Para a R., para os filhos e para os irmãos.
Eram 5 da manhã de ontem quando li a mensagem de que já estava à espera: morrera o JdC. Uma mensagem curta, simpática, atenta de um filho informava o fim de uma vida que durara 65 anos e quase 3 meses.
Falar do JdC seria tarefa impossível para um post neste estabelecimento. Não só porque há muito a dizer mas, sobretudo, porque há muito que não pode dizer-se, não porque seja confidencial, mas porque se refere a emoções, memórias, sons e cheiros cuja descrição se perderia na pequenez de um vocabulário humanamente limitado. Uma vez, a propósito de algo totalmente diferente, foi-me dito por uma psicóloga: por vezes uma explicação é um fosso. Aqui seria o mesmo; explicar o que me ligava ao JdC, o que foram 52 anos de amizade - que se cumpririam este Setembro - seria uma tarefa ingrata. Por isso este post é, sobretudo, para mim e para todos aqueles que, lendo-me, conseguirão dizer: sei bem do que ele fala; eu estava lá.
Quando há uns anos escrevi um texto sobre o desaparecimento da Mãe do JdC, disse o óbvio, suportado num cliché: com o desaparecimento de algumas pessoas há um parte de nós que desaparece. Há uma certa inverdade na frase. De facto, com o desaparecimento do JdC nada em mim desaparece, porque algumas coisas na vida não se esquecem nem se repetem, ficam de pedra e cal no nosso íntimo. Não se repete nem se esquece o cheiro dos candeeiros a petróleo que projectavam danças nas paredes, não se repetem os fins de manhã no adro, os corredores compridos, os passeios na mata, a compota de amora ou a vista que era sempre sobre Bencatel. Não se repetem nem se esquecem aqueles setembros. Os cheiros e os sons são só meus, porque só eu sei como os sentia ou ouvia. E nesses Setembros, que existem enquanto eu existir, estava o JdC. Na felicidade máxima da minha adolescência de verão estava o JdC.
O que gostaria eu de dizer sobre ele? Não sou pessoa para apenas enaltecer as qualidades que tinha, nem suscitar críticas excessivas sobre os defeitos. O JdC era um homem com luz e sombra, com sonhos e desalentos. Porém, mais do que referir o que ele era para todos, quero referir o que ele era para mim: um homem que me ouviu muito, que me apoiou muito (concordando e discordando) e que me consolou muito em tempos difíceis; um homem com quem partilhei tudo o que seria partilhável (de amores perdidos a acontecimentos dos quais quase ninguém sabe), com quem fumei às escondidas, com quem viajei de Harare até à Beira a cantar Bob Dylan ou Neil Young aos gritos, com quem joguei muito às cartas, com quem militei politicamente, e com quem roubei bolos da penumbra de uma despensa. Não fizemos coisas mirabolantes - nada do que disse acima é digno de relevo ou de espanto - mas a minha vida está cheia de trivialidades que se agarram à memória de forma persistente, porque é a elas que volto quando (me) quero falar de parte feliz da minha vida. Estas memórias - dele e com ele - são as migalhas que, na floresta, me ensinam o regresso a casa.
Com o desaparecimento do JdC, estatisticamente antes do seu tempo, desaparece um amigo forte e antigo; desaparece um interlocutor, um contemporâneo activo de parte substantiva da minha vida. O leque das pessoas com quem posso falar sobre a memória desses tempos vai-se reduzindo, pese embora os irmãos e outras pessoas (o fq, por exemplo, um dos sobreviventes de tantas noites de 6ªfeira) saberem do que falo e terem a sua sensação de cheiros e sons que eram de todos. O desaparecimento do JdC é também um ensinamento que devia ser manual de boas práticas: cuidar de quem nos está mais próximo, ajuizar bem as guerras que queremos travar e, citando a Bíblia, vigiar, porque não sabemos o dia nem a hora.
O JdC fez comigo o que sei que fez com outras pessoas: na sua última semana telefonou-me por video-chamada e trocámos meia dúzia de frases. Foi a última vez que o vi, foi a última vez que o ouvi. Comigo ficará a frase que me disse, como ficará tudo o resto que foi a minha vida perto dele, afastada dele, mas, acima de tudo, certa dele. E esta certeza morrerá comigo.
JdB
2 comentários:
Meu caro JdB,
As minhas memórias são também extensas, embora mais curtas do que as tuas (1976, penso), e são também de tempos leves e felizes.
Lembro a estadia de 18 dias de nós os três em NY (1981), apesar de termos falhado o concerto ao vivo de Simon & Garfunkel no Central Park por meia dúzia de dias (não havia internet...).
Os amigos verdadeiros que fazemos pela vida fora são poucos. Acho sem presunção que é o nosso caso, e agradeço-o muitas vezes. E continuarei a fazê-lo.
Abr
fq
Muito obrigada. Que beleza de texto! Tenho a certeza que o João, como contador de histórias que era, gostou muito! Beijinhos
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