31 julho 2017

Textos dos dias que correm

Ser Feliz é uma Responsabilidade Muito Grande

Ser feliz é uma responsabilidade muito grande. Pouca gente tem coragem. Tenho coragem mas com um pouco de medo. Pessoa feliz é quem aceitou a morte. Quando estou feliz demais, sinto uma angústia amordaçante: assusto-me. Sou tão medrosa. Tenho medo de estar viva porque quem tem vida um dia morre. E o mundo me violenta. Os instintos exigentes, a alma cruel, a crueza dos que não têm pudor, as leis a obedecer, o assassinato — tudo isso me dá vertigem como há pessoas que desmaiam ao ver sangue: o estudante de medicina com o rosto pálido e os lábios brancos diante do primeiro cadáver a dissecar. Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo o abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Deus. 

Clarice Lispector, in 'Um Sopro de Vida'

***

O Que me Mata é o Quotidiano

Dor? Alegria? Só é simplesmente questão de opinião. Eu adivinho coisas que não têm nome e que talvez nunca terão. É. Eu sinto o que me será sempre inacessível. É. Mas eu sei tudo. Tudo o que sei sem propriamente saber não tem sinónimo no mundo da fala mas enriquece e me justifica. Embora a palavra eu a perdi porque tentei falá-la. E saber-tudo-sem saber é um perpétuo esquecimento que vem e vai como as ondas do mar que avançam e recuam na areia da praia. Civilizar minha vida é expulsar-me de mim. Civilizar minha existência a mais profunda seria tentar expulsar a minha natureza e a supernatureza. Tudo isso no entanto não fala de meu possível significado. 

O que me mata é o quotidiano. Eu queria só excepções. Estou perdida: eu não tenho hábitos. 

Clarice Lispector, in 'Um Sopro de Vida'

30 julho 2017

17º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 13,44-52

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus às multidões:
“O reino dos Céus é semelhante
a um tesouro escondido num campo.
O homem que o encontrou tornou a escondê-lo
e ficou tão contente que foi vender tudo quanto possuía
e comprou aquele campo.
O reino dos Céus é semelhante
a um negociante que procura pérolas preciosas.
Ao encontrar uma de grande valor,
foi vender tudo quanto possuía e comprou essa pérola.
O reino dos Céus é semelhante
a uma rede que, lançada ao mar,
apanha toda a espécie de peixes.
Logo que se enche, puxam-na para a praia
e, sentando-se, escolhem os bons para os cestos
e o que não presta deitam-no fora.
Assim será no fim do mundo:
os Anjos sairão a separar os maus do meio dos justos
e a lançá-los na fornalha ardente.
Aí haverá choro e ranger de dentes.
Entendestes tudo isto?”
Eles responderam-Lhe: “Entendemos”.
Disse-lhes então Jesus:
“Por isso, todo o escriba instruído sobre o reino dos Céus
é semelhante a um pai de família
que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas”.

29 julho 2017

Pensamentos Impensados

Saneamentos
Jornalista despedido por alegadamente ter inventado a palavra alegadamente.

Pregões
Governo apregoa transparência e eu pratico-a: lavei os vidros das janelas da minha casa.

Ovos moles
Assunção Cristas diz que Governo não tem postura; não sabia que o Governo punha ovos.

Contas de cabeça
Toiro nega-se a investir alegando que juros são baixos.

E tudo o vento levou
A palavra acontecimento foi por ares e eventos.

What's in a name
A deputada brasileira Domicília Costa deve ser uma pessoa muito caseira.

Sarrafada
O boxe pratica-se com assaltos à mão armada... de luvas.

Desencontros
Stanley cruzou-se com Livingstone mas não há notícia de descendência.

SdB (I)

28 julho 2017

Ontem e hoje

Estou de férias no litoral alentejano. Ontem transportei de carro para a praia duas crianças de 5 e 6 anos que a dada altura pediram para se ligar a telefonia - ou rádio, como se diz agora. Naquele instante tocava uma música em inglês, presumo que moderna, que eles cantaram a plenos pulmões. Presumo, igualmente, que não faziam a mais pálida ideia do que estavam a cantar. Mas, durante uns poucos minutos, dois miúdos pequenos acompanharam uma música sem se enganarem.



Depreendo, sem necessidade de um enorme exercício de discernimento ou de adivinhação, que estas músicas que eles cantam - como cantaram outra a seguir, durante a qual discutiram se era os D.A.M.A. ou o AGIR - as ouvem na rádio, para manter o vocabulário ao nível da modernidade. Ouvem com os pais quando vão de viagem, de e para a escola, porque os Pais são gente saudável, que não ouve Mozart ou António dos Santos com um sorriso no rosto.

Recuo à idade deles. Recuo, portanto, a 1963, 1964. Imagino-me no Morris do meu pai (CE-33-83, parece-me) a ouvir rádio que, em bom rigor, não sei se tinha. Mas suponhamos que tinha, em benefício do raciocínio. E suponhamos que eu cantava a plenos pulmões as músicas famosas da época, que passavam na telefonia (para manter o vocabulário ao nível da História). O que ouviria eu? O que cantaria eu, com a mesma alegria que dois miúdos ontem, a caminho da praia do Malhão?





Talvez o Morris não tivesse rádio, pelo que tudo isto cai por terra. Ou talvez não tivéssemos a liberdade canora dos miúdos de agora, e tudo caia também por terra...

JdB

27 julho 2017

Das direcções *

Durante muito tempo foi apenas o Miguel, sendo que a palavra a itálico se refere a uma dimensão a ser explicada não tarda um instante. Era um homem reconhecidamente bonito, com um cabelo forte, negro, ondulado e abundante a encimar uns olhos muito verdes, quase transparentes. Além de tudo era alto e bem constituído fisicamente, o que reforçava a certeza da injustiça terrena: uns são quase tudo, outros são pouco mais do que nada.

Por volta dos 30 anos, o advérbio apenas viria a ser substituído pelo substantivo padre – ambas as expressões a itálico, revelando, porém, realidades profundamente diferentes. Poupemos na caracterização da melena negra e do inegável corpore sano, porque a mudança de estatuto não implica alterações obrigatórias de carácter físico. Percebeu-se então o que já se suspeitava: tudo lhe assentava bem, fosse um polo coçado e umas calças de ganga velhas, um casaco de bom corte, uma camisa azul riscada com um cabeção – ou mesmo uns paramentos antigos debruados a ouro fino.

Num dia de Maio, com um sol intenso bafejado por uma brisa suave, Matilde entrou na igreja onde o Padre Miguel era prior, solicitando a resolução de um assunto que de momento não se considera relevante. Tinha uma elegância fina, um conhecimento profundo do que era e do que vestia, e uns óculos escuros de marca. Havia naquele corpo, esguio sem ser magro, alto sem ser desconforme, uma consciência clara que podia traduzir-se (digo eu, que não lhe perguntei) numa frase simples: sou respeitadora da igreja, mas sou mulher. A generosidade do decote e o tamanho da saia estavam na fronteira certa, porque a elegância e o respeito não circulam no espaço shengen.

Quem observou o diálogo entre o prior e a dama revela factos: um aperto de mão forte, uns dedos femininamente esguios assentes num antebraço musculado, sorrisos e silêncios, o olhar dela que não se fixou no dele, as frases educadas que revelam uma despedida amistosa. Há depois o que a pretensa virtude qualificou no domínio do subjectivo - ou da maledicência: a desadequação da roupa e do contacto físico, umas gargalhadas demasiadas, uns óculos escuros inapropriados, uma desconfiança materializada em o que vai sair daqui? 

