31 outubro 2021

XXXI Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Me 12,28-34

Naquele tempo,
aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» Jesus respondeu:
«O primeiro é este:
'Escuta, Israel:
O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças'. O segundo é este:
'Amarás o teu próximo como a ti mesmo'.
Não há nenhum mandamento maior que estes». Disse-Lhe o escriba:
«Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes:
Deus é único e não há outro além d'Ele. Amá-l'O com todo o coração,
com toda a inteligência e com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo,
vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios». Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente, Jesus disse-lhe:
«Não estás longe do reino de Deus».
E ninguém mais se atrevia a interrogá-I'O.

28 outubro 2021

Da tristeza *

Sou um homem dado a nostalgias. 

Sou apreciador de uma música que muitos consideram deprimente, porque o fado e a música clássica triste podem parecer isso.

Gosto muito do Outono, dos dias que morrem mais cedo, dos nevoeiros ao som da ronca, das árvores abandonadas de folhas, do princípio da terra a cheirar a molhado.

Invejo algum isolamento. Gosto de grandes silêncios, de penumbras, das horas perdidas a olhar para uma paisagem que não acaba, do tempo que se despende a ver um mar que não se esgota nem se repete.

Não fujo do que me entristece ou me comove ao ponto das lágrimas; não procuro o bulício por gosto ou por defesa.
Há em mim, estou certo, uma dose grande de propensão para aquilo que muitos chamarão tristeza, neurastenia, falta de divertimento, carácter maçador, o que quer que seja. Para minha defesa – caso dela necessitasse – não apresento aliados poderosos a não ser o que mostro de mim, pese embora as escolhas que não se coadunam com o espírito da era moderna. De alguma forma sou o que fui consistentemente: um velho. Talvez tenha nascido assim, num desajuste frequente a uma época que nem sempre foi  a minha.

De há um tempo para cá venho conversando com uma pessoa por quem tenho uma amizade muito recente e que atravessa momentos pessoais menos pacíficos. Entremeia as conversas comigo – que eu aprecio pela abertura mútua – com as consultas num profissional. Contava-me um destes dias que o técnico (um alemão) lhe recomendara a escuta de fado para sentir a tristeza, para ir ao fundo da sua própria alma. E que remata o argumentário com a frase lapidar, talvez mesmo inesperada: já chorou hoje? O choro como terapia, portanto. Ou, talvez apenas, o choro como não repulsa.

Não saberia discorrer tecnicamente sobre este tema. Não sou especialista na arte, embora não desdenhasse ser nova-iorquino para que um psiquiatra por conta não fosse ideia que chocasse os outros. Olho à minha volta: há uma espécie de horror à tristeza como a natureza sempre o teve ao vácuo. As pessoas procuram com desvairo a folia, o riso, o ruído, as multidões, os grupos. Fogem da introspecção, das conversas a dois, da exposição da alma, das lágrimas furtivas, das confissões libertadoras ou das perguntas que se adentram no coração alheio. As conversas são feitas de monólogos, de afirmações que se proferem e de informações que se prestam, de histórias de sol e de neve. Devia ser só isto? Não, mas não tinha de ser só isto.   

Não faço a apologia da tristeza, não só porque não saberia defender a minha dama, como não me parece que seja uma aposta permanentemente certa. E, no entanto, estou absolutamente certo de que há por aí muito boa gente a precisar de tristeza, a necessitar de ouvir fado, a carecer de diálogos onde impere a intimidade e a partilha. A Amália canta-nos que o riso é sempre o começo/do sorriso que findou, a vida ensina-nos que quem foge sistematicamente ao choro fará uma vida a olhar por trás do ombro. A fuga é uma sombra que nos persegue. Talvez precisemos todos de mais tristeza, não para chorar, mas para perceber o que chorar faz por nós.

JdB

Nota: Com a devida autorização, junto um pequeno mas magnífico texto que mão amiga me redigiu na sequência de uma interpelação sobre esta coisa da tristeza. Talvez eu devesse ter estado calado e ter-me ficado pela dissertação alheia. Sempre revelava algum juízo.

