mas sabemos que há atletas lusos que elegem o passeio e o convívio com os amigos como actividades lúdicas importantes.

Não me alongo, que tenho ali uma juventude à minha espera para um torneio solidário de bilhar. É malta local que já vislumbra o Big Ben daqui por quatro anos – assim haja vontade política de mudança. Alertam-me para algo importante: estamos habituados à simplicidade deste jogo, pelo que as três tabelas só são obrigatórias para o último ponto. Tudo o resto é singelo – bola na bola na bola com opção facultativa de tabela .

A música de Verão de 2012 será A Portuguesa. Duvidam?

JdB

* Publicado originalmente a 20.08.2008 e repostado a 10.08.2016. Será que esta visão é aplicável aos jogos olímpicos de Paris?

05 agosto 2024

Poemas dos dias que correm

 XXI - Se eu pudesse trincar a terra toda

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma coisa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural... 

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

7-3-1914
O Guardador de Rebanhos”. Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946.  - 45.

04 agosto 2024

XVIII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – João 6,24-35

Naquele tempo,
quando a multidão viu
que nem Jesus nem os seus discípulos estavam à beira do lago,
subiram todos para as barcas
e foram para Cafarnaum, à procura de Jesus.
Ao encontrá-l’O no outro lado do mar, disseram-Lhe:
«Mestre, quando chegaste aqui?»
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
vós procurais-Me, não porque vistes milagres,
mas porque comestes dos pães e ficastes saciados.
Trabalhai, não tanto pela comida que se perde,
mas pelo alimento que dura até à vida eterna
e que o Filho do homem vos dará.
A Ele é que o Pai, o próprio Deus,
marcou com o seu selo».
Disseram-Lhe então:
«Que devemos nós fazer para praticar as obras de Deus?»
Respondeu-lhes Jesus:
«A obra de Deus
consiste em acreditar n’Aquele que Ele enviou».
Disseram-Lhe eles:
«Que milagres fazes Tu,
para que nós vejamos e acreditemos em Ti?
Que obra realizas?
No deserto os nossos pais comeram o maná,
conforme está escrito:
‘Deu-lhes a comer um pão que veio do céu’».
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Não foi Moisés que vos deu o pão do Céu;
meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do Céu.
O pão de Deus é o que desce do Céu
para dar a vida ao mundo».
Disseram-Lhe eles:
«Senhor, dá-nos sempre desse pão».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu sou o pão da vida:

quem vem a Mim nunca mais terá fome,
quem acredita em Mim nunca mais terá sede». 

01 agosto 2024

Moleskine

Machico - Porto da Cruz, Julho de 2024
 Jogos Olímpicos (I)

Oiço, antes dos Jogos Olímpicos começarem, uma entrevista com alguém ligado à nossa comitiva. Diz a uma determinada altura: temos fé em medalhas. Dei por mim a pensar nas medalhas que tenho ou tive: uma de Nossa Senhora do Carmo, outra de Santa Teresa do Menino Jesus, outra de um desgraçado Coração de Jesus. Nessas medalhas pode ter-se fé - talvez mesmo uma fezada; nas outras, nas olímpicas, há que ter confiança. Talvez por isso, por se confundir e confiança, vamos trazendo pouco ouro, prato ou bronze para Portugal, ainda que sejamos os melhores em tudo, segundo o nosso Presidente.

Jogos Olímpicos (II)

Gustavo Ribeiro, o nosso skatista na versão street (não estou certo de uma ou de ambas as palavras em itálico) foi prematuramente afastado, mas olha em frente com esperança - diz que ainda tem dois Jogos Olímpicos pela frente. Isto é fé e confiança em simultâneo. Vai treinar para ser melhor, conta estar vivo. 

Jogos Olímpicos (III)

Pouco tenho contra os neologismo. Na verdade, sou um grande produtor deles, embora mais por ignorância do que por criatividade. Mas nada me irritou tanto nos últimos dias (sou de irritação fácil) do que ler a expressão mesatenista aplicado às nossas representantes já afastadas, ambas com nomes chineses. O que se chamará aos que saltam à vara: saltavaristas? E aos que correm o hectómetro? Hectometristas? 

Expressões criativas

Nos últimos dias fui brindado com expressões novas, mas muito interessantes: Gabriel Alves, essa lenda do comentário futebolístico, falava na volumetria emocional (não afianço o emocional) referindo-se aos adeptos do desporto-rei. Num outro sítio, alguém se referia a alguém como sendo um cristal de energia. Podemos ler muito, mas há expressões que estão para além do poder limitado e vulgar dos humanos. São o fruto de um relâmpago, de uma epifania, de um golpe de asa.

Frase

Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente – o Corvo, as Flores, Faial, o Pico, o Pico, S. Jorge, S. Jorge, a Terceira e a Graciosa...  (Raul Brandão, in As Ilhas Desconhecidas, e que descobri ao começar a ler Mau Tempo no Canal). A frase é interessante e uma possível metáfora para a vida: afinal, o que cada um de nós tem de mais belo e nos completa é aquele / aquela que está à nossa frente ou ao nosso lado. 

JdB   

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