Durante algumas semanas as conversas entre Matilde e o Padre Miguel continuaram com uma regularidade, feita não só de dias e horas marcadas, como também de adereços: o cabeção e a camisa riscada, os óculos escuros e a elegância feminina, o riso e a conversa prolongada. Uma mudança, para alguns nada despicienda, provocou uma alteração ao nível da sintaxe. A partir de um dado momento já não se perguntava o que iria sair dali (interrogação) mas sabia-se que algo iria sair dali (exclamação). De facto, ambos os interlocutores se despediram com um beijo, o que configurava uma qualquer intimidade.

Em Setembro, a paróquia do Padre Miguel organizou uma conferência cujo título (tal como o assunto de Matilde) não se considera relevante, até por ser na linha de tantas outras. Cadeiras dispostas em semicírculo, a da elegância feminina e dos óculos escuros no lado oposto da do cabeção e da cabeleira negra e abundante - frente a frente portanto, como se fossem dois toldos nas extremas de uma enseada. Naquele momento ninguém quis arriscar se as posições mútuas se deviam a acaso, se a estratégia. A sala em redor foi-se compondo com paroquianos numa ocupação gradual – e nem sempre pontual – dos espaços vazios. No curtíssimo intervalo assistiu-se, então, ao inimaginável: frente ao prior, Matilde atirava beijos, abria sorrisinhos marotos, estirava os lábios em boquinhas sensuais, acenava adeuses cúmplices. Pela assembleia perpassou uma guerra interior na qual se digladiavam os bons costumes da santa madre igreja e o erotismo mais descabido e público. 

No fim da palestra, no preciso instante em que algumas pessoas mais acaloradas se enchiam de furor virtuoso e avançavam para uma flagrante indignação, Matilde levantou-se, abriu os braços e, olhando para o prior, caminhou numa direcção ligeiramente desviada. Vítima de um tropeção, agarrou-se a custo a uma cadeira de madeira com estofos de napa preta. Os óculos escuros misteriosos, imagem de marca da sua elegância feminina, voaram pela sala, indiferentes ao recinto, ao público, à dona, ao decoro. O espanto foi total: Matilde tinha um olho violentamente assimétrico e que a forçava a olhar para a direita quando queria ir em frente, ou a olhar em frente se queria ir para a esquerda. Passou a dois metros do prior mas ainda teve tempo para lhe dizer:

- Quer conhecer o meu noivo que está aqui atrás de si? É o oftalmologista de que lhe falei.

JdB    

* publicado inicialmente em 12.04.12

26 julho 2017

Duas Últimas

A minha relação com a dança moderna encontra o seu busílis ao nível da música. Fora isso, até a prefiro ao ballet moderno, do qual já estou um pouco cansado. Por outro lado, nos últimos tempos tenho-me habituado a trabalhar com música, mas apenas clássica. Um destes dias cruzei-me com um espectáculo de ballet moderno acompanhado (quem acompanha quem?) por música de Puccini. Gostei tanto que andei para trás, para ver o que não tinha visto. Curiosamente, a minha relação com o bel canto é tardia, mas as árias que eram dançadas eram todas belíssimas, levando-me a pensar que tenho alguns anos de atraso...

Não vos deixo com a companhia (Julie Lestel, se quiserem investigar) porque não encontrei nenhum youtube muito digno de ser aqui colocado. Ou pelo menos não encontrei quase nada com música de Puccini. Mas deixo-vos com duas peças do compositor de que gostei muito. A primeira pode ser ouvida quase a sotto voce.  A segunda sugiro som alto - até por uma questão de catequese da vizinhança. 

JdB



25 julho 2017

Da semelhança entre coisas diferentes



Declaração de interesses: o raciocínio subjacente a este post não é totalmente meu.

***

Que ligação há entre a imagem da esquerda e a imagem da direita? Em que se assemelha o Desterrado, de Soares dos Reis e um consomé de aves? Aparentemente nenhuma, aparentemente em nada. E no entanto, se olharmos para a estátua como uma escultura, não dando importância ao nome nem ao artista, talvez encontremos mais facilmente uma conexão qualquer. Vejamos, então:

Já aqui falei no pensamento de Miguel Ângelo que olhava para um bloco de pedra e imaginava a obra que dali sairia. Bastava-lhe, para isso, retirar tudo o que estava a mais. Esta ideia, que prova a genialidade do escultor, vai na linha da curiosidade seguinte, que nos diz que todas as formas de arte são acrescentos: coloca-se tinta em cima de uma tela; colocam-se palavras em cima de uma folha de papel; colocam-se notas de música em cima de uma pauta; colocam-se desenhos em cima de folhas de rascunho. Todas as formas de arte, sobretudo as mais vulgares, são, de facto, acrescentos. A única em que a situação é inversa é nesta forma de escultura (por oposição a uma mais moderna, com justaposição de elementos): de um bloco de pedra tira-se o acessório. Não se acrescenta nada, muito pelo contrário. 

Um consomé de aves é a escultura de uma cozinha elegante. Não porque nalguns casos não possa ser considerada uma obra de arte, mas porque é o contrário do acrescento cujo paradigma poderia ser, por exemplo, a sopa da pedra, prato no qual se acrescenta tudo, até uma pedra... Um consomé de aves é, de alguma forma, o percurso inverso: retira-se tudo, porque apurar - uma palavra tão importante na gastronomia - é retirar, é chegar à essência dos ingredientes despojando-os das suas características desinteressantes e inúteis. É chegar ao tutano das coisas. Apurar não é apenas transformar, fazer passar do estado sólido ao estado pastoso, amolecer matéria-prima, misturar, combinar sabores. Apurar é esculpir - é olhar para um bloco de pedra e ver um líquido claro que satisfaz os sentidos.

Nesse sentido - e só nesse sentido - não há diferença entre o Desterrado e um Consommé de Volailles

JdB  

24 julho 2017

Poemas dos dias que correm

Como se Morre de Velhice

Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)

Cecília Meireles, in 'Poemas (1957)'

***

Porque o Melhor, Enfim

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!
_ Sorrindo interiormente,
Co'as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. _
Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.
Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.
Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva
Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos

Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.
Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício
Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...
Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,
Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...
Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranqüilas,
Em brutos pugilatos
Fraturam-se as maxilas...
E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.

Camilo Pessanha, in 'Clepsidra'

23 julho 2017

16º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 13,24-43

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus disse às multidões mais esta parábola:
“O reino dos Céus pode comparar
-se a um homem
que semeou boa semente no seu campo.
Enquanto todos dormiam, veio o inimigo,
semeou joio no meio do trigo e foi-se embora.
Quando o trigo cresceu e deu fruto,
apareceu também o joio.
Os servos do dono da casa foram dizer-lhe:
‘Senhor, não semeaste boa semente no teu campo?
Donde vem então o joio?
Ele respondeu-lhes: ‘Foi um inimigo que fez isso’.
Disseram-lhe os servos:
‘Queres que vamos arrancar o joio?’
‘Não! – disse ele –
não suceda que, ao arrancardes o joio,
arranqueis também o trigo.
Deixai-os crescer ambos até à ceifa
e, na altura da ceifa, direi aos ceifeiros:
Apanhai primeiro o joio e atai-o em molhos para queimar;
e ao trigo, recolhei-o no meu celeiro’“.

Jesus disse-lhes outra parábola:
“O reino dos Céus pode comparar-se a um grão de mostarda
que um homem tomou e semeou no seu campo.
Sendo a menor de todas as sementes,
depois de crescer, é a maior de todas as hortaliças
e torna-se árvore, de modo que as aves do céu vêm abrigar-se nos seus ramos”.
Disse-lhes outra parábola:
“O reino dos Céus pode comparar-se ao fermento
que uma mulher toma e mistura em três medidas de farinha,
até ficar tudo levedado”.
Tudo isto disse Jesus em parábolas,
e sem parábolas nada lhes dizia,
a fim de se cumprir o que fora anunciado pelo profeta,
que disse: “Abrirei a minha boca em parábolas,
proclamarei verdades ocultas desde a criação do mundo”.

