31 janeiro 2020

Silêncio

Convento da Encarnação (Lisboa) um destes dias, por via de um telemóvel

Ouvi-los a Todos, no Silêncio

Detesto a acção. A acção mete-me medo. De dia podo as minhas árvores, à noite sonho. Sinto Deus - toco-o. Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me - não o sei explicar. Terra, mortos, uma poeira de mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta e que tanta força tem...
Como em ti, há em mim várias camadas de mortos não sei até que profundidade. Às vezes convoco-os, outras são eles, com a voz tão sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna: só num silêncio mais profundo ainda, conto ouvi-los a todos.

Raul Brandão, in 'Húmus'

***

O Valor do Silêncio

Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. Eu estou precisando desse sonho. Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.

Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1968)'

30 janeiro 2020

Texto e música dos dias que correm

“Bridge over troubled water”: 50 anos de um hino à amizade

A 26 de janeiro de 1970 saia “Bridge over troubled water”, de Paul Simon e Art Garfunkel, um dos álbuns de maior sucesso na história da música ligeira.

Todo o álbum é muito belo, como se pode confirmar, por exemplo, com “The boxer” ou “The only living boy in New York”, mas hoje detemo-nos na canção de abertura, que dá o título ao disco, canção que, nestes 50 anos, foi interpretada por muitos, de Elvis Presley a Aretha Franklyn (ambos insistindo na sonoridade “gospel” já presente na versão original).

“Bridge over troubled water é um hino à amizade, um tema que Simon e Garfunkel tinham já narrado, partindo da sua experiência biográfica, em “Bookends”, com trechos explícitos como “Old friends”, mas com esta composição há um salto qualitativo.

Trata-se, sem dúvida, de uma das mais belas canções dedicadas à amizade, que C.S.Lewis define no ensaio “Os 4 amores” «não em sentido pejorativo o menos natural dos afetos naturais, o menos instintivo, orgânico, biológico, gregário e indispensável. (…) Única entre todos os afetos, ela parece elevar o homem ao nível dos deuses, ou dos anjos».

Há um “anjo” entre as linhas do texto, e não é tanto a misteriosa “silver girl” com que se abre a terceira estrofe, mas é a amizade que liga os dois e os mantém em contacto precisamente como uma ponte.

Alguma coisa de sólido que sobressai sobre as «águas agitadas», porque a vida é inquietude, e esta agitação pode ser mortal se não se está em companhia de alguém para enfrentar o momento «when darkness comes».

É esta a imagem poderosa intuída pelos autores: o amigo é uma ponte, e é esplêndido o verbo utilizado, «I will lay me down”: o amigo estende-se, e assim lança uma ponte entre ele e o outro, e por isso conseguirá intervir «quando as lágrimas estiverem nos teus olhos, enxugá-las-ei todas» (clara citação de Apocalipse 21,4: Ele [Deus] enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram»).

É belo voltar a escutar, com gratidão, esta canção que recorda as coisas elementares que constituem a vida humana, num momento como o atual, em que de amigos, isto é, de “pontífices”, há urgente necessidade.

Andrea Monda
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 28.01.2020

29 janeiro 2020

Vai um gin do Peter’s ?

EM ARTE MODERNA, A NATUREZA ESTARÁ MUITO À FRENTE

Um grupo de aventureiros, liderado pelo fotógrafo russo Mikhail Mishainik, resolveu explorar os túneis subterrâneos de uma mina de sal desactivada e situada no subsolo do terceiro maior polo industrial da Rússia – Ecaterimburgo (ou Yekaterimburgo).

Nessa cidade importante da Eurásia, o grupo expedicionário ficou siderado com a beleza dos veios minerais multicolores que se entrelaçam ao longo dos canais perfurados nas profundezas do planeta, decorando-os sumptuosamente desde o chão até ao tecto. Ao festival de cor juntam-se padrões simétricos de baixos-relevos, num movimento bem sincronizado com o cromatismo rico daqueles subsolos artísticos. Felizmente, a aventura foi bem documentada, desvelando o virtuosismo da natureza em arte plástica. De outro modo, a profusão de obras-primas continuaria desconhecida:


Como se a azáfama pictórica fosse insuficiente, a natureza esmerou-se também em proezas escultóricas. 


A paisagem em redor das minas já tem uma marca surreal. 


A abundância de carnalite de diferentes tons produziu tramas de efeito visual artístico e vanguardista, percebendo-se o atributo psicadélico com que foi cunhada a gruta decorada por artimanhas naturais. Como se a natureza tivesse tido aulas com Rothko, Kandinsky, George Braque, Delaunay, Arpad Szènes… e seminários com Amadeo de Souza-Cardoso, Picasso, Mondrian, Almada, Escher, Gerhard Richter. Porém, a lista de mestres teria de se multiplicar, face à transfiguração de velhos trilhos mineiros num museu de arte contemporânea, que se estende por um intrincado labirinto de quilómetros. Pena ser inacessível… 





O fotógrafo explorador não omite os perigos que a expedição envolveu, desde logo, de envenenamento pela presença de gases tóxicos. Mas encara-os como factor extra de adrenalina. Aquela viagem ao centro da terra, à Júlio Verne, prolongou-se por 20 horas e exigiu um labor minucioso, quer nos preparativos, quer na montagem in loco de inúmeras pontes e passagens para o grupo avançar pelos túneis com alguma segurança. As imagens obtidas coroaram de êxito o imenso esforço, trazendo à luz do dia uma arte moderna onde nenhuma mão humana interveio, se não para a fotografar.   

O fotógrafo líder da expedição à direita. 
Tanta beleza subterrânea confirma a actualidade daquele dizer muito antigo e verdadeiro para lembrar o esplendor dos lírios do campo, sumamente frágeis, a nascer ao sabor de ventos e abelhas e de longevidade curtíssima, mas nem por isso menos perfeitos. Misterioso mundo habitado por uma beleza festiva, que não se importa de ser fugaz, nem de permanecer oculta em lugares intocados, mas nunca desiste de ser pródiga em feitos lindos, muitos (talvez a maioria) dos quais poucos chegam a conhecer. Shakespeare, pela boca de Hamlet, profere (mais) uma sábia reflexão sobre essa beleza maior, inalcançável e até incompreensível para os critérios humanos, mas que não deixa de estar presente, aqui e agora, como o atestam, num certo sentido, as cavernas quase intransitáveis de Ecaterimburgo: «Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia.» [Acto I, Cena V]. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

28 janeiro 2020

Textos dos dias que correm *

Centrar

Venho falar-vos de como tento combater a toxicidade na minha vida. Para ser justa, devo começar por dizer que sou imune ao apelo das redes sociais. Estou, por isso, poupada a uma das maiores armadilhas do nosso tempo. Fui das últimas, entre família e amigos da minha geração, a comprar um telemóvel, continuei a não gostar de falar ao telefone e a minha incompetência tecnológica torna tão penosa qualquer interação com máquinas que, passados todos estes anos, tenho apenas uma página profissional no Facebook, que me foi criada na RTP, e que passo meses sem frequentar. De vez em quando, recebo uma mensagem automática a dizer que não sei quantos “milhares de pessoas” sentem a minha falta, coisa que, francamente, nunca me convenceu.

Ou seja, o meu testemunho nesta matéria não será útil a ninguém. A minha imunidade à febre das redes não tem qualquer mérito: é natural, endémica.