***

Choro nos intervalos da vida e também nos do cinema; durante, só e sempre na ópera.
A tristeza tem uma singular beleza. É um admirável estado de alma, é mais do que a insípida melancolia e menos do que a temida mágoa.
A tristeza entusiasma o espírito, incentiva a imaginação, gera a saudade, é a confidente do amor e a mãe da esperança.
Gosto de estar triste, sinto-me bem quando apoquentado por aquele ligeiro sofrimento que nos tira a indiferença a tudo e a todos, em especial a nós próprios. 
Gosto de estar triste porque gosto de me consolar, que me consolem, de me mimar e que me mimem.
Estar triste é esperar pela alegria que aí vem, é prezar o estar no apeadeiro.
Mas, sobretudo, gosto de estar triste porque não gosto de estar sozinho. A tristeza e a solidão são incompatíveis. Estar triste é um apaixonado diálogo com os outros, é querer os outros e dos outros.

Gosto pois do choro, mas temo o pranto que me arrepia e magoa.

Não sou, nem gosto de ser, triste. Ser triste é não ser amor. Estar triste é amar.

---------------

* publicado originalmente a 20 de Junho de 2013


27 outubro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

STAND BY ME – PEDIDO ESSENCIAL DA HUMANIDADE  

Em 1961, o cantor e compositor norte-americano Ben E. King publicou a balada «STAND BY ME». Talvez não imaginasse as transformações e reinterpretações que a ária, nascida no alvor do rock & roll, iria merecer, integrando depois o escol das Canções do Século, por eleição da Recording Industry Association of America. 

Num ápice, tornou-se num clássico elevado a hino universal aberto às múltiplas gradações do amor: desde as preces ao Pai Criador, até ao SOS lançado aos nossos semelhantes, numa base de confiança na vida. Apesar da elasticidade do texto, tem subjacente o amor eterno e inquebrantável que, até na situação limite, permanece. Paira ainda a subtileza de também poder provir de um Deus, que se oferece aos seus filhos humanos: «just stand now / Oh, stand, stand by me / When all of your friends have gone». 

A letra poética de King, Leiber e Stoller(1) inspirou-se no Salmo 46, enquanto o arranjo instrumental beneficiou dos contributos da dupla virtuosa da época – Jerry Leiber e Mike Stoller.  

O início da música segue a progressão harmónica típica dos soul, mas a novidade está no facto de o arranque ser instrumental lançado pelo baixo, depois complementado por uma percussão suave, até emergir a voz poderosa de um tenor. A sequência tornou-se icónica e a alteração logo baptizada de ‘Stand By Me changes’. 

 

Como afrodescendente que iniciara a carreira nos coros da Igreja, King cunhou-a com a tonalidade dos gospel e entoou-a com paixão, dando sentido a cada palavra, qual salmo do século XX.  Pela letra também perpassa o clamor intenso e dorido com que os escravos norte-americanos elevaram ao céu a sua oração musical. Neles, não se duvida que assim rezaram a dobrar.

Anos mais tarde, com a intencionalidade da música de intervenção apostada em ‘playing for change’, John Lennon transformou-a num toque a rebate capaz de convocar a gente nova do seu tempo, para serem protagonistas das mudanças por que a sua geração ansiava. Claro que se tratava de um luxo dos países democráticos, onde a liberdade de cada um dizer e reivindicar o que bem entendesse era dada por garantida. Nesses fervilhantes anos 60, a própria batida do jazz e da música pop galgava fronteiras, dando noção de grupo à geração estudantil de latitudes muito distantes. Ao vibrarem ao som dos mesmos refrãos, os jovens curtiam o sentido de pertença que os hits musicais da altura tinham acordado e ateado entre eles como fogo na pradaria.  