Jesus deixou então as multidões e foi para casa.
Os discípulos aproximaram-se d’Ele e disseram-Lhe:
“Explica-nos a parábola do joio no campo”.
Jesus respondeu:
“Aquele que semeia a boa semente é o Filho do homem
e o campo é o mundo.
A boa semente são os filhos do reino,
o joio são os filhos do Maligno
e o inimigo que o semeou é o Demónio.
A ceifa é o fim do mundo
e os ceifeiros são os Anjos.
Como o joio é apanhado e queimado no fogo,
assim será no fim do mundo:
o Filho do homem enviará os seus Anjos,
que tirarão do seu reino todos os escandalosos
e todos os que praticam a iniquidade,
e hão-de lançá-los na fornalha ardente;
aí haverá choro e ranger de dentes.
Então, os justos brilharão como o sol
no reino do seu Pai.
Quem tem ouvidos, oiça”.

22 julho 2017

Pensamentos Impensados

Cortiça
A Lei da Rolha, para os bombeiros, terá sido inventada por Américo Amorim?  

Comisxões
Vai ser criada uma Comissão de Inquérito para averiguar o que fizeram as outras Comissões de Inquérito. 

Tradu...sons
Too late em português é tu leite. 

Falares
Se há políticos que não presam declarações é porque as declarações não prestam.

Diz
Dispensa, digo pensa.
Distraído, digo traído.
Disputa. não digo. 

Armas e canhões asinaláveis
O  Exército devia declarar o valor das armas nos paióis para os ladrões não irem ao engano, como em Tancos. 

Fogos e factos
No tempo da outra Senhora não havia incêndios como há agora. A culpa seria da PIDE ou da censura. 

Satélites
Astronautas sofrem interrupção involuntária da gravidade.

SdB (I)

20 julho 2017

Da rua da minha infância

Ontem almocei no Cadaval em casa de amigos. Ele mais recente, ela protagonista de uma amizade que data de 1969. Apesar de pouco nos termos visto nos últimos anos, nunca perdemos o contacto (telefónico) pelo menos duas vezes por ano. 

Entre 1969 e 1975, talvez, vivi em S. Pedro do Estoril, no fim de uma rua. Uma casa depois da nossa era campo até à Parede. Ali andei de bicicleta, ali saltei à fogueira, ali aprendi a fazer e a andar de carrinho de rolamentos, ali fumei e beijei e namorei às escondidas, ali fiz amizades que perduraram durante décadas. Ali vivi a alegria de fazer parte de um grupo. Foi por isso, pelo impacto que estes anos tiveram na minha vida que um dia, ao passar numa livraria, comprei um livro de um autor que nunca tinha lido - Juan José Millás: o mundo é a rua da tua infância.

Ontem, no decorrer deste almoço algo nostálgico, dei por mim a lembrar-me de tudo: dos nomes das pessoas que viviam nas casas, do tom de voz de quem chamava netos para dentro, de nomes de cães, de marcas de automóveis, dos hábitos e das manias deste ou daquele vizinho, das fisionomias de proprietários e de empregadas. Não foi um exercício de memória, a evidência da minha enorme capacidade para fixar coisas (algumas delas bastante inúteis). Foi, isso sim, a constatação da importância daquele tempo na minha formação, a confirmação de um tempo de enorme felicidade pela liberdade e sentimento de pertença.

O tempo mostrou-me outros mundos, outros grupos, outros motivos de felicidade. Não obstante a existência desses outros mundos compostos por famílias, amigos, gente profissional - uma parte muito substantiva do meu mundo continua a ser a rua da minha infância. Neste caso S. Pedro do Estoril, também com esta minha amiga a quem me ligam 48 anos de amizade. É ali, mas igualmente em Borba, talvez mesmo nas casas imaginadas do Macuti e noutros locais, que me escondo, fumando um cigarro ilícito, beijando uma rapariga ou imaginando o beijo numa rapariga, criando vidas por existir e sorrindo com cheiros, ruídos, caligrafias, papéis de carta ou outras minudências. É ali, nestes sítios todos e noutros igualmente importantes que em tempo de ataque me defendo, pondo as carruagens em círculo.

JdB

19 julho 2017

Vai um gin do Peter’s ?

Talvez seja a proximidade das férias, já em pleno Verão, que traz o sabor fresco da maresia. Ou será só um pensamento português, que tem sempre o mar por horizonte. Revigorante e infinito. Os poetas foram os primeiros a chamar nosso ao mar, dando nacionalidade aos trilhos mais percorridos pelos antepassados de outras eras. Caminhos e mapas que para a maioria são terrestres, para os portugueses são sulcados nos oceanos.

Percebe-se que uma das vozes marinhas do nosso património literário – Sophia (1919-2004) – considerasse o mar como um milagre criado para a inspirar infinitamente:

«Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.»

Foi também uma presença maior nos seus contos, pois ali se guardavam os melhores segredos da infância que se aventurava até à praia, à descoberta de um mundo mais verdadeiro e íntimo, vedado aos olhares curtos e embaciados dos adultos. Associou-o, igualmente, à alma feminina, que se espelha nos olhos. E nunca se cansou de o ver colossal, para com ele engrandecer tudo o que descobria inteiro e magno. Assim o cantou em «O mar dos meus olhos»:

«Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma

E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes

Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma.»

Será só coincidência que as obras mais especiais de Amália quase sempre transbordem de mar, como o «BARCO NEGRO» a musicar um poema lindo de David Mourão-Ferreira?



Outro tanto podia dizer-se da «CANÇÃO DO MAR» (1)  ou d’ «O POVO  QUE LAVAS NO RIO» (mais fluvial) com letra e música de Pedro Homem de Mello a denunciar o sofrimento silenciado de muitos na época da censura assumida, ou do espantoso fado «GAIVOTA» com letra de Alexandre O’Neill(2)  e música de Alain Oulman (1965) a falar, como ninguém, das deambulações do coração português, figurado nas aves marítimas que povoam os céus da cidade à beira Tejo:



Na própria letra do «FADO PORTUGUÊS» – escrito para Amália por José Régio e com arranjo musical de A. Oulman – o mar é o espaço natural onde se cantam as penas e as alegrias. Nunca menos que um horizonte descomunal capaz de alcançar as nuvens:

«O Fado nasceu um dia, 
quando o vento mal bulia 
e o céu o mar prolongava, 
na amurada dum veleiro,
 no peito dum marinheiro 
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.

Ai, que lindeza tamanha,
meu chão , meu monte, meu vale,
de folhas, flores, frutas de oiro,
vê se vês terras de Espanha,
areias de Portugal,
olhar ceguinho de choro.

Na boca dum marinheiro
do frágil barco veleiro,
morrendo a canção magoada,
diz o pungir dos desejos
do lábio a queimar de beijos
que beija o ar, e mais nada.
que beija o ar, e mais nada.

Mãe, adeus. Adeus, Maria.
Guarda bem no teu sentido
que aqui te faço uma jura:
que ou te levo à sacristia,
ou foi Deus que foi servido
dar-me no mar sepultura.

Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava.»

Referindo-se sobretudo ao «BARCO NEGRO», é curioso ouvir de estrangeiros a impressão causada pelo fado, a ecoar na alma. Dito por um espanhol: «No hablo portugues, solo escucho, escucho y siento que el fado es la música para mirar atrás, para recordar, para mirar adentro de nuestra alma; para recordar el amor y el desamor, la felicidad y la tristeza, la compañía y la soledad.». Explicado por um brasileiro: «ao ouvir essa música, logo nos primeiros acordes, ela me deixou paralisado! Como se me falasse ao fundo da alma, e me pareceu tão familiar como se já a conhecesse.» Na comédia «Gaiola Dourada», realizada por um francês de ascendência portuguesa, há uma cena passada num bar minúsculo e típico da ruela empinada onde corre o Elevador de Sta.Catarina, cujo clímax é o fado entoado por Catarina Wallenstein. Conta o realizador que ao terminar a filmagem, de take único, dá com a equipa francesa comovida até às lágrimas. Surpreendido, ouviu-os explicar-lhe que tinham sido invadidos por aquela sonoridade nostálgica e ancestral. A letra cheia de ideal e incompreensível para eles, a contar que depois de um tempo de diáspora é hora de voltar a Portugal, tinha passado inteiramente pela incrível expressividade musical, cantada com enorme convicção. À fado! 