Mas há outros buracos negros onde estou sempre prestes a perder-me. Por exemplo, é-me tão deliciosa a dormência do álcool que até gosto de anestesias gerais – imaginem! Como dizia um tio meu, uma das pessoas mais bem-dispostas que conheci na vida: “é muito difícil aguentar tudo isto sóbrio.” E como ele, também eu gosto de fumar. Se o meu corpo aguentasse, fumava ininterruptamente. Para mim, beber e fumar são muletas muito eficazes para combater a ansiedade e grandes facilitadoras da criatividade. Por exemplo, parece-me que hoje o jazz, a música de jazz, perdeu fulgor agora que tantos músicos são abstémios e vegetarianos e cuidam especiosamente da sua saúde, tão longe do derramamento de paixão, do desbragamento de geniais artistas no passado.

Estarão a pensar que enlouqueci. Que vim fazer a apologia do alcoolismo para um encontro organizado por jesuítas. Não. O que quero dizer-vos é que o desafio, a grande dificuldade é conseguir experimentar o fulgor do encontro comigo mesma, com o outro, com a experiência espantosa de estar viva sem o recurso às minhas muletas dilectas. Desde há mais de vinte anos que me imponho periodicamente a abstinência. Montada exclusivamente na força que dou à decisão, passo às vezes um ano sem beber e sem fumar. Não consigo explicar-vos o quanto me custa, mas a partir daqui podemos começar a falar a sério sobre Renúncia.

A renúncia é uma das práticas mais desintoxicantes que conheço. Muito para lá do benefício que, no meu caso, representa para a saúde do meu corpo deixar de beber e de fumar, na renúncia a verdadeira desintoxicação é espiritual: há medida que os dias passam, a percepção sobre o poder da minha vontade aumenta. E aumenta a capacidade de focar naquilo em que quero focar-me, aumenta o sentimento de audácia. À medida que a prova de renúncia avança, sinto que tenho poder efectivo no desenho da minha vida. Não sou especialista em exercícios espirituais, mas estou a partilhar aquilo que funciona para mim. A renúncia a práticas que me são muito queridas funciona. Presumo que possa funcionar para cada um de vocês, com aquilo a que mais vos custar renunciar.

Avancemos. Não será por acaso que as religiões dos quatro cantos do mundo prescrevem o jejum (a renúncia de que já vos falei) e a caminhada. Para mim, deambular, ir olhando e vendo sem outro destino que não o de olhar e ver, é delicioso. Caminhar sozinha também é muito bom. E tanto melhor se a caminhada for longa e se apresentar algumas passagens difíceis, onde terei de me desligar do ruído do mundo e concentrar-me absolutamente para não cair. Mas peregrinar é muito diferente de caminhar e ainda mais diferente de deambular. Peregrinar implica um programa. Para mim, que sou cristã, peregrinar é caminhar orientada pela palavra de Jesus. É que o processo de procura de um diálogo mais absoluto comigo mesma não tem esse diálogo comigo mesma como finalidade. Como cristã, aquilo que verdadeiramente me interessa é conseguir que esse encontro abra a porta a Jesus: ao seu espírito. Porque é dentro de mim que tenho de criar condições para O encontrar. E esse encontro – sempre lamentavelmente intermitente – ilumina a minha vida e acalma a violência que há em mim.

Peregrinar é muito bom. Sobretudo se for com pessoas que não conhecemos de parte nenhuma. É-me familiar a tentação de me inscrever com amigos na mesma peregrinação. Mas posso afirmar-vos que a peregrinação que mais me transformou fi-la com pessoas que não conhecia. Para tornar mais claro o que estou a querer dizer, dou-vos um exemplo. Quando se inscreve uma criança num campo de férias em Inglaterra para aprender inglês é bom que ela não vá com amigos portugueses. Se for com amigos de casa tenderá a não se integrar e a não integrar o novo idioma, tenderá a não sair da sua zona de conforto, vai regressar com mais três ou quatro palavras no seu vocabulário e imensas histórias para contar sobre meninas e meninos com quem não chegou a estabelecer relação.

Eu não aspiro a instalar-me longe do ruído do mundo. Eu amo o ruído, a perigosidade do mundo. Aquilo a que aspiro é à consciência iluminada da experiência do mundo, da experiência da vida, da experiência dos outros, da natureza, da arquitectura, da música, da literatura, de um belo arroz de tomate. Aquilo a que aspiro é a dissipar “o nevoeiro que me impede de ver a grande beleza do lugar onde me encontro.” E na persecução deste desejo tenho a imensa graça da Fé.

Como cristã, aquilo que verdadeiramente me interessa é conseguir que esse encontro abra a porta a Jesus: ao seu espírito. Porque é dentro de mim que tenho de criar condições para O encontrar. E esse encontro – sempre lamentavelmente intermitente – ilumina a minha vida e acalma a violência que há em mim.

Orar. Não rezo muito, mas não me permito rezar sem intenção. Se me apercebo de que debitei distraidamente uma oração, repito-a com toda a intenção. Como se diz no Fado: rezo para entregar. E rezo muitas vezes no silêncio imposto de uma insónia ou de uma ressonância magnética ou de uma viagem de automóvel solitária. Também gosto muito de rezar o Pai-Nosso em comunidade.

Finalmente: Ler. A leitura de Ensaio, de Ficção e, acima de tudo, de Poesia é das práticas mais cristãs que conheço. É dispor-me a escutar dentro de mim um outro; não O Outro (esse Outro geral, politicamente correcto, de que tantas vezes falamos), mas um outro, singular. Ler é escutar cá dentro a voz de um outro que, por mais diferente que seja de mim, é Um como eu. Passei e passo parte da minha vida a ler. A intimidade que a leitura oferece do espectáculo tremendo e maravilhoso da humanidade alimenta a minha compaixão.

Termino com uma passagem da biografia de Pedro Arrupe. Muitos nesta sala terão ouvido falar de Pedro Arrupe, que foi Superior Geral da Companhia de Jesus entre 1965 e 1981. O jesuíta Pedro Arrupe morreu em 1991 com 84 anos investidos – não digo gastos, digo investidos – numa vida impressionante. Sobre Pedro Arrupe, que quis e a partir de 1938 conseguiu missionar no Japão durante mais de duas décadas, podia contar-vos coisas de pasmar. Mas escolhi uma passagem, relativa ao ano de 1942 em Nagatsuka (a seis km de Hiroxima). Para mim é uma passagem particularmente inspiradora:

“A ligação estreita com o eu profundo explicará muitos dos êxitos do padre Arrupe no Japão. A sua autenticidade, a sua unidade interior, a sua simplicidade e a transparência da sua alma convenciam mais quem o ouvia do que as suas palavras ou as suas actividades. Arrupe começou a fazer a meditação cristã em postura zen, conseguindo assim um tipo de oração cósmica que ultrapassa técnicas e escolas.

Arrupe (…) começou a praticar tiro ao arco como experiência preliminar. Diz-nos ele: (…) “Pedi para me ensinarem e deram-me as explicações que lhes pareceram necessárias. Foi esquisito, esperava que dissessem: ‘Fixe o olhar no mato (alvo)’. Mas o que disseram foi: ‘Não se preocupe com o mato, não é importante se lhe acerta ou não, o importante é identificar-se com ele. Quando isso acontecer, solte a seta com serenidade e ela seguirá sozinha para o alvo. Se estiver preocupado e tiver os nervos em tensão, em vez da corda, o alvo não será atingido’”.