Seguiram-se as interpretações à desgarrada da ária do norte-americano, sumamente internacionais, juntando cantores de diferentes continentes e também proveniências, apenas unidos sob o mesmo mote, que clama por companhia. Mais certeiro e intemporal era difícil.    

Curiosamente, os anos passaram e a raiz gospel voltou com novo fôlego, evoluindo-se para as interpretações ‘à capela’, 100% sustentadas no calor da voz humana. Uma das melhores é interpretada pela banda inglesa Buzztones, nascida em 2011, a partir de 16 rapazes talentosos, que ensaiavam em pubs. Os vozeirões do grupo (normalmente, 10 em palco) fazem alguma justiça ao timbre cristalino dos escravos, que rezavam chorando e cantando. Naturalmente, nos londrinos não se sente a dor misturada de esperança que tinge os gospel, ressaltando antes o gozo de um hobby saboreado em equipa. Mas, à sua maneira, corporizam igualmente o brado que transpira de «Fica comigo /Permanece ao meu lado»: 

;

Stand by me – implorado com fervor ou já reconhecido com entusiasmo – resulta numa profecia que se vai auto-cumprindo, à medida que o seu rastilho artístico ecoa por novas geografias, comprovando a universalidade de um pedido crucial do ser humano, sedento de amor, de amizade, de boa companhia. Percebe-se por que saltou tão facilmente do Antigo Testamento para o mundo rico do pós-guerra, continuando a reinventar-se no terceiro milénio.   

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

_____________________

(1) Letra de King, Leiber e Stoller:

«When the night has come
And the land is dark
And the moon is the only light we'll see
No I won't be afraid, oh I won't be afraid
Just as long as you stand, stand by me

So darlin', darlin', stand by me
Oh stand by me
Oh stand
Stand by me, stand by me

If the sky that we look upon
Should tumble and fall
Or the mountain should crumble to the sea
I won't cry, I won't cry, no I won't shed a tear
Just as long as you stand, stand by me

And darlin', darlin'
Stand by me, oh stand by me
Whoa, stand now
Stand by me, stand by me

Darlin', darlin', stand by me
Oh, stand by me
Oh, stand now
Stand by me, stand by me
Whenever you're in trouble, won't you stand by me?
Oh, stand by me
Whoa, just stand now
Oh, stand, stand by me

When all of your friends have gone.»

26 outubro 2021

Poemas dos dias que correm

Crise Lamentável

Gostava
tanto de mexer na vida,
De ser quem sou – mas de poder tocar-lhe ...
E não há forma: cada vez mais perdida
Mas a destreza de saber pegar-lhe.

Viver em casa como toda a gente,
Não Ter juízo nos meus livros – mas
Chegar ao fim do mês com as
Despesas pagas religiosamente.

Não Ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas –
À minha torre ebúrnea abrir janelas
Numa palavra, e não fazer mais cenas.

Ter força um dia para quebrar as roscas
Desta engrenagem que emperrando vai.
– Não mandar telegramas ao meu pai
– Não andar por Paris, como ando , às moscas.

Levantar-me e sair – não precisar
De hora e meia antes de vir prá rua.
Pôr termo a isto de viver na lua,
– perder a frousse das correntes de ar.

Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa de amigos que frequento –
Não me embrenhar por histórias duvidosas
Que em fantasia apenas argumento.

Que tudo em mim é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete:
E sempre o oiro em chumbo se derrete
Por meu azar ou minha zoina suada ...

Mário de Sá-Carneiro

24 outubro 2021

XXX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Mc 10,46-52

Naquele tempo,
quando Jesus ia a sair de Jericó
com os discípulos e uma grande multidão,
estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu, a pedir esmola à beira do caminho.
Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava, começou a gritar:
«Jesus, Filho de David, tem piedade de mim». Muitos repreendiam-no para que se calasse. Mas ele gritava cada vez mais:
«Filho de David, tem piedade de mim».
Jesus parou e disse: «Chamai-O».
Chamaram então o cego e disseram-lhe: «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te».
O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus. Jesus perguntou-lhe:
«Que queres que Eu te faça?» O cego respondeu-Lhe: «Mestre, que eu veja».
Jesus disse-lhe:
«Vai: a tua fé te salvou». Logo ele recuperou a vista
e seguiu Jesus pelo caminho.