Fazendo jus à tirada refrescante de Nietzsche – «sem a música, a vida seria um erro», fica ainda um dueto de Julio Iglesias e Amália (1980) – «CANTO A GALICIA» – igualmente melancólico e impregnado de antiguidade, a evocar uma raiz civilizacional que deixou marcas indeléveis no pequeno Condado Portucalense, berço do país nascente, há quase mil anos. Ouve-se o mesmo eco que ficou a ressoar nos fados: 


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
__________________
(1)  Letra de Frederico de Brito e música de Ferrer Trindade, começou por ser cantada, em 1955, sob o título «Solidão».
(2) O génio de O’Neill imortalizado no fado «GAIVOTA»:

«Se uma gaivota viesse
Trazer-me o céu de Lisboa
No desenho que fizesse
Nesse céu onde o olhar
É uma asa que não voa
Esmorece e cai no mar

Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração

Se um português marinheiro
Dos sete mares andarilho
Fosse quem sabe o primeiro
A contar-me o que inventasse
Se um olhar de novo brilho
No meu olhar se enlaçasse

Que perfeito coração
No meu peito bateria
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde cabia
Perfeito o meu coração

Se ao dizer adeus à vida
As aves todas do céu
Me dessem a despedida
O teu olhar derradeiro
Esse olhar que era só teu
Amor que foste o primeiro

Que perfeito coração
Morreria no meu peito
Meu amor na tua mão
Nessa mão onde perfeito
Bateu o meu coração.»

18 julho 2017

Duas Últimas

Três notas iniciais sobre o tempo (chronos):

1) Aqui há alguns dias postei um texto assente numa frase dita por um personagem de um filme que, ao ser interrogado sobre como se resolveria um determinado problema sério, respondia sistematicamente: não sei, é um mistério. O mistério, no fundo, de confiarmos que as coisas se resolverão as coisas, mesmo que não saibamos quando nem como.

2) Este domingo que passou tive o grato prazer de assistir à minha missa dominical habitual celebrada pelo Pe. Miguel Vasconcelos, o Sr. Vasconcelos de que já aqui falei por duas vezes. Na sua homilia inspirada, segura, criativa, falou do tempo do Homem e do tempo de Deus, do imediatismo com que queremos que Deus se manifeste e nós, da ideia que temos de querer "gerir" o tempo divino para satisfazer a nossa vontade.

3) Ontem, no decurso de uma longa conversa telefónica, tive o gosto de resolver uma questão que se arrastava há algumas semanas e que prejudicava uma comunicação fluida e partilhada. Podia tê-la tido mais cedo? Sim, mas o tempo ainda não tinha chegado, só agora eu estava pronto a acolher a conversa. O tempo da escuta e do acolhimento são o tempo da escuta e do acolhimento, nem sempre são o tempo da fala. 

***

Deixo-vos com os Supertramp, num regresso nostálgico a um tempo de revolução, de luta, de empenhamento e de militância. Um tempo intenso para um jovem de 16 anos. Porque o disco é de 1974.

JdB


PS: como já aconteceu outras vezes, falhou-me a efeméride. Este estabelecimento celebrou no dia 16 de Julho 9 anos de existência. A todos os que por aqui passam ou passaram como visitantes, cronistas, comentaristas, fica o meu agradecimento.




17 julho 2017

Dos simbolismos


Os objectos acima, fotografados deficientemente a uma hora já cansada, não são mais do que um relógio e uma caneta. Independentemente da estética dos itens ou da qualidade das marcas, não são, aparentemente, mais do que dois objectos. No entanto, foi este relógio e esta caneta que eu escolhi para, na 6ª feira passada, assinar uma escritura que define o encerramento de um capítulo da minha vida. 

Sou um homem estranhamente dado aos simbolismos. Podia ter ido sem caneta que o notário me emprestaria uma; podia ter ido sem relógio, já que o que uso hoje em dia estava a reparar. Não obstante, achei que o acto que eu ia realizar, não tendo nenhum formalismo nem solenidade, carecia de algo que lhe desse um toque pessoal, para que não se tornasse apenas numa troca comercial no qual se cede um imóvel a troco de uma verba acordada. Quem escolheu este relógio que me foi oferecido e quem me ofereceu esta caneta podem estranhar o simbolismo, mas não estranham os objectos.

Não há aqui superstição de espécie alguma. Assinaria a escritura numa 6ª feira 13, debaixo de uma escada ou com um gato preto de volta. Há apenas uma desejo de conferir uma nota afectiva a um acto impessoal. Levei artigos que prezo, dados ou escolhidos por pessoas que, na sua diferença, me são próximas. Se o acto que fui realizar constituísse uma violência emocional, de princípios ou de educação, recusar-me-ia a usar uma caneta minha. A mão que simultaneamente segurava um relógio e uma caneta é uma mão comandada por uma mente e por um coração. 

Não sei o que isto significa. Provavelmente nada, a não ser uma bizarria. Mas, mesmo reconhecendo uma certa estranheza nesta minha quase obsessão pelo simbolismo das coisas, não conseguiria viver de outra forma, porque na minha cabeça tudo se resumiria a um acto formal, impessoal, comandado por um agente formal e impessoal para quem um casamento é um contrato, um divórcio um acto, uma venda uma troca comercial. Nada é assim tão simples: são obviamente actos, mas que envolvem emoções, mais do que artigos de Códigos Comerciais ou Civis. 

A este respeito, no outro dia almoçava com um amigo a quem lhe foi oferecida uma caneta de ouro, parece-me, que só cumpriu um único acto: celebrar o contrato que oficializava a passagem / venda para a câmara de Portalegre do espólio religioso de José Régio. O simbolismo desta caneta é fortíssimo - só serviu para um único acto, ao qual foi dada a solenidade merecida.

JdB 

16 julho 2017

15º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 13,1-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele dia,
Jesus saiu de casa e foi sentar-Se à beira-mar.
Reuniu-se à sua volta tão grande multidão
que teve de subir para um barco e sentar-Se,
enquanto a multidão ficava na margem.
Disse muitas coisas em parábolas, nestes termos:
“Saiu o semeador a semear.
Quando semeava,
caíram algumas sementes ao longo do caminho:
vieram as aves e comeram-nas.
Outras caíram em sítios pedregosos,
onde não havia muita terra,
e logo nasceram porque a terra era pouco profunda;
mas depois de nascer o sol, queimaram-se e secaram,
por não terem raiz.
Outras caíram entre espinhos
e os espinhos cresceram e afogaram-nas.
Outras caíram em boa terra e deram fruto:
umas, cem; outras, sessenta; outras, trinta por um.
Quem tem ouvidos, oiça”.