(…) Era a busca do centro do ser a sobrepor-se à postura competitiva. Foi o que aconteceu com um francês que, depois de meses de prática de tiro ao arco, conseguiu disparar com desapego, o que levou o mestre a fazer uma profunda vénia e a dizer: ‘O arco disparou’”[1].

* Paula Moura Pinheiro, publicado pelo Ponto sj em 24 de Janeiro de 2020

[1] Pedro Miguel Lamet, Pedro Arrupe, Tenacitas/A.O., Coimbra 2004, pp. 141-142

Duas músicas (sugerido por mão amiga)

Com excepção da Sinfonia do Novo Mundo (sobre a qual já escrevi neste estabelecimento) conheço alguma coisa, não muita de Dvorak; não conhecia nenhuma parte da obra de que sugiro aqui o 2º andamento. Foi-me sugerido por mão amiga, acompanhada da frase está ali sempre quase quase a "tropeçar" para uma valsinha mas há uma nuance qualquer que não deixa e do texto abaixo. Oiçam, que vale a pena.

JdB



Just like delivering good news to someone has a positive rub-off effect on the messenger, performing Dvořák's Serenade is really a very therapeutic endeavor for performers. There is so much 'pure goodness' in it. Somehow even the moments which could cast a gloomy shadow – light melancholy of the Waltz, or the fragility of the opening of Larghetto – retain the wonderfully cloudless atmosphere... The remarkable thing about Dvořák's Serenade – this 'cloudless goodness' is fully sufficient for sustaining meaningful communication for nearly half an hour of music.

Misha Rachlevsky, 2000, in Wikipedia

26 janeiro 2020

III Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 4,12-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Quando Jesus ouviu dizer
que João Baptista fora preso,
retirou-Se para a Galileia.
Deixou Nazaré e foi habitar em Cafarnaum,
terra à beira-mar, no território de Zabulão e Neftali.
Assim se cumpria o que o profeta Isaías anunciara, ao dizer:
«Terra de Zabulão e terra de Neftali,
estrada do mar, além do Jordão, Galileia dos gentios:
o povo que vivia nas trevas viu uma grande luz;
para aqueles que habitavam na sombria região da morte,
uma luz se levantou».
Desde então, Jesus começou a pregar:
«Arrependei-vos, porque o reino de Deus está próximo».
Caminhando ao longo do mar da Galileia,
viu dois irmãos:
Simão, chamado Pedro, e seu irmão André,
que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores.
Disse-lhes Jesus: «Vinde e segui-Me
e farei de vós pescadores de homens».
Eles deixaram logo as redes e seguiram-n'O.
Um pouco mais adiante, viu outros dois irmãos:
Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João,
que estavam no barco, na companhia de seu pai Zebedeu,
a consertar as redes.
Jesus chamou-os
e eles, deixando o barco e o pai, seguiram-n'O.
Depois começou a percorrer toda a Galileia,
ensinando nas sinagogas,
proclamando o Evangelho do reino
e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo.

24 janeiro 2020

Moleskine *

Boa tarde, fala Vasco Silva, em que posso ajudá-lo? Aguarda só um minuto, por favor? Muito obrigado.

O problema é resolvido, o tempo é cronometrado, o sistema actua para que uma nova chamada entre, numa espécie de nova corrida nova viagem a pontuar no serviço ao cliente.

Boa tarde, fala Vasco Silva, em que posso ajudá-lo? Aguarda só um minuto, por favor? Muito obrigado.

Novo problema, nova tentativa de resolução, nova cronometragem do tempo, porque as regras são claras e a pressão é muita. Há o cliente, a satisfaçãozinha cujo indicador é calculado através de fórmulas e raciocínios vedados aos iniciados, o valor da hora, a amortização do equipamento, os indirectos, a energia, o custo do trabalho, os três minutos ideais para a optimização das variáveis.

Boa tarde, fala Vasco Silva, em que posso ajudá-lo? Aguarda só um minuto, por favor? Muito obrigado.

Vasco Silva trabalha num call center e repete vezes sem conta o monólogo número um do manual que lhe entregaram, e em cujo verso se refere que os colaboradores são o nosso melhor activo. O silêncio pelo qual anseia restringe-se à intimidade de uma casa de banho, porque na escassa pausa para o cigarro há o colega que se lamenta da vida e insulta o chefe, o que comenta a bola e as gajas, o que fala de si próprio com uma admiração reservada aos santos.

Hora e meia, um autocarro e um barco depois chega a casa. Vai cansado, as cordas vocais ressequidas como duas gavinhas expostas ao sol. Entra na cozinha que é exígua, na sala onde cabe uma televisão, um sofá e um livro de ficção científica, no quarto onde uma cama de corpo e meio ocupa a quase totalidade de uma alcatifa cinzenta velha. Bebe uma cerveja fresca e olha para as paredes vazias e por pintar, para as janelas de madeira fissuradas e deslavadas, para um silêncio que o sossega porque o poupa ao seu próprio tom de voz.

Ao fim de semana recebe a Otília a quem beija com um fervor feito de saudade e ausência, de desejo, de vontade, de amor. Ela trabalha isolada num laboratório, homogeneizando reagentes, analisando resultados, detectando tendências. Enroscam-se num sofá e Otília fala da vida, dos colegas que não tem, dos diálogos que não acontecem, das ausências esmagadoras de som. Vasco passa-lhe a mão pelo cabelo revolto, beija-lhe a nuca e olha para lá das janelas ressequidas, das paredes por pintar, da alcatifa puída e velha. O monólogo de Otília embala-o, e ele sente que não conseguiria sobreviver sem aquela média feita de um falar constante e de um silêncio permanente.

Quando recolhem ao quarto Vasco despe-a com vagar, botão a botão, fecho a fecho, palmo a palmo. Percorre-lhe o corpo como se tudo se resumisse a uma boca que sente, vê, palpa, prova. Amam-se indiferentes aos gritos da vizinha, aos carros que buzinam, aos cães que ladram à lua. Quando acabam, Vasco olha para o relógio porque os hábitos demoram a morrer, e na cabeça dele o tempo é cronometrado, os custos são controlados e o impacto dos indirectos tem de ser medido com rigor. Depois vê Otília deitada de lado num pudor que o comove e sussurra-lhe ao ouvido o monólogo número um dos manuais. Ela sorri com o corpo todo, numa generosidade sensual que sempre vence os hábitos que custam a morrer.

Boa tarde, fala Vasco Silva, em que posso ajudá-lo? Aguarda só um minuto, por favor? Muito obrigado.

JdB

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* publicado originalmente em 4 de Maio de 2012

23 janeiro 2020

Duas Últimas (sugerido por mão amiga)





De Alfonsina y el mar diz a Wikipedia de língua castelhana:

La canción es un homenaje a la poeta de la misma nacionalidad Alfonsina Storni, que se suicidó en 1938 en Mar del Plata, saltando al agua desde una escollera, aunque, según la canción, se internó lentamente en el mar. Esta conexión ha originado un rumor muy extendido pero erróneo, según el cual la letra de la canción fue originalmente la carta de suicidio de la poetisa, musicalizada más tarde por los autores de la zamba.

