07 agosto 2015

Dos dias desafiantes (e sobretudo do Padre Ricardo)

Aqui há cerca de quinze dias escrevi um post intitulado 'Crer tudo ou negar tudo', assente num excerto muito bonito, mas sobretudo muito desafiador, d'A Peste, de Albert Camus: 'Meus irmãos, chegou o instante. É preciso crer tudo ou negar tudo. E quem, de entre vós, ousaria negar tudo?'

Há poucos meses soube que um amigo recente sofria de uma doença grave. Foi internado na semana passada, quase ao mesmo tempo que a mulher de um primo que, na sequência de um aneurisma, está no hospital em coma induzido. Nesse mesmo dia, uma grande amiga de uma pessoa que me é próxima - e que vive momentos familiares muito difíceis - era morta a tiro pelo ex-namorado. Este amigo recente morreu anteontem, um dia antes do Padre Ricardo Neves, pároco do Estoril, muito muito lá de casa, com 40 e poucos anos e um destino traçado há meses. Dois outros amigos / primos sofrem de uma problema de saúde grave, com um prognóstico muitíssimo reservado. Podia citar mais exemplos, mas fico-me por aqui.

(Lembro-me de há alguns anos, talvez na sequência do tsunami que matou milhares e milhares de pessoas, um jornal perguntar a representantes de várias confissões religiosas: onde estava Deus nesse dia?)


Hoje, talvez, irei a uma missa por alma do Padre Ricardo. Gostava que o Cardeal Patriarca, que celebrará, nos falasse ao ouvido, encostasse o ombro a cada um dos nossos ombros, chorasse com quem chorar, desse as mãos a quem tremer de saudade ou de pena ou de frio na alma. Talvez eu queira falar-lhe no amigo que morreu, na mulher morta a tiro que tanta falta faz a quem já pouco tem, na pessoa que está em coma induzido, nos outros dois agarrados à vida e aos próximos por um fio cada vez mais ténue. Gostava de lhe falar nas crianças que morrem antes do riso adolescente, nos adultos que morrem antes do tempo estatístico, em todos os que sofrem cheios de lembranças e lágrimas. Gostava de lhe falar no Pe. Ricardo e na falta que me faz. Gostava de lhe falar dos abraços dele, dos desafios que me lançou, na compaixão com que me ouviu ou na sabedoria com que me respondeu. Gostava de lhe falar no capital de inteligência, proximidade, fé militante que desaparece com ele. Gostava de lhe perguntar o que se está a passar... 

Não esqueço a minha condição de crente, de quem está certo da existência da eternidade, do colo imenso de Nossa Senhora, do céu azul e infinito onde cabem todos, que Deus não é senão amor. Mas, reconheço, não quero que me falem de vida eterna, da dimensão teológica da morte, da inevitabilidade que nos toca a todos, de Jesus Cristo que a venceu. Talvez gostasse que nos sentássemos e reconhecêssemos a nossa pequenez, a nossa tristeza, a nossa incredulidade - talvez até a nossa perplexidade ou mesmo o sentido de injustiça de tudo. Ontem, à hora a que escrevia, não queria palavras piedosas nem cheias de esperança num futuro de uma dimensão superior. Talvez quisesse que alguém me dissesse, cheio de uma humanidade frágil e reconfortante: a gente não percebe nada disto... 

Creio tudo, porque não quero negar tudo. Mas há dias difíceis...

JdB    

8 comentários:

Anónimo disse...

Um texto importante e interpelante.
Acrescento um abraço fraterno, num momento que só pode ser, para si, meu mui caro amigo, muito difícil..

gi.

Anónimo disse...

Texto fabuloso! Sarabi

Anónimo disse...

Na realidade a gente não percebe nada disto..., mas com fé (mesmo com algumas "dúvidas"), lá vamos caminhando nas ruas, avenidas e caminhos propagando o Amor que é o mais importante, mesmo que nos doa muito.
Reflexão muito bem elaborada.

JdB disse...

Obrigado a todos pelos vossos comentários

Luísa A. disse...

João, eu também não percebo nada disto. Mas algo me diz que essas pessoas, que estão mal, se adaptam, vivem e aceitam, heroicamente, a sua sorte. E que nós, que estamos «bem», sofremos por eles, mas também muito pela culpa de estarmos bem. A vida tem coisas péssimmas, e uma delas é passar ao largo de qualquer sentido de delicadeza e de justiça.

Anónimo disse...

Grande texto!
O Pe. Ricardo vai-nos fazer muita falta! Homens da grandeza dele são cada vez mais raros.

Resta-nos lembrar das coisas boas que ele nos proporcionou e dos abraços que até nos arreepiavam a espinha.
Para mim em particular, foi essencial na minha reaproximaçao á igreja e na renovacao da minha FÉ.

Grande abraço JBD

Madalena Ghira disse...

Quase cinco meses depois, ainda à procura de tudo de onde possa "beber" Pé.Ricardo, encontro um espaço onde os "seus" abraços são adjectivados, lembrados... Sim, os abraços do PeRicardo eram inigualáveis... Havia ali uma qualquer doçura que não era doçura qualquer. Era o conforto e a paz imediata que dali vinha. Era aquele sorrisinho doce e malandro, como o de uma criança. Sera inesquecível mas a certeza de o ter abraçado, deixou-me a certeza do perto que estive do céu, a cada abraço por que esperei ansiosa, naquela fila gigante ao final da missa... Concordo consigo, naquele instante, queria ouvir falar dele e não do céu, para que este ficasse mais próximo, porque ainda é na terra que me encontro. Naquele instante que se prolonga, continuo a procurar ouvir as suas histórias, na saudade de alguém. Gostei de o encontrar aqui. Obrigada.

JdB disse...

Bom dia Madalena. Obrigado pelo seu comentário. Acho que disse (quase) tudo sobre o que o Pe. Ricardo representou para mim e para tanta gente. Faz-nos muita falta e estou certo de que ele perdoará esta "blasfémia": não há Céu que conforte a falta que ele nos faz.

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