Os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
“Porque lhes falas em parábolas?”
Jesus respondeu-lhes:
“Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos Céus,
mas a eles não.
Pois àquele que tem dar-se-á e terá em abundância;
mas àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado.
É por isso que lhes falo em parábolas,
porque vêem sem ver e ouvem sem ouvir nem entender.
Neles se cumpre a profecia de Isaías que diz:
‘Ouvindo ouvireis, mas sem compreender;
olhando olhareis, mas não vereis.
Porque o coração deste povo tornou-se duro:
endureceram os seus ouvidos e fecharam os seus olhos,
para não acontecer
que, vendo com os olhos e ouvindo com os ouvidos
e compreendendo com o coração,
se convertam e Eu os cure’.
Quanto a vós, felizes os vossos olhos porque vêem
e os vossos ouvidos porque ouvem!
Em verdade vos digo: muitos profetas e justos
desejaram ver o que vós vedes e não viram
e ouvir o que vós ouvis e não ouviram.
Vós, portanto, escutai o que significa a parábola do semeador:
Quando um homem ouve a palavra do reino
e não a compreende,
vem o Maligno e arrebata o que foi semeado no seu coração.
Este é o que recebeu a semente ao longo do caminho.
Aquele que recebeu a semente em sítios pedregosos
é o que ouve a palavra e a acolhe de momento,
mas não tem raiz em si mesmo, porque é inconstante,
e, ao chegar a tribulação ou a perseguição por causa da palavra,
sucumbe logo.
Aquele que recebeu a semente entre espinhos
é o que ouve a palavra,
mas os cuidados deste mundo e a sedução da riqueza
sufocam a palavra, que assim não dá fruto.
E aquele que recebeu a palavra em boa terra
é o que ouve a palavra e a compreende.
Esse dá fruto,
produz ora cem, ora sessenta, ora trinta por um”.

15 julho 2017

Pensamentos Impensados

Representantes
Os deputados das últimas filas da Assembleia da República descobriram um filão. Não intervêm, limitam-se a estar presentes e a fazer o que o chefe lhes manda, isto é, levantam-se, sentam-se. Nos intervalos vêm a internet. Só estão preocupados com o estado da ração, que é muito boa.

Crendices
As superstições já estão fora do prazo; crie as sua próprias superstições.

Dentes valentes
Queres ir beber um copo?
Um copo não se bebe, quando muito mastiga-se.

Maleitas
A coxa chama-se coxa porque pode fazer com que uma pessoa fique coxa.

Massacragens
Precisava de uma massagem na região lombar e o massagista virou-me as costas.

Pontos de vista
Penso que Jerónomo de Sousa é um homem às direitas.

Golpes sem bisturi
Os médicos que passam atestados falsos incorrem no crime de golpe de atestado.

Boatos
Informam-me de uma boa notícia que passo a excitar: a gasolina vai descer 50 centimos. Entretanto informam-me que não é verdade: fim de excitação.

SdB (I)

14 julho 2017

Das casas e dos espaços


A vida é uma casa com duas portas. Há uns que entram e que têm medo de abrir a segunda porta. Ficam girando, dançando com o tempo, demorando-se na casa. Outros se decidem abrir, por vontade de sua mão, a porta traseira. Foi o que eu fiz, naquele momento. A minha mão volteou o fecho do armário, a minha vida rodeou o abismo.

(Mia Couto)

***

Ouvi esta frase pela primeira vez há pouco menos de nove anos. Decidi reproduzi-la aqui porque a fotografia, como o pensamento, fala de portas, de vida - e por maioria de razão de chaves. Como disse ontem a um grupo de gente muito próxima, rodei uma chave semelhante, numa fechadura semelhante, mas nesta porta exacta, há trinta e seis anos. Fi-lo, nesse dia já longínquo, no sentido dextrorsum. Ontem fi-lo no sentido inverso, seguramente pela última vez. De alguma forma estas fechaduras vão contra a lógica do destino: ao fechar esta porta para sempre devia tê-lo feito ao sabor dos ponteiros do relógio, para acompanhar o tempo que não pára, que é um rio sem retrocesso. 

Para trás ficam janelas, sacos vazios, armários de portas escancaradas, prateleiras vergadas pelo peso dos livros e paredes atacadas pelo salitre. Fica o eco, se eu quisesse ter gritado; fica o espaço vazio, se eu quisesse ter dançado. Fica a poeira do tempo, das casas fechadas, das preguiças domésticas e dos móveis pesados, da acumulação de inutilidades que já foram utilidades ou que nunca o foram. Mas fica uma porta - aquela que eu fechei ontem pela última vez, por onde entraram pessoas que estão e pessoas que foram, pessoas que entraram deitadas e outras que saíram deitadas, como se esta semelhança dentro da diferença geracional fosse uma metáfora para a vida; entraram pessoas que marcaram a diferença e pessoas cuja existência não ficou gravada. Não ficou nada de mais, porque aquela casa era uma casa igual a tantas outras, onde a História tem a relevância que cada um lhe quer dar.

Fechar uma casa pode ser, como já partilhei, uma tarefa que se cumpre com eficiência ou um acto de encerramento simbólico. Encerra-se um espaço que servirá outros propósitos, mas também se encerra um tempo que foi. Um tempo de tudo, como o são os tempos saudáveis: tempo de riso, de discussão, de luta, de conforto, de debate, de disrupção, de reconciliação. Um tempo de construção, acima de tudo. Talvez o cansaço do corpo pelo cumprimento de uma tarefa esconda o cansaço da alma por uma porta que se fecha para outra realidade. Ontem, ao fechar trinta e seis anos atrás de mim, não sei o que senti. Talvez apenas cansaço físico, porque as minhas memórias - aquelas que me confortam ou entristecem - não residem em casas, mas em espaços. E entre uma casa e um espaço o conjunto intersecção pode existir, mas não ser determinante. Porque este é maior do que aquela.

JdB         

13 julho 2017

"Não sei, é um mistério..."

Vejo pela enésima vez  - melhor, vejo cenas esparsas - do filme A Paixão de Shakespeare. Para além da dimensão estética que me sugere a actriz principal, há uma frase luminosa que é dita por duas ou três vezes durante o filme, e que eu já reproduzi aqui. Quando confrontado com alguns problemas aparentemente irresolúveis e graves, um dos persongens responde que tudo se resolverá. Perguntam-lhe angustiadamente: Mas como? A resposta chega aparentemente vaga, mas inundada de uma esperança intuída: não sei, é um mistério.

Parte da nossa vida são problemas aparentemente irresolúveis e graves. Para alguns não vemos solução, para outros a alternativa é entre mau e pior; para alguns não vemos esperança, porque a estrada em frente aparenta ser um beco sem saída já ao virar da esquina. Muito acaba por se resolver - não sei se é Deus, se é o destino, o fado ou as probabilidades. O que sei é que, mesmo para um funcionário cansado, há sempre a hipóteses desta resposta face ao mas como se resolverá tudo? com que enfrentamos a angústia: não sei, é um mistério. 

JdB

***


Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos 
dispersou-me os amigos 
tenho o coração confundido e a rua é estreita 

estreita em cada passo 
as casas engolem-nos 
sumimo-nos, 
estou num quarto só num quarto só 
com os sonhos trocados 
com toda a vida às avessas a arder num quarto só 

Sou um funcionário apagado 
um funcionário triste 
a minha alma não acompanha a minha mão 
Débito e Crédito Débito e Crédito 
a minha alma não dança com os números tento escondê-la envergonhado 
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente 
e debitou-me na minha conta de empregado 
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar 
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? 
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço? 

Soletro velhas palavras generosas 
Flor rapariga amigo menino 
irmão beijo namorada 
mãe estrela música 

São as palavras cruzadas do meu sonho 
palavras soterradas na prisão da minha vida 
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida 
num quarto só 

António Ramos Rosa, in 'O Grito Claro'

12 julho 2017

Duas últimas

Nestes últimos dias estive com parte da família a banhos. No Sul do País, pois claro, que o tempo e a imaginação não deram para mais. E já foi bem bom...

Convivendo com um tempo algo incerto, uma água gélida, uma praia com pouca areia - lá estavam, ameaçadoras, uma draga e uma giratória (!), para tentarem repor o que o mar foi levando e esburacando ao longo dos meses invernosos -, acompanhando gaivotas atrevidas, um hotel de excepção e magníficas iguarias: realço o peixe, as saladas ou a fruta.