Aunque Ariel Ramírez no conoció directamente a la poetisa, ésta fue alumna de su padre, Zenón Ramírez, quién trasmitió a su hijo el drama de Storni. Impresionado por estos recuerdos y por las poesías de Storni, que le trajo Luna, Ramírez compuso la música y Luna aportó después la letra.

***

Qual a relação com a segunda música? O título da música e o mito que rodeia o suicídio de Alfonsina Storni. 

Apreciem.

JdB

22 janeiro 2020

Textos dos dias que correm *

O Palácio da Pena (de si mesmo)

O Palácio da Pena, na Serra de Sintra, recebe à volta de 2 milhões de visitantes por ano, entre portugueses e estrangeiros. E ninguém fica desiludido: o bilhete abre-nos a porta do passado e transporta-nos para um mundo de fantasia carregado de emoções. Os roteiros falam mesmo deste monumento como de uma “cenografia”.

Chama-se “da Pena” devido ao local onde o palácio foi construído, o “Monte da Pena”. Esta “pena” deve ter sido simplesmente a de algum pássaro – real ou lendário – que por lá tenha passado. Mas, em português, a palavra “pena” tem dois sentidos; há uma outra “pena”, a de nós mesmos, sobre a qual podemos construir uma espécie de palácio encantado. Para lá vivermos fechados. Porque a pena de nós mesmos é um espaço tentador do qual por vezes não apetece sair. Está cheio de corredores compridos, portas antigas e altas varandas de onde se vê o mundo à distância, a partir de cima. Nos pátios deste palácio há fontes de pedra que jorram sem cessar uma espécie de água cristalina. Delas se bebem emoções fortes que nos fazem sentir especiais, diferentes, únicos, injustiçados. E quem delas bebe não percebe que está a beber veneno…

Várias vezes tenho repetido uma ideia, que devo ter ouvido algures: estaríamos ricos se, cada vez que nos queixamos, colocássemos 10 cêntimos num mealheiro. Disse isto no ano passado, nuns Exercícios Espirituais que dei a sacerdotes, um pouco antes do início da Quaresma. Um deles aproveitou a ideia e sugeriu esta prática aos seus paroquianos: que tivessem em suas casas, durante a Quaresma, umas caixas em cartolina e que deixassem lá uma moeda cada vez que se queixassem. Sugeriu ainda que, no fim da Quaresma, esse dinheiro tivesse uma determinada finalidade social. Achei genial. O hábito da queixa é uma muleta egocentrada e infantil que se apodera de nós subtilmente. Tudo serve para uma boa queixa: o calor ou o frio, o muito trabalho ou a sua ausência, as exigências da vida matrimonial ou – por outro lado – o facto de se ser solteiro ou separado, a preocupação com os filhos ou a infelicidade de não os ter tido. E quando não faz frio nem calor, não há muito trabalho nem pouco e os filhos andam nas suas vidas em velocidade de cruzeiro, aí surge a maior queixa, a da monotonia da vida, a de não acontecer “nada de especial”.

Todos temos – nas nossas histórias pessoais –  factos que cheguem e sobrem para nos queixarmos ou para nos acharmos sortudos. Creio que a pena de nós mesmos é uma decisão (embora inconsciente). Quando tentamos sustentar esta pena referimos factos, claro, mas a pena é uma decisão e uma decisão prévia à análise dos factos. A decisão refere-se ao modo como contamos a nossa vida – como uma história merecedora de comiseração ou de gratidão. Já ouvi pessoas falarem de uma sua deficiência física como uma sorte (pela quantidade de coisas boas que tiraram daí) e já ouvi pessoas queixarem-se da sua muito privilegiada situação laboral como uma infelicidade (pelo tanto que têm de trabalhar).

O exercício da queixa é muito útil para quem quiser ter pena de si mesmo mas não chega. Para se atingir uma boa pena de si é preciso chegar a pensar (e depois a dizer) que “tudo me acontece”, ou seja: é preciso chegar à vitimização. A vitimização é mais do que a queixa porque sugere alguma forma de complot cósmico contra a pessoa. Primeiro o risco no carro e a bronquiolite da miúda, depois o IRS e agora – imagine-se – as compras online que vieram trocadas!

Duas insinuações acusatórias conseguem irritar de morte a pessoa que tem pena de si mesma. A primeira é a de que ela mesma possa estar a contribuir para o seu próprio infortúnio pela sua maneira de estar na vida. (Será que o “azar” de teres tão poucos amigos não terá algo a ver com o teu apego ao sofá e à televisão? E não haverá nenhuma relação entre não encontrares trabalho e recusares-te a trabalhar fora da tua área?) A pessoa convence-se de que nunca tem culpa, que a culpa é sempre dos outros e das circunstâncias. Um “azar”. E, sendo assim, ela não tem de fazer aquilo que todos nós temos de fazer: pôr-se em questão a si mesma. A segunda insinuação irritante é a de que a vitimização pode dar jeito para alguém não ter de se incomodar com os problemas dos outros. Porque andar a chorar pelos corredores do palácio é chato mas serve bem de alibi para uma pessoa não ter de sair para fora do palácio e se preocupar com os outros. Inconscientemente, claro…

A autocomiseração é como um palácio, encantado e tentador. No entanto talvez o leitor (e eu próprio) não tenhamos propriamente um “palácio” de autocomiseração. Um palácio é uma coisa muito grande. Talvez tenhamos apenas uma moradia, um T1, um quarto, ou simplesmente um canto sombrio onde nos queixamos e vitimizamos quando estamos sozinhos. Seja como for, é difícil escapar totalmente à pena de nós mesmos seja por causa do problema dos rins, da situação de desemprego, do feitio da pessoa que vive connosco, de determinado acontecimento do passado ou do facto de – mais uma vez – não termos conseguido sair do trabalho a horas de ainda ir ao ginásio.

A pena de si é tentadora mas a fé (pelo menos a fé cristã) leva-nos por um caminho bem diferente: exige que nos questionemos a nós mesmos de uma forma séria (os famosos exames de consciência diários, por exemplo) e obriga-nos a virar-nos para os outros (“Amarás o teu próximo como a ti mesmo”) em vez de nos fecharmos nos nossos palácios ou recantos de autocomiseração.

A fé cristã propõe ainda um modo de entendermos as nossas circunstâncias que torna absurda a queixa. Propõe que as entendamos como ocasiões da Graça divina, como algo que Deus aproveita para nosso bem. S. Paulo chegou a escrever que “tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus” (Rom 8, 28). Esta frase tão simples leva-nos a olhar de outro modo para o que nos acontece: se algo não pudesse contribuir para o nosso bem, Deus não permitiria que acontecesse. S. Paulo não escreve que “é tudo muito bom” mas que tudo pode “contribuir” para o nosso bem. Ou seja: que, de tudo, podemos tirar bem com a Graça de Deus. E ser cristão é precisamente andar à busca desse bem, por vezes tão escondido dentro de determinados acontecimentos. Em vez de nos queixarmos.

A maneira de ver cristã não deixa muito lugar à vitimização. Afinal a verdadeira “vítima” foi Jesus e não O ouvimos a queixar-se da injustiça que Lhe fizeram. Ouvimo-Lo apenas a dizer: “Quem quiser vir comigo tome a sua cruz e siga-Me” (Mt 16, 24). Cristo não nos convida a aguentar estoicamente as dificuldades mas a aprendermos com Ele a viver o negativo que não podemos mudar: a doença que não se cura, o feitio que não se muda, o acontecimento que não se apaga… Pegamos nessa “cruz” e unimo-nos à paixão de Cristo na intimidade com Ele, na disponibilidade para aceitarmos o que Deus quiser, na confiança de que tudo terminará em bem e na decisão firme de tentarmos tirar de tudo o crescimento e o bem. Em vez de nos vitimizarmos.

