30 julho 2012

Vai um gin do Peter’s?

Sai-se revigorado do filme francês «AS NEVES DO KILIMANJARO»(1). Equivale a uma ida ao (ou vinda do) SPA. O título recupera uma versão antiga, com Ava Gardner(2), de 1952, embora só lhe aproveite a imagem de marca e a música. É um facto que a história inclui um projecto de ida ao Quénia, pelo que o nome da película faz todo o sentido. Os felizes contemplados são um casal a comemorar 30 anos de casados – Michel e Marie Claire – um feito nos dias que correm, sobretudo por  sintonizarem maravilhosamente.
Companheirismo que soube crescer diariamente

O cenário, as figuras e a base da narrativa parecem banais, situados numa França industrializada, onde o operariado desfruta de um nível de vida folgado, perfeitos burgueses num país rico do hemisfério Norte. São pequenos desvios na trama, que vão tornando especial e única a mais prosaica das existências.
O argumento inspira-se no poema magistral de Victor Hugo (1802-1885), «Pobres» (Les Pauvres Gens(3)), mais conhecido pelo famoso romance «Les Misérables», celebrizado nos anos 80 através do grande musical da Broadway: Les Mis.  Também no filme, à maneira de Victor Hugo, somos introduzidos nos meandros do sub-mundo dos desfavorecidos, quase sempre marginais agressivos. Os mais frágeis dos pobres são os preferidos pelo genial escritor francês, do tempo da Revolução Industrial, que tinha uma notável consciência social mas abominava a luta de classes e os confrontos sociológicos preconizados pelo comunismo emergente.
O realizador gaulês parte da condição de um líder sindicalista (o Michel) ainda cheio de ideal, apesar da idade avançada. Praticamente não se deixara acomodar, depois de todas as vitórias laborais somadas ao longo dos anos. Um puro que, um dia, teve a ousadia de se colocar na situação dos trabalhadores a termo, verdadeiros párias do mercado de trabalho. Quis partilhar a extrema vulnerabilidade deles. E as sortes permitiram-lhe, atirando-o de imediato para o desemprego –  é a primeira surpresa. Das fortes.
Os colegas olham-no estupefactos e incrédulos, com a noção de que as sortes poderiam tornar tudo irremediável…

A segunda surpresa é a reacção incrivelmente mansa e compreensiva da mulher, confiante nas opções do marido, incluindo as mais imprudentes, para muitos – irresponsáveis! A espantosa ternura entre ambos, fruto de um longo crescimento em conjunto, está na base do bom entendimento do casal. Entre os dois, os silêncios cúmplices ainda flúem melhor do que as palavras trocadas.
A terceira surpresa está na vida de família alegre, simples e intensa, conseguindo ser aquele espaço alargado de companheirismo e ânimo de vida, onde os amigos gostam de se vir acolher. Lembra as árvores ancestrais dos jardins antigos, de copa generosa, onde todas as aves das redondezas encontram lugar. Ali reina sempre um festim de chilreios e animada confusão.
Só a mãe aceita sem objecções o desemprego do pai