O silêncio, tão bem tratado no blogue pelo dono do estabelecimento, também fez parte do cardápio destas mini férias. Feito de leituras ou de demoradas contemplações do horizonte, convidando à meditação e à afinação do auto controlo, que o espaço a tal se prestava.

Aliás, a minha mulher está a ler um livro do cardeal guineense (da Guiné Conacri) Robert Sarah, homem de confiança do Papa Francisco, tanto que o nomeou em 2014 para funções relevantes dentro da Igreja. O título do livro é " A força do silêncio, contra a ditadura do barulho", e a mencionada leitora aconselha-o vivamente.

Deixo-vos com uma musiquinha tranquila que quadra bem com o que fica dito.

Espero que concordem.

fq

11 julho 2017

Do silêncio (post repescado com actualizações)

Fui buscar ao site Essejota [na altura site da Companhia de Jesus em Portugal] este pensamento, publicado ontem, 1 de Agosto [de 2008]. O silêncio é um tema que me encanta, sobre o qual gosto de ler e de pensar. A minha vida dos últimos anos foi atravessada, aqui e ali, por momentos de grande parcimónia na utilização das palavras - ditas ou ouvidas. Foram tempos reconfortantes, de olhar para dentro e para fora, de escutar vozes que só nós ouvimos, de proferir frases que mais ninguém ouve; foram alturas esmagadoras, em que o que não se dizia tinha um peso infinitamente doloroso, constrangedor, revelador de um incómodo que era filho do diálogo que já não existia. O silêncio é, de facto, uma ferramenta poderosíssima, capaz do melhor e do pior. Assim eu soubesse usá-la para os fins mais elevados.

O silêncio é um valor inestimável. Sem silêncio não se ouve e ainda menos se escuta. O homem que não se escuta a si próprio, desconhece-se. O que não tem espaço e tempo para meditar, para ouvir o significado dos sons e das palavras, anda neste mundo a reboque, sem leme. Só no silêncio é possível descobrir outros sinais de comunicação. Aproveitemos este tempo de férias para fazer silêncio. O silêncio é o segredo de uma melhor comunicação.

(Vasco P. Magalhães, sj)

***

Há coincidências, mesmo que esta não seja significativa. Este sábado vinha de Coimbra com um amigo e colega de direcção da Acreditar. Falámos de temas diversos como as minhas aulas, o meu doutoramento, a pintura dele e o livro que ele está a terminar. Falei-lhe de silêncio, um tema que me interessa desde há muito (e a citação de um post com nove anos é bem sintomático...) e que quero abordar na tese. Ontem ao pesquisar, já a horas tardias, o que postar preguiçosamente hoje, deparei-me com o referido post. Ontem, ainda, li um texto muito interessante na revista Brotéria dedicada aos 100 anos das aparições de Fátima, intitulado: "da Religião à Oração: uma reflexão sobre a Fé e o Lugar de Fátima" [João J. Vila-Chã, in Brotéria, Maio / Junho 2017]. E cito:

No seu silêncio, o homem deixa de olhar para as coisas, para os nomes e problemas do mundo a partir da perspetiva do conceito ou da conceptualização apenas. Nesta forma de oração, portanto, deixa-se cair por terra o ideal de posse ou do ser possuído. São os próprios instintos e as suas moções que se tornam silenciosos. A pessoa que reza precisa de se tornar em sua inteireza silêncio e serenidade. Como diria o grande místico que foi o Mestre Eckhart, trata-se mesmo de aprender a ser igual ao Nada.

JdB


10 julho 2017

Textos dos dias que correm

Perdoar e Esquecer

Perdoar e esquecer equivale a jogar pela janela experiências adquiridas com muito custo. Se uma pessoa com quem temos ligação ou convívio nos faz algo de desagradável ou irritante, temos apenas de nos perguntar se ela nos é ou não valiosa o suficiente para aceitarmos que repita segunda vez e com frequência semelhante tratamento, e até de maneira mais grave. Em caso afirmativo, não há muito a dizer, porque falar ajuda pouco. Temos, portanto, de deixar passar essa ofensa, com ou sem reprimenda; todavia, devemos saber que agindo assim estaremos a expor-nos à sua repetição. Em caso negativo, temos de romper de modo imediato e definitivo com o valioso amigo ou, se for um servente, dispensá-lo. Pois, quando a situação se repetir, será inevitável que ele faça exactamente a mesma coisa, ou algo inteiramente análogo, apesar de, nesse momento, nos assegurar o contrário de modo profundo e sincero. Pode-se esquecer tudo, tudo, menos a si mesmo, menos o próprio ser, pois o carácter é absolutamente incorrigível e todas as acções humanas brotam de um princípio íntimo, em virtude do qual, o homem, em circunstâncias iguais, tem sempre de fazer o mesmo, e não o que é diferente. (...) Por conseguinte, reconciliarmo-nos com o amigo com quem rompemos relações é uma fraqueza pela qual se expiará quando, na primeira oportunidade, ele fizer exactamente a mesma coisa que produziu a ruptura, até com mais ousadia, munido da consciência secreta da sua imprescindibilidade. 

Arthur Schopenhauer, in 'Aforismos para a Sabedoria de Vida'

***

O Perdão e a Promessa

Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, a nossa capacidade de agir ficaria por assim dizer limitada a um único acto do qual jamais nos recuperaríamos; seríamos para sempre as vítimas das suas consequências, à semelhança do aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço. Se não nos obrigássemos a cumprir as nossas promessas não seríamos capazes de conservar a nossa identidade; estaríamos condenados a errar desamparados e desnorteados nas trevas do coração de cada homem, enredados nas suas contradições e equívocos - trevas que só a luz derramada na esfera pública pela presença de outros que confirmam a identidade entre o que promete e o que cumpre poderia dissipar. Ambas as faculdades, portanto, dependem da pluralidade; na solidão e no isolamento, o perdão e a promessa não chegam a ter realidade: são no máximo um papel que a pessoa encena para si mesma. 

Hannah Arendt, in 'A Condição Humana'

09 julho 2017

14º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 11,25-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo, Jesus exclamou:
“Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra,
porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes
e as revelaste aos pequeninos.
Tudo me foi dado por meu Pai.
Sim, Pai, Eu Te bendigo,
porque assim foi do teu agrado.
Ninguém conhece o Filho senão o Pai
e ninguém conhece o Pai senão o Filho
e aquele a quem o Filho o quiser revelar.
Vinde a Mim,
todos os que andais cansados e oprimidos,
e Eu vos aliviarei.
Tomai sobre vós o meu jugo
e aprendei de Mim,
que sou manso e humilde de coração,
e encontrareis descanso para as vossas almas.
Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve”.

08 julho 2017

Pensamentos Impensados

Nem sempre são brancas
As bebidas brancas não têm prazo de validade, nem precisam; são para consumo imediato.

Sem bússola
- Tive uma grande constipação mas curei-a.
- Do Norte ou do Sul?
- Não sejas provocador..

Estatísticas
A taxa de imortalidade mantém-se estável

Medias
Os midia falam em redes com buracos em Tancos; gostava de ver redes sem buracos.

Pouca disposição
Eva furtou-se a determinadas actividades alegando dores de cabeça; Adão só disse: muita parra e pouca Eva.

Culinárias
Quando o governo diz que vai apurar refere-se a algum guisado?

Dislexia política
A Direita é muito conversadora.

Desastres sobrenaturais
Quando Camões disse esta é a ditosa Pátria minha amada ainda nã havia SIRESP, incêndios, roubo de armas, oficiais presos e outras patifarias. Portugal passou a ser o país da casa arrombada...