* P. Nuno Tovar de Lemos, sj
Publicado pelo Ponto sj (portal dos jesuítas em Portugal) em 15 Janeiro 2020

21 janeiro 2020

Poetas citados num almoço de Domingo

Canção porque (não) Morres

Este é o último livro, prometia
como alguém que tivesse esquecido
que assim sempre tinha sido - aquele
era o último e depois que alguém viesse
fechar a porta contra o som do mar.
- Pagava por jogar no escuro
e por aqueles ardis já gastos
com que pensava e não pensava
enganar a morte branca e vermelha.
- Ah e não esqueças: - deitar fora a chave

Canção como não morres
se é a morte que em ti sobe até à fonte
do sangue, até à flor do sal queimando
os dedos; até à boca que por te cantar
se acende negra; até à copa
das árvores que distribuem o sol
sobre o corpo morto do amor
amante e desamado?

Ou antes: de que morres, por que morres
tu, canção já sem voz, já
sem o canto,
            - já sem outro assunto
de momento, me despeço de todos vós-
quem falou agora? - Que importa quem falou?
- Que importa? Nada e nonada. E, sim, tudo
é tudo o que importa, para quem veio
mandado a que chamasses quem
tivesse chamado.

Canção, o teu sopro é quente
e têm sede os teus ventos, esses animais
do ar que por mil tubos sopram no corpo-músico
a verdade que calcinou os amantes que já o veneno
beijara até à flor do sangue.
depois, as palavras em que te perderas serão
cinzas sobre o mar e espuma suja
entre as rochas. Que atraso ou afecto
te prende ainda a esta margem
Por quem esperas tu
canção ainda
agora
que já por todo o céu
a terra nos esqueceu

Morresses, agora, canção
enquanto corres ainda pelo sangue
de quem escuta - e
morrerias no fulgor último
que ao fundo, no horizonte
da linguagem,
da própria linguagem
se afasta já, e abandonando vai
os seus bairros periféricos, despedindo-se
da tristeza dos migrantes derradeiros;
queimando página a
página
os últimos barcos.

Manuel Gusmão, in 'Migrações do Fogo'

20 janeiro 2020

Textos dos dias que correm

Evangelizar os robots: Novo desafio para a Igreja
Os pobres num mundo dominado pelos megadados (“big data”)

Na era da inteligência artificial (IA), a experiência humana está a mudar profundamente, muito mais do que a esmagadora maioria da população mundial consegue ver e compreender. A verdadeira explosão da IA tem um forte impacto sobre os nossos direitos no presente e sobre as nossas oportunidades futuras, determinando processos de decisão que, numa sociedade moderna, dizem respeito a todos. A IA representa um desafio e uma oportunidade também para a Igreja: é uma questão de justiça social. Com efeito, a investigação urgente, ávida e não transparente dos megadados, isto é, dos dados necessários para alimentar os motores de aprendizagem automática pode conduzir à manipulação e à exploração dos pobres. Além disso, os mesmos propósitos para os quais são treinados os sistemas de IA podem conduzi-los a interagir de formas imprevisíveis para garantir que os pobres sejam controlados, vigiados e manipulados.

Atualmente, os criadores de sistemas de IA são cada vez mais os árbitros da verdade para os consumidores. No contexto dos progressos do século XXI, a experiência e a formação da Igreja deveriam ser um dom essencial oferecido aos povos para os ajudar a formular um critério que os torne capazes de controlar a IA, mais do que ser por ela controlados. A Igreja é chamada também à reflexão e ao empenhamento. Nas arenas políticas e económicas em que a IA é promovida devem encontrar espaço as considerações espirituais e éticas. A Igreja deve empenhar-se em informar e inspirar os corações de muitos milhares de pessoas envolvidas na criação e elaboração dos sistemas de IA. Em última análise, são as decisões éticas a determinar e enquadrar que problemas enfrentará um sistema de IA, como vai ser programado, e como devem ser recolhidos os dados para alimentar a aprendizagem automática. Podemos ler o desafio daquela que poderemos definir como a “evangelização da IA” como uma combinação entre as recomendações do papa Francisco para olhar o mundo a partir da periferia, e a experiência dos jesuítas do século XV, cujo método pragmático de influenciar quem é influente poder-se-ia hoje reformular como partilhar o discernimento com os cientistas dos dados.

Benefícios

Silenciosamente, mas rapidamente, a IA está a remodelar por inteiro a economia e a sociedade: o modo como votamos e aquele como é exercido o governo, o algoritmo da “polícia preditiva”, a maneira como os juízes emitem as sentenças, o modo como acedemos aos serviços financeiros e a nossa pontuação de crédito, os produtos e serviços que adquirimos, as habitações, os meios de comunicação que utilizamos, as notícias que lemos, a tradução automática de voz e texto. A IA projeta os nossos automóveis, ajuda a guiá-los e a orientá-los no território, estabelece como obter um empréstimo para os comprar, decide que estradas devem ser reparadas, apura se violámos o código da estrada e faz-nos também saber se, tendo-o feito, teremos de acabar na prisão. Estes são apenas alguns das numerosas contribuições da IA que já estão a acontecer.

Os investigadores Mark Purdy e Paul Daugherty escrevem: «Prevemos que o impacto das tecnologias de inteligência artificial sobre as empresas induzirá um aumento da produtividade do trabalho até 40%, permitindo às pessoas fazer um uso mais eficiente do seu tempo». O Banco Mundial está a explorar os benefícios que a IA pode prestar ao desenvolvimento. Outros observadores identificam na agricultura, no aprovisionamento dos recursos e na assistência de saúde os setores das economias em vias de desenvolvimento que extrairão grande benefício da aplicação da IA. A inteligência artificial também contribuirá notavelmente para reduzir o inquinamento e o desperdício de recursos.

A inteligência artificial para a justiça social

A IA pode sem dúvida conferir benefícios à sociedade, mas por outro lado coloca também questões importantes de justiça social. Neste campo, a Igreja tem a oportunidade e a obrigação de empenhar o seu ensinamento, a sua voz e o seu prestígio em relação a algumas questões que se perfilam como fundamentais para o futuro. Entre estas deve indubitavelmente ser compreendido o enorme impacto social das repercussões que a evolução tecnológica terá sobre o emprego de milhares de milhões de pessoas durante as próximas décadas, criando problemáticas conflituais e uma posterior marginalização dos mais pobres e vulneráveis.

Impacto sobre o emprego

Muito já foi feito para medir o impacto da IA e da robótica sobre o emprego, sobretudo após o importante artigo de 2013 em que Osborne e Frey estimavam que 47% dos postos de trabalho nos EUA arriscavam a ser automatizados nos 20 anos seguintes. Os estudos e o debate científico especificaram a natureza e os contornos do fenómeno: a cessação total ou parcial de atividades laborais existentes, a sua repercussão em todos os setores e nas economias desenvolvidas, emergentes e em vias de desenvolvimento. É verdade que fazer previsões exatas sobre este tema é difícil; mas um recente relatório do McKinsey Global Institute reporta uma análise a meio termo. 60% das ocupações possuem pelo menos 30% de atividades laborais passíveis de automatização. Por outro lado, esta abrirá as portas a novas ocupações que hoje não existem, tal como aconteceu, em consequência das novas tecnologias, também no passado. As previsões indicam que a partir de 2030 um número compreendido entre 75 e 375 milhões de trabalhadores (ou seja, entre 3% e 14% da força de trabalho global) terá de mudar as suas categorias ocupacionais.