Na sequência do festim da família vem um presente extraordinário, resultado da colecta dos muitos amigos do casal. O pico do Kilimanjaro entra, então, no horizonte!
A acção, até aqui pautada por uma afectividade rica e descontraída, acessível a todos, baseando-se no gozo dos pequenos bons momentos do dia-a-dia, sofre um revés grotesco, com um assalto violento. Aqui introduz-se uma nota de mal, típica da actualidade (sub)urbana, com todos os ingredientes a que já estamos, infelizmente, q.b. habituados. E logo é a viagem espectacular o principal móbil do crime! Quem diria que um bem dá tanto pretexto ao mal.
A quarta surpresa, ao estilo de Victor Hugo, faz desviar a câmara para o assaltante, revelando-nos o rosto humano e dorido do encapuçado, que tínhamos detestado segundos antes… Esta capacidade de nos aproximar de perspectivas e experiências de vida que nos são estranhas e nada atractivas (ou sequer recomendáveis), reevoca a história do pescador do século XIX, contada no poema LES PAUVRES GENS, cujo desfecho o realizador do século XXI transpõe directamente para o filme.
Essa quarta surpresa abre uma caixa de pandora, reveladora da realidade do assaltante. Segue-se uma catadupa de novos acontecimentos, a começar por uma nova agressão, mais insidiosa, precisamente ao sindicalista puro e magnânimo, que considerara ter tido uma atitude bem solidária com os colegas de trabalho mais pobres, ao arriscar o desemprego. Só que os mais pobres não lhe agradecem, pois nem reconhecem o mérito do gesto! Antes atacam-no, acusando-o de má estratégia laboral, além de se indignarem com a enorme desigualdade entre uns e outros, apesar de partilharem a mesma condição de desempregados. A agressão moral e intelectual desferiu um golpe mais feroz que a do assalto, desestabilizando totalmente o manso Michel. Foi o descontrole do marido (e não o ficar sem emprego) que Marie Claire teve dificuldade em acatar, pois não se quadrava com o seu sentido de lealdade e grandeza humana, onde não há lugar para os ataques de fúria de quem está por cima – puras usurpações de poder (à escala de cada um).
A raiva perante a segunda acusação acabou por evoluir para a compaixão perante a óbvia dureza de vida do ladrão insolente, com dois irmãos menores a seu cargo. Marido e mulher, que somavam 30 anos de óptima cumplicidade, experimentam uma nova sintonia, algo imprevista, onde se apanham a olhar a dificuldade alheia, exactamente do mesmo modo, apesar de  ser uma bizarria para as outras pessoas. Percebe-se que o diagnóstico semelhante encaminha-os também para uma solução igual, ancorados na mesma humanidade, tão generosa, que os faria sentirem-se paupérrimos se não a pudessem partilhar com os marginalizados. Sobretudo menores e inocentes. Essa era a sua profunda consciência social – a mais rara, útil e muito acima de qualquer ideologia.  
A viagem de sonho às neves eternas do Kilimanjaro fizeram-nos ascender a maiores alturas – àquelas que dão a estatura do ser humano, como afirma Pessoa (pelo seu heterónimo, Alberto Caeiro): «Porque eu sou do tamanho daquilo que vejo / E não do tamanho da minha altura.». Num jogo de teenagers, o velho casal diverte-se a imaginar os animais selvagens que encontrariam nos safaris do Quénia, sugeridos pelos diversos banhistas que observam na praia. A nova opção de vida, sempre a dois e sempre aberta aos demais, fizeram-nos preferir outras paragens, menos exóticas, mas não menos emocionantes.
Preferem outro prémio, onde a sua presença é imprescindível
Interessante o choque de gerações ao longo do filme, no sentido inverso ao comum, com os mais seniores a ganharem aos pontos… no diálogo com os filhos, na resposta final ao jovem assaltante.
Interessante o sentido de universalismo da sociedade, próximo de Victor Hugo (nada adepto da diferenciação por classes), em que de todas as janelas se vislumbra a azáfama de guindastes, no porto de Marselha. O realizador explica como a vista de todas as casas é igual – seja nos condomínios de luxo, seja nos bairros sociais --  numa metáfora que exalta os valores comuns a qualquer ser humano. 
Interessante registar o efeito de choque que as decisões mais generosas provocam em redor. Essas sim, verdadeiras revoluções, nem sempre bem quistas, sobretudo – ironia das ironias – pelos mais novos!
Interessante ainda o ânimo inquebrantável de Marie-Claire, que prescindira de ser enfermeira, por dar prioridade à família. Tem a arte de se divertir sobriamente com as realidades comezinhas, na esplanada frequentada por miúdos da idade dos filhos, a saborear uma bebida apetitosa que o barman-“psicólogo” recomendou para a situação dela. Com humor, pediu logo dose dupla, porque a sua vida merecia-o! Nem hesita em trocar as patuscadas com as amigas, pelo apoio a crianças desamparadas, mantendo a boa disposição de quem vem das patuscadas.
O gosto pelas pequenas coisas é uma escolha assumida pelo realizador: «Adoro infinitamente as coisas banais que acontecem na vida todos os dias: café, recados, discussões… No cinema são os pequenos detalhes do quotidiano que, colocados na narrativa, acrescentam camadas e profundidade. (…) E filmo-as (…) de forma muito simples, para não contar nem mais nem menos do que elas são, sem qualquer sofisticação em particular: como a própria vida!» 



Interessante história que, ao lembrar les pauvres gens com o olhar de quem os reconhece feitos da mesma massa que todos os outros, nos desafia a repensar na vida e nos outros. O tempo de férias vem a calhar.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 
_____________
 (1) FICHA TÉCNICA

Título original:
LES NEIGES DU KILIMANDJARO
Título traduzido em Portugal:
AS NEVES DO KILIMANDJARO
Realização:
Robert Guédiguian
Argumento:
Robert Guédiguian e Malek Hamzaoui
Produzido por:
Robert Guédiguian, Jean-Louis Milesi
Fotografia:
Pierre Milon
Banda Sonora:
Pascal Mayer
Duração:
107 min.
Ano:      
2011
País:
França

        Elenco:

Ariane Ascaride (mulher do casal, Marie-Claire)
Jean-Pierre Darroussin  (o marido, Michel)
Gérard Meylan  (cunhado de Michel, também sindicalista)
Marlyne Canto  (irmã de Marie-Claire)
Christophe         (assaltante)
Ana*is Demoustier (filha, Flo)
Adrien Jovilet  (filho, Gilles)
etc.
Local das filmagens:
França
Site oficial:

http://diaphana.fr/film/les-neiges-du-kilimandjaro

Pálmarés e distinções

Prémio Lux do Parlamento Europeu

Selecção Oficial no Festival de Cannes
Prémios do Melhor Filme e do Público no Festival de Valladolid.


(2) Película norte-americana com grandes actores: 


(3) Link para aceder ao poema na língua original: http://poesie.webnet.fr/lesgrandsclassiques/poemes/victor_hugo/les_pauvres_gens.html

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