SdB (I)

07 julho 2017

Duas Últimas

Já aqui postei Júlio Resende; já aqui postei Silvia Perez Cruz; já aqui postei Cucurrucucú Paloma. Acontece que nunca postei os três em simultâneo, pelo que há uma estreia neste estabelecimento. 

O intróito ao post não tem o mais leve interesse, confesso. Acontece que vim tarde de um jantar onde tudo me fará mal à gota de que sofro - não se auguram bons dias pela frente. Comi e bebi em boa companhia, num dia também especial. Cansado, sonolento, estou sem ideias, pelo que decidi encher chouriços. 

Enfim, deixo-vos com Júlio Resende e Silvia Cruz em Cucurrucucú Paloma, uma música de que gosto muito, e que também já aqui postei, cantada pelo Caetano Veloso. Esta versão requer atenção e paciência. Tem de se fugir ao imediato que parece ser menos estético do que a versão original - ou as versões mais ou menos clássicas que foram fazendo desta linda música. Talvez tenhamos de ir mais fundo, à técnica, à originalidade, ao labor, e fugir ao sensorial. Digo eu, que estou cansado e etc.

Fiquem bem.

JdB


06 julho 2017

Carta a um anjo

Nasceste hoje, mas há 23 anos.

O que se diz ainda vinte e três anos depois, mas, acima de tudo, dezasseis anos depois do ano de todos os anos? Qualquer que seja a criatividade do texto, a sabedoria das ideias ou a escolha das palavras, tudo fica aquém do sentimento, porque o verdadeiramente importante não é dizível pelas palavras que usamos todos os dias. Cada um sente o que sente e a única certeza é que nenhum de nós, aqueles que te seguraram uma mão à chegada e à partida, os que sorriram para ti e choraram por ti, os que te beijaram, amaram, acompanharam nas brincadeiras e nas quedas e nos risos e nos choros nenhum de nós, repito, é dono deste dia. As palavras são escolhidas, as lembranças são fruto de processos que não dominamos, aos quais somos alheios, vítimas, por vezes, porque dolorosos, beneficiários, noutras vezes, porque alegres. Cada um lembra um pormenor que mais ninguém lembra, um sorriso que não foi visto por mais ninguém, um aceno de mão que ninguém descortinou, porque tinha o sol por trás a iluminar o caminho para o Céu.

A data não nos pertence, não somos donos de nada a não ser daquilo que deixamos partir. A data é um ponto no infinito para nos lembrar de parar, de pensar no que é importante e tentar fazer o Bem, porque não foi para mais nada que vieste. Não vieste para separar, mas para unir; não vieste para a tristeza, mas para a esperança; não vieste para o choro ou para o riso, mas para os olhos que vêm mais longe, sentem mais longe, agarram mais longe; não vieste para a despedida, mas para o aceno de quem se encontra pela primeira vez. Vieste para o Amor das ideias afastadas, das pessoas frágeis, da desesperança e da fadiga com que somos acometidos porque estamos desatentos, focados no lado errado da vida.

Não fazemos nada com as palavras, fazemos tudo com o coração. Não fazemos nada com as actividades do dia, porque nasceste hoje mas todos os dias, partiste hoje mas todos os dias. É dia do pó do Amor, das coisas importantes que permanecem, das pessoas que olham no mesmo sentido mesmo não estando no mesmo sentido, tendo olhares diferentes, próprios, genuínos, esperançados ou desiludidos. Ensinaste-nos tudo, só nos resta ir aprendendo com a tua ajuda e do Deus que não é senão amor.

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu


J (em nome de todos os que te lembram)    


05 julho 2017

Vai um gin do Peter’s?

Como o tempo voa, segue já um “gin” de aperitivo à exposição que estará no MNNA até 10 de Setembro, com cerca de 70 obras vindas de Itália. Quase meia centena são oriundas da Pinacoteca Vaticana, inspirando o título da exposição temporária. Sem exagero, é cognominada «TESOUROS DOS MUSEUS DO VATICANO»(1) .

Para Lisboa, viajou a réplica da Pietá, cujo original nunca sai da Basílica de S.Pedro.  Por isso, entre nós está o equivalente à imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima.    


Depois de dois anos de preparação, aproveitou-se o centenário das Aparições de 1917 para a expor em Lisboa, tendo por temática principal a figura de Maria. No painel identificativo da mostra, o rosto da Mãe de Jesus é um pormenor da tela de Vitale da Bolonha:

Detalhe da pintura deslumbrante de Vitale da Bolonha.

«Virgem dos Flagelantes», de Vitale degli Equi, dito Vitale da Bologna (Bolonha, 1309-1359).  Datada de c.1350, têmpera e ouro sobre gesso e cola sobre madeira formada por duas tábuas de choupo, com moldura em pastilha dourada

A colecção vaticana cedida, temporariamente, a Portugal inclui ainda tapeçarias, exibidas na secção «Sumptuosas Tapeçarias Papais», esculturas e códices iluminados, pertencentes ao acervo da Biblioteca Apostólica Vaticana.

De Itália vêm igualmente obras da Galleria Borghese (de Venusti e de Sassoferrato) e da Galleria Corsini, com Gentileschi e o magnífico Van Dyck – o artista católico híper discreto, que singrou no universo artístico flamengo. Para além de se impor pelo talento, diferenciou-se por dar primazia ao ser humano, preferindo gente comum, que só costumava ser figurante dos episódios retratados. 


O núcleo final da exposição inclui obras de colecções portuguesas, públicas e privadas, do Museu de Évora, da Fundação Casa de Bragança e do próprio MNAA. São 15 peças, maioritariamente de artistas italianos, que se enquadram na temática original da mostra. 

Da Antiguidade até ao século XX (com Chagall), a exposição percorre a iconografia mariana ao longo de quase dois milénios, expondo algumas peças que nunca tinham sido mostradas em público. 

«O Crucifixo (Entre Deus e o Diabo)» na interpretação fortíssima do atormentado Marc Chagall (Vitebsk, 1887-1985,St.Paul de Vence), nascido numa aldeia da Rússia profunda. Foi proscrito pelos nazis e pintou este Crucificado em plena II Guerra (1943), colocando a Mãe da Humanidade na primeira linha de combate contra o mal. De um lado, um ambiente glaciar em azuis e cinzas de aço; do outro, tonalidades flamejantes, também inusitadas para o padrão humano, entalado na luta renhida entre forças sobre-humanas. Tela em guache sobre papel. 

As mais antigas correspondem a altos-relevos do séc. III – fragmentos de sarcófagos infantis. Ambos representam cenas do Presépio, onde a figura de Maria se destaca ao lado do Menino. Curiosamente, antecipam em dois séculos o culto oficial da Igreja à Mãe do Salvador, instituído no século V. 

Nas telas no MNAA sobressaem o grupo de Primitivos italianos – Fra Angelico, Taddeo di Bartolo, Sano di Pietro e os grandes nomes do Renascimento e do Barroco, como Rafael, Pinturichio, Salviati, Pietro da Cortona, Barocci. De facto, em Portugal, aterraram obras míticas como: a «Virgem do Parapeito» de Pinturicchio, a «Natividade» de Ghirlandaio, ou os três painéis do Retábulo Oddi, pintados por Rafael sob encomenda de Maddalena degli Oddi, em 1502, para a Igreja de San Francesco al Prato, em Perugia.

«Virgem com o Menino entre São Domingos e Santa Catarina de Alexandria», c. 1435. De Fra Angelico (Vicchio di Mugello, c. 1395-1455, Roma). Têmpera e ouro sobre madeira.

«Virgem com o Menino», conhecida por 'Virgem do parapeito', 1496-98. Bernardino di Betto, dito Il Pinturicchio (Perugia, 1454-1513, Siena). Fresco destacado e transposto para painel (dito “cadorite”), com moldura dourada.