Códigos e preconceitos

O código de programação é escrito por seres humanos. A sua complexidade pode por isso acentuar os defeitos que inevitavelmente qualquer tarefa que se execute. Os preconceitos e a parcialidade na redação dos algoritmos são inevitáveis. E podem ter efeitos muito negativos sobre os direitos individuais, sobre as opções, sobre a colocação dos trabalhadores e sobre a proteção dos consumidores. Com efeito, os investigadores relevaram preconceitos de vário género presentes nos algoritmos, em programas (“software”) adotados para as admissões na universidade, recursos humanos, classificação (“rating”) de crédito, banca, sistemas de apoio à infância, dispositivos de segurança social e outros. Os algoritmos não são neutros. A crescente dependência que as dimensões sociais e económicas têm da IA confere um enorme poder àqueles que programam os algoritmos.

Risco de marginalização dos vulneráveis

Uma análise do impacto dos megadados e da IA a nível social demonstra que a sua tendência a tomar decisões na base de perfis insuficientes e validações limitadas comporta a posterior marginalização dos pobres, dos indigentes e das pessoas vulneráveis.

Envolvimento das sociedades e dos governos

Nos últimos anos assistimos a um crescente aumento de pedidos de intervenção para garantir um controlo e a presença dos valores humanos no desenvolvimento da IA. Um progresso significativo foi realizado em maio de 2019, quando os 35 países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCSE) assinaram um documento que estabelece os “Princípios da OCSE sobre a Inteligência Artificial”. Estes integram as Linhas Orientadoras Éticas para uma IA confiável”, adotadas em abril do mesmo ano  pelo grupo de peritos de IA instituído pela Comissão Europeia. O objetivo do documento da OCSE é promover uma IA inovadora e confiável, respeitosa dos direitos humanos e dos valores democráticos. Para este objetivo, identifica cinco princípios complementares entre eles, e cinco recomendações relativas às políticas nacionais e à cooperação internacional. Os princípios são: favorecer o crescimento inclusivo, o desenvolvimento sustentável e o bem-estar; respeitar os direitos humanos, o Estado de direito, os princípios democráticos; assegurar sistemas transparentes e compreensíveis; garantir segurança, proteção e avaliação dos riscos; afirmar a responsabilidade de quem os desenvolve, distribui e administra. As recomendações são: investir na investigação e no desenvolvimento da IA; promover ecossistemas digitais de IA; criar um ambiente político favorável à IA; fornecer às pessoas as devidas competência com vista à transformação do mercado de trabalho; desenvolver a cooperação internacional para uma IA responsável e confiável.

Em junho de 2019, o G20 retomou os princípios OCSE ao adotar os Princípios do G20 sobre a IA, não vinculativos. O desafio para os próximos anos é dúplice: a posterior difusão destes ou de análogos princípios em toda a comunidade internacional, e o desenvolvimento de iniciativas concretas para colocar em prática tais princípios no interior do G20, e através do Observatório das políticas em matéria de IA da OSCE, criado recentemente. Para a Igreja abre-se agora a oportunidade de refletir sobre estes objetivos políticos e intervir em sedes locais, nacionais e internacionais para promover uma perspetiva coerente com a sua doutrina social.

“Evangelizar a IA”?

Por muito importantes que sejam as sugestões acima mencionadas a nível político e de empenhamento social, permanece o facto de a IA ser substancialmente composta por sistemas singulares individuais de projeto, programação, recolha e elaboração dos dados. Tudo processos fortemente condicionados por indivíduos. Serão as suas mentalidades e decisões a determinar em que medida, no futuro, a IA adotará critérios éticos adequados e centrados no ser humano. Atualmente essas pessoas constituem uma elite técnica de programadores e peritos de dados, provavelmente composta por um número que se aproxima mais das centenas de milhar do que de milhões. Aos cristãos e à Igreja abre-se uma possibilidade para a cultura do encontro, por meio da qual viver e oferecer uma autêntica realização pessoal a esta comunidade específica. Levar aos peritos de dados e aos engenheiros de programas os valores do Evangelho e da profunda experiência da Igreja na ética e na justiça social é uma bênção para todos, e é também a maneira mais plausível para mudar para melhor a cultura e a prática da inteligência artificial. A evolução da IA contribuirá em grande medida para plasmar o século XXI. A Igreja é chamada a escutar, a refletir e a empenhar-se, propondo um enquadramento ético e espiritual à comunidade da IA, e deste modo a servir a comunidade universal. Seguindo a tradição da “Rerum novarum”, pode dizer-se que aqui há um chamamento à justiça social. Há a exigência de um discernimento. A voz da Igreja é necessária nos debates políticos em curso, destinados a definir e executar os princípios éticos para a IA.


Antonio Spadaro, Paul Twomey
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 17.01.2020

19 janeiro 2020

II Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Jo 1,29-34

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
João Baptista viu Jesus, que vinha ao seu encontro,
e exclamou:
«Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.
Era d'Ele que eu dizia:
"Depois de mim virá um homem,
que passou à minha frente, porque existia antes de mim".
Eu não O conhecia,
mas para Ele Se manifestar a Israel
é que eu vim baptizar em água».
João deu mais este testemunho:
«Eu vi o Espírito Santo
descer do Céu como uma pomba e repousar sobre Ele.
Eu não O conhecia,
mas quem me enviou a baptizar em água é que me disse:
"Aquele sobre quem vires o Espírito Santo descer e repousar
é que baptiza no Espírito Santo".
Ora eu vi e dou testemunho de que Ele é o Filho de Deus».

17 janeiro 2020

Duas Últimas (enviado por mão amiga)


Eu seguro

Quando o tempo for remendo, Cada passo um poço fundo E esta cama em que dormimos For muralha em que acordamos, Eu seguro E o meu braço estende a mão que embala o muro.

Quando o espanto for de medo, O esperado for do mundo E não for domado o espinho Da carne que partilhamos, Eu seguro. O sustento é forte quando o intento é puro.

Quando o tempo eu for remindo, Cada poço eu for tapando E esta pedra em que dormimos Já for rocha em que assentamos, Eu seguro. Deixo às pedras esse coração tão duro.

Quando o medo for saindo E do mundo eu for sarando Dessa herança eu faço o manto Em que ambos cicatrizamos E seguro. Não receio o velho agravo que suturo.

Abraços rotos, lassos, Por onde escapam nossos votos. Abraso os ramos secos, Afago, a fogo, os embaraços E seguro, Alastro essa chama a cada canto escuro.

Quando o tempo for recobro, Cada passo abraço forte E o voto que concordámos É o amor em que acordamos, Eu seguro: Finco os dedos e este fruto está maduro.

Quando o espanto for em dobro, o esperado mais que a morte, Quando o espinho já sarámos No corpo que partilhamos, Eu seguro. O que então nascer não será prematuro.

Uníssonos no sono, O mesmo turno e o mesmo dono, Um leito e nenhum trono. Mesmo que brote o desabono Eu seguro, Que o presente é uma semente do futuro.