«Apresentação no Templo», predela do retábulo dos Oddi, 1503. De Raffaello Sanzio (Urbino, 1483-1520, Roma). Óleo sobre madeira de choupo

«Adoração dos Magos», c. 1580 1590 de Jacopo Tintoretto (Veneza, c. 1518-1594) e Domenico Tintoretto (Veneza, 1560-1635). Óleo sobre tela


Mesmo sem grande resolução, segue mais um par de imagens do manancial fabuloso que temos ao pé da porta. Bom demais: 

Tapeçaria flamenga a representar o Presépio.

Alto-relevo com a Sagrada Família e um anjo protector do Bebé.


É uma sorte a arte italiana vir ter connosco e passar uma boa temporada junto ao Tejo, para a podermos saborear no nosso ambiente e trazê-la para dentro do nosso dia-a-dia. Pelo menos, até 10 de Setembro, a arte festeja-se em Lisboa. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
__________________
(1) http://museudearteantiga.pt/exposicoes/madonna.  Horário: de Terça a Domingo, entre as 10h às 18h00.

04 julho 2017

Poemas dos dias que correm

Quotidiano (Reflexão)

Por exemplo, as coisas que faltam neste lugar:
uma enxada para que as mãos não toquem na terra,
um ninho de pardais no canto da relha,
para que um ruído de asas se possa abrigar,
um pedaço de verde no monte que ainda vejo,
por detrás dos prédios que invadem tudo.

Mas se estas coisas estivessem aqui,
também faria falta um copo de água para ver,
através do vidro, um horizonte desfocado;
e ainda os restos de madeira com que,
no inverno, é costume atiçar o fogo
e a imaginação que ele consome.

Como se tudo estivesse no lugar,
pronto para ser usado na data prevista,
sento-me à janela, e fixo a única coisa
que não se move:
o gato, hipnotizado por um olhar
que só ele pressente.

Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas"

***

Um Amor

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão, 
puxaste-me para os teus olhos 
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua, 
ainda apanhámos o crepúsculo. 
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar 
diferente inundava a cidade. Sentei-me 
nos degraus do cais, em silêncio. 
Lembro-me do som dos teus passos, 
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas, 
e a tua figura luminosa atravessando a praça 
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é, 
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali, 
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha 
essa doente sensação que 
me deixaste como amada 
recordação. 

Nuno Júdice, in "A Partilha dos Mitos" 

***

A Vida

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua 
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam 
quando não se espera, o atraso na preocupação 
dos teus olhos, e as nuvens que caíram 
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações 
a abrir-se para dentro e para fora 
dos sentidos que nada têm a ver com círculos, 
quadrados, rectângulos, nas linhas 
rectas e paralelas que se cruzam com as 
linhas da mão; 

a vida que traz consigo as emoções e os acasos, 
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram 
e dos encontros que sempre se soube que 
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com 
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo 
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada, 
sob a luz indecisa que apenas mostra 
as paredes nuas, de manchas húmidas 
no gesso da memória; 

a vida feita dos seus 
corpos obscuros e das suas palavras 
próximas. 

Nuno Júdice, in "Teoria Geral do Sentimento" 

03 julho 2017

Da ordenação do Miguel Vasconcelos

O Miguel Vasconcelos, sobre quem escrevi no passado dia 8 de Dezembro (fica aqui o link) ordenou-se padre ontem. Para quem já o conhecia continuará a ser o Miguel; para mim continuará a ser o Sr. Vasconcelos. Para outros - e tudo depende para onde irá servir - será o Padre Miguel. Ontem foi o primeiro dia do resto da sua vida, embora esta caminhada tenha começado há muito tempo. Talvez tenha começado no exacto dia em que ele nasceu e Deus, atento a todos, tenha derramado sobre ele um olhar perscrutador e especial.

Amável e educado como sempre, mandou-me um convite impresso com uma nota manuscrita que ele não se importará que eu repita, porque revela o que lhe vai na alma, que será um misto de ansiedade, encantamento, interrogação, vontade e fé imensa: peço que reze por mim, a ver se eu atrapalho pouco


Não sei de quem é o desenho, uma Última Ceia onde Jesus Cristo se destaca de todos os outros pela cor branca com que foi representado. Parece-me que pode percorrer-se o contorno de todos o apóstolos - e também de Cristo - sem nunca tirar o dedo do cartão, como se houvesse uma corrente ininterrupta e clara quanto a Quem ordena quem, e quem ordena outro quem, e esse quem que ordena outro quem - até chegar ao Miguel, que no meu léxico é o Sr. Vasconcelos.  Como se houvesse uma corrente ininterrupta de amor que não pode nem deve desfazer-se, porque é aquilo que nos liga à eternidade e ao que é importante nesta vida. 

Há pouco mais de uma semana estive num casamento católico; na semana passada visitei várias igrejas em França, na zona onde estive hospedado - em todas elas me sentei e em todas elas pensei nos que me estão próximos, aqui ou no Céu; ontem ordenou-se o Miguel. Talvez só perceptível para mim, há um contínuo em tudo isto e que define o que penso e que já qui referi - é a esta Igreja que o Miguel quis entregar o seu labor e a sua vontade que eu quero pertencer. É aqui que me (re)encontro com o que é essencial na minha vida, mesmo que não ponha nada em prática, porque há fraquezas que não se curam.

O Miguel celebra a sua missa nova na Igreja da Boa Nova, no Estoril, no próximo dia 8 de Julho pelas 17 horas. Infelizmente, nesse preciso dia estarei em Coimbra numa reunião da Acreditar, falando daquilo que nos é importante - as crianças e jovens com cancro e os seus problemas. Tenho muita pena de não estar presente e de lhe dar mais um abraço, de entre os muitos que ele receberá naquele dia tão especial. Onde estiver pensarei nele, rezarei por ele, para que ele reze também por mim e pelas crianças e jovens que nos ocuparam o dia. 

Conheci o Sr. Vasconcelos de guitarra na mão, com o Guerra e Paz nas mesmas mãos. Quando o vir de novo terá, naquelas mãos que seguram o que é prosaico e o que é misterioso, um missal, um cálice, uma hóstia, uma vida inteira pela frente, um desejo de santidade, a memória de todos aqueles, da família aos amigos, que lhe foram calcetando a estrada que ele percorreu até ontem, quando se ordenou.

Através deste estabelecimento dei um abraço ao Miguel Vasconcelos diácono. Hoje dou um abraço ao Miguel Vasconcelos padre. O gosto é o mesmo, o desejo de que tudo lhe corra bem na vida é o mesmo. E porque as tradições são para se manter, e porque este texto é para ele (e sei que haverá uma alma caridosa que lhe reencaminhe o texto) fica a assinatura que usamos nas poucas comunicações entre ambos.

Não se preocupe, que não atrapalhada nada nem ninguém - muito pelo contrário.

Até breve, Padre Miguel, que para mim será sempre Sr. Vasconcelos.

Sr. B...

02 julho 2017

13º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 10,37-42

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo, disse Jesus aos seus apóstolos:
“Quem ama o pai ou a mãe mais do que a Mim,
não é digno de Mim;
e quem ama o filho ou a filha mais do que a Mim,
não é digno de Mim.
Quem não toma a sua cruz para Me seguir,
não é digno de Mim.
Quem encontrar a sua vida há-de perdê-la;
e quem perder a sua vida por minha causa, há-de encontrá-la.
Quem vos recebe, a Mim recebe;
e quem Me recebe, recebe Aquele que Me enviou.
Quem recebe um profeta por ele ser profeta,
receberá a recompensa de profeta;
e quem recebe um justo por ele ser justo,
receberá a recompensa de justo.
E se alguém der de beber,
nem que seja um copo de água fresca,
a um destes pequeninos, por ele ser meu discípulo,
em verdade vos digo: não perderá a sua recompensa”.

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