16 janeiro 2020

Da Igreja Católica

O filme Dois Papas, de que já se falou neste estabelecimento, provoca opiniões diferentes, embora haja aspectos importantes - vistos como negativos - que suscitam uma relativa unanimidade. Mais do que falar do filme - já o fiz, numa análise pouco profunda e que foi criticada - interessava-me divagar sobre o que falam as pessoas (ou algumas pessoas) quando criticam a obra cinematográfica; o que, para essas pessoas, está por trás (ou constitui o perigo) de uma ficção sobre papas vivos, ou que imagem da Igreja se quer passar (ou se passa) quando se confrontam dois papas daquela maneira. O assunto estava relativamente arrumado dentro da minha cabeça; no entanto, aconteceu este episódio do livro escrito pelo Cardeal Robert Sarah sobre o celibato dos padres e relativamente ao qual se anunciou uma certa parceria - deliberada ou manipulada - de Bento XVI. Daí este texto.

***

Há uns meses almoçava com um amigo que é muito católico, muito conservador, muito culto e muito inteligente. A propósito de um certa dúvida disse-lhe

hoje vou jantar com um jesuíta e pergunto-lhe.

Ele respondeu numa tirada com graça

não se esqueça de perguntar depois a um padre... 

Poderia contar a visão muito oposta que amigos meus - católicos - têm relativamente a Amoris Laetitia naquilo que se cruza com a comunhão dos recasados; ou a visão muito oposta que amigos meus - católicos - têm sobre algumas ideias do Papa Francisco, desde a possibilidade de ordenação de gente madura na Amazónia até à eliminação de alguns sinais de grandeza da Igreja ou do papa. Ou, no fundo, a ideia que amigos meus - católicos - têm sobre Francisco e Bento XVI. A Igreja Católica, ao seu nível mais básico - que é o comum dos fiéis - está pejada de opiniões diferentes, por vezes muito críticas. Estou certo que a mesma Igreja, ao seu nível mais elevado, é igual - e portanto mais grave, pela sua maior visibilidade e amplitude.

Talvez haja uma certa ideia de banalização da Igreja, da sua redução a uma frivolidade sem importância, própria de um mundo desejoso de relativismo, de ódio a valores absolutos e não negociáveis. Talvez haja uma certa ideia de que toda a gente pode zurzir - e zurze - na Igreja Católica, e que toda a gente pode desdenhar a Igreja Católica, ao contrário de outras igrejas (ou religiões) onde ninguém se atreve a tocar. Haverá ainda a ideia de um ataque orquestrado à Igreja Católica, visível, sobretudo, no que surge nos orgãos de comunicação social, onde só se publica o podre, o negativo, o errado, o ligeiro, mas também noutras áreas, como no caso do filme em apreço.

Sempre tive dúvidas de que houvesse uma agenda de ataque à Igreja: teria de perceber de quem vem, quem a define, quem a controla ou gere, em que moldes se articula. Estou certo que a Igreja suscita irritações em vários graus; porém, a publicação do podre, do negativo, do errado ou do ligeiro é uma característica dos tempos modernos (aplicável a desmandos financeiros em IPSS, a pequenas corrupções de árbitros de província ou a infidelidades do jet set) e não o resultado de um ataque concertado. Publica-se o que vende - e basta, para isso, olhar a capa dos jornais ou das revistas. Numa visão muito radical, talvez não haja muita diferença entre uma primeira página que noticia o padre que roubou peças de arte sacra ou uma primeira página onde se refere (a toda a largura) um menino de dez anos que vê a mãe morrer num acidente.   

Isto não me impede da certeza de que a Igreja Católica tem inimigos; estou convicto, contudo, que os maiores inimigos da Igreja Católica estão dentro da Igreja Católica: é o triste e evitável caso do livro a duas mãos ou a quatro mãos; é o triste caso dos dinheiros do Vaticano, da corrupção, da fuga de informações, ou o vergonhoso e escandaloso caso da pedofilia; é esta certeza que todos temos de que há uma luta interna grande ao nível do topo da Igreja, com estratégias organizadas. É, numa dimensão diferente, a falta de empenho dos católicos na vida da sua paróquia ou da sua diocese, o excesso de criticismo, a incongruência entre o que defendemos e praticamos. É para estes inimigos, sobretudo mas não exclusivamente, que temos de apontar baterias.

Para mim, proteger a igreja é lutar ou rezar pela sua pureza interna; é identificar o adversário certo - não os fernandos meirelles tendenciosos ou os jornalistas à procura do escândalo, mas os inimigos internos. Proteger a igreja é militar, é estar presente, é defendê-la publicamente ou criticá-la recatadamente, é publicitar o bem que faz, colectiva ou individualmente, defender publicamente todos os papas. Proteger a igreja é discernir a diferença saudável, mas levar ao limite a ideia de obediência (o livro do Cardeal Sarah é paradigmático desta ausência de obediência filial). Proteger a igreja é identificar o que mina a sua credibilidade, o que afasta os fiéis das cerimónias, como se combate o excesso de laicismo, como se dá peso aos sacramentos.  

Os tempos não são fáceis; são tempos de muita visibilidade, de permanente escrutínio, de imediatismo e leveza excessiva. É preciso que cada um de nós, católicos, perceba como quer / pode defender a Igreja onde se revê. Talvez ajude se a Igreja (onde estou e quero estar) não cometer tantos erros. Já não vivemos, para o melhor e para o pior, o tempo da sede gestatória, do camauro orlado de arminho ou de outros sinais que evidenciavam a magnificência do cargo. Vivemos, também para o melhor e para o pior, um tempo de grande proximidade temporal: o que se faz agora sabe-se agora - ou inventa-se agora. Convém que estejamos mais atentos.      

JdB

15 janeiro 2020

Vai um gin do Peter’s ?

RAFAEL E FIGURA FEMININA NO EPICENTRO DA MENSAGEM DO PAPA AO C.D.

No discurso de início de ano proferido ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé, o Papa apoiou-se num dos maiores génios da arte Ocidental para sustentar a mensagem de inauguração do Novo Ano. Convocou nada menos do que um dos Magníficos do triângulo de ouro do Renascimento italiano, a par de Leonardo e de Michelangelo.


No ano dos 500 anos da morte de Rafael (a 6 de Abril de 1520), o Papa invocou o exemplo do autor dos frescos que engrandecem várias salas dos Museus Vaticanos, lembrando o facto de a musa preferida do pintor ter sido uma mulher, a Mãe da Natividade. A presença de Maria prevalece nas telas de Raffaello Sanzio, quase todas célebres. Nos seus óleos ressalta a maternidade única e sagrada, sempre gentil e subtilmente debruçada sobre o Pequenino, que cuida com uma ternura tocante, sem excessos protecionistas nem aprisionantes, como se fosse fácil aquele velar atento e suave, em simultâneo, quase imperceptível... 

Madonna no prado – Museu de História de Arte, em Viena

Madonna Cowper (pequena), na National Gallery of Art em Washington

Madonna com o Livro (Conestabile Madonna),  Hermitage - S.Petersburgo.

Madonna do Grão-Duque, no Palácio Pitti - Florença.

Sagrada Família com palmeira, Museu de Edimburgo

Francisco quis deter-se na tela dedicada à Assunção de Nossa Senhora, cujo dogma foi proclamado há 70 anos, para dirigir aos 180 diplomatas «um pensamento particular [sobre] todas as mulheres», 25 anos após a 4.ª conferência mundial da ONU sobre a mulher, realizada em Pequim, em 1995, «fazendo votos para que em todo o mundo seja cada vez mais reconhecido o papel precioso das mulheres na sociedade, e cesse toda a forma de injustiça, desigualdade e violência em relação a elas». Depois, advertiu contra a violência de que são alvo, em todas as latitudes, infelizmente, ferindo a humanidade no seu âmago: «Toda a violência infligida à mulher é uma profanação de Deus. Exercer violência contra uma mulher, ou explorá-la, não é um simples ato, é um crime que destrói a harmonia, a poesia e a beleza que Deus quis dar ao mundo».

Virgem da Assunção.

Partindo da dupla virtuosa do exímio pintor renascentista e da sua musa de eleição, o Papa expôs aos 180 diplomatas a missão da Diplomacia e o alcance que pode ter: «A Assunção de Maria convida-nos também a olhar mais longe, para o cumprimento do nosso caminho terreno, para o dia em que a justiça e a paz serão plenamente restabelecidas. Sentimo-nos assim encorajados, através da diplomacia, que é a nossa tentativa humana, imperfeita, mas sempre preciosa, a trabalhar com zelo para antecipar os frutos deste desejo de paz, sabendo que a meta é possível». Explicou melhor as afinidades do esforço diplomático com o aperfeiçoamento que a Arte promove: «como o génio do artista sabe compor harmoniosamente materiais em bruto, cores e sons diferentes, tornando-os parte de uma única obra de arte, assim a diplomacia é chamada a harmonizar as particularidades dos vários povos e estados para edificar um mundo de justiça e de paz, é que é o belo quadro que desejamos poder admirar».

Apontando para a coragem de Rafael, que soube sublimar por via artística as dificuldades de tempos atribulados e com muito menos recursos para a maioria, o Papa assinalou: «foi um filho importante de uma época, a do Renascimento, que enriqueceu toda a humanidade. Uma época não privada de dificuldades, mas animada de confiança e esperança».

No final, associou Rafael aos desejos formulados para o Novo Ano: «Através deste insigne artista, desejo fazer chegar os meus mais sentidos votos ao povo italiano, a quem desejo que redescubra esse espírito de abertura ao futuro que marcou o Renascimento, e que tornou esta península tão bela e rica de arte, história e cultura».

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

14 janeiro 2020

Do filme Dois Papas: o meu olhar

Janto com amigos. Das dez pessoas à volta da sala, nove são aquilo a que se chamaria vulgarmente (e algo disparatadamente) católicos praticantes. São pessoas de missa semanal, com militância passada ou presente em movimentos da igreja, com desejos de pertença completa. São católicos discernidos, com um olhar genericamente discernido (embora por vezes pessoal) sobre a Igreja Católica e sobre o que gira à volta dela. 

Fala-se no filme Dois Papas, que passa no Netflix. De entre o grupo há quem tenha visto e há quem não tenha visto. Há quem tenha gostado e há quem não tenha gostado, ou não tenha gostado de um aspecto mais específico. De entre as críticas negativas talvez realçasse o seguinte:

- o excesso de ligeireza do filme;
- a clara preferência do realizador pelo Papa Francisco, muito à custa de Bento XVI; 
- o engano assente na frase "baseado em factos reais";
- a ilegitimidade de se fazer um filme sobre duas pessoas vivas, sem que lhes tenha sido pedida autorização;
- "a importância do Papa que não se compadece com exercícios de ficção cinematográfica".

Sou dos que viram e gostaram do filme, pese embora subscrever claramente as três primeiras críticas referidas acima: há ligeireza na abordagem à vida de Bento XVI, aos temas tratados; a sustentação de que são factos reais é um exercício impossível, apesar de qualquer um dos papas ter proferido alguns daqueles pensamentos numa dada altura. Porem, apesar disso gostei do filme: não achei insultuoso, não achei que denigra claramente a imagem de Bento XVI; vi-o como uma obra de ficção (muito bem filmada), não como um documentário; fixei uns pormenores, não dei importância a outros.

Numa leitura pelas críticas ao filme feitas por gente da Igreja, ou ligada à Igreja, encontra-se de tudo: gente que gostou e gente que não gostou, o que parece dar a entender que, mesmo nos meios católicos equilibrados, não há unanimidade, a não ser na representação desigual de ambos os Papas. Muitas críticas referem a inverosimilhança de algumas cenas, o que é verdade. Talvez o problema não esteja então só no filme, mas no facto de se ter vendido a ideia de que ele se baseava em factos reais. Se virmos o filme como uma espécie de documentário, ele está pejado de disparates. Mas se o virmos como uma obra de ficção talvez ali vejamos coisas interessantes, como a humanidade de ambos, visível na forma como se entusiasmam com o futebol, na imperfeição da obra tocada ao piano, ou no modo como se relacionam com Deus. Não sei, em bom rigor, se Bento XVI e Francisco se confessaram um ao outro nem isso me interessa muito, reconheço. Prefiro demorar-me nas dúvidas interiores que revelam, um em relação ao problema da pedofilia na igreja, outro na sua interacção com a ditadura de Videla. Interessou-me a dimensão da fragilidade humana, mais do que a evidência de uma atitude correcta. Não vi o filme como um panfleto, mas como uma janela que se abre sobre dois homens de carne e osso; vi o filme, talvez, como uma metáfora sobre a condição humana.

***

Num âmbito ainda relacionado com o filme, amigo que prezo afirmou e escreveu-me: "(...) nem consente esta tendência tão tolerada de a Igreja Católica ser tema de domínio público, sobre que todos opinam e botam sentença."

Tenho a dizer que, acima de tudo me espanta o desejo interminável de pessoas que, nada tendo a ver com a Igreja, estarem sempre de olhar atento e crítico sobre a Igreja; indigna-me que na primeira página dos jornais venha o mal que a igreja faz, mas não o bem que pratica; exaspera-me este escrutínio permanente, desequilibrado e persecutório. O que me separa, talvez, da frase deste meu amigo é que a Igreja não tolera tendência nenhuma, porque não está nas mãos da Igreja agir contra esta tendência. 

A Igreja vive num tempo moderno, de twitter e instagram, de whatsapp e notícias ao minuto. Este é, também, o tempo da Igreja - tempo esse a que não pode fugir. O que lhe resta, para além de tudo o que já faz de forma fantástica? Trabalhar o melhor possível, corrigir as más práticas internas, emendar a mão onde deve emendar. A nós, católicos - e, portanto, igreja - espera-se a militância e a defesa. Na minha opinião, fazer um filme - este filme - sobre o Papa (ou sobre dois papas) não fere a dignidade da Igreja nem dos personagens, porque não há insulto e porque o papel de ambos na História do Mundo está muito acima de um filme. A dignidade da Igreja, para além da sua dignidade inerente enquanto Estado, está na pureza com que segue e põe em prática os ensinamentos de Cristo: a atenção aos pobres e necessitados, a luta incansável pela justiça social, o castigo inequívoco de práticas indignas.

Vivemos um tempo de exposição mediática, quer queiramos quer não. Se fizermos o que devemos fazer, e o fizermos bem, não há filme que nos destrua nem diminua - mesmo que diga alguns disparates.

JdB      
    

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