22 outubro 2021

Do cancro nas crianças com que me cruzo

 Afazeres do meu voluntariado internacional invadiram a minha agenda. Organizado como sou (ou como tento ser) atribuí cores aos meus compromissos - beatério, doutoramento, profissional, voluntariado internacional e nacional, reuniões via zoom (ou plataforma semelhante). Até há um ano a minha agenda era um tutti-frutti de cores. De Outubro para cá foi-se acentuando o azul claro (voluntariado internacional) e o rosa (reuniões via zoom que registo porque requerem sossego e banda larga...). A minha agenda está quase bi-cromática, o que me tem impedido de outras actividades.

Há alguns meses cruzei-me pelo telefone com um rapaz (40 anos, talvez) que tem um filho de 11 com cancro. A situação era complicada mas registou melhorias. Fui conversando com ele via telefone. Um dia, pelo fim de Setembro, telefonou-me: o rapaz tinha feito análises e não havia nada a fazer. Fui beber uma cerveja com ele sem o conhecer fisicamente e sem saber o que se diz a um homem que foi informado que não há nada a fazer pelo filho, que ainda vai à escola com alguma regularidade.

Ontem telefonaram-me da Acreditar. Uma rapariga de 11 anos, também diagnosticada com cancro, tem um futuro por concluir, já que, dizem à mãe, não há nada a fazer. A mãe quer levar a criança para Paris e perguntam-me se tenho conhecimentos lá. Fiz o que devia e podia e disse a quem me ligou: se a mãe da criança quiser falar comigo dê-lhe o meu contacto.

O que se diz a este pai e a esta mãe? O que respondo ou sugiro a um homem que, à minha frente, bebe uma cerveja nervosa e só murmura isto é muito complicado, isto é muito complicado. Abraço-o à despedida e ele agradece, porque sabe que comigo pode falar, enquanto sente que os outros não são parceiros elegíveis. Eu sou, porque me aconteceu o que aconteceu. E ele pede desculpa por me obrigar a reviver coisas.

E de que forma é que um médico diz a um pai / mãe que nada há a fazer pelo seu filho / filha? Que sabe desta "psicologia" uma médica com 25 anos, acabada de formar e a trabalhar na oncologia pediátrica?

Nos últimos dois anos, nem isso, cruzei-me com vários casos de pessoas que eu conhecia (ou de pessoas que conheciam pessoas que eu conhecia) que se confrontavam com crianças com cancro. Foram mais os casos que conheci estes dois anos do que aqueles que conheci em 20. Não sei o que isto significa. Talvez nada - apenas o destino.

Que tudo corra bem para estes Pais, o que quer que isso seja para eles. 

JdB

20 outubro 2021

Música para o dia de ontem *

 

* em homenagem a Vinicius de Moraes, que fez ontem anos. 

19 outubro 2021

Orações dos dias que correm

 

Rezar a vida por inteiro


Pe. Tolentino, 18.X.2021 

17 outubro 2021

XXIX Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mc 10,35-45

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Tiago e João, filhos de Zebedeu,
aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
«Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir».
Jesus respondeu-lhes:
«Que quereis que vos faça?»
Eles responderam:
«Concede-nos que, na tua glória,
nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda».
Disse-lhes Jesus:
«Não sabeis o que pedis.
Podeis beber o cálice que Eu vou beber
e receber o baptismo com que Eu vou ser baptizado?»
Eles responderam-Lhe: «Podemos».
Então Jesus disse-lhes:
«Bebereis o cálice que Eu vou beber
e sereis baptizados com o baptismo
com que Eu vou ser baptizado.
Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda
não Me pertence a Mim concedê-lo;
é para aqueles a quem está reservado».
Os outros dez, ouvindo isto,
começaram a indignar-se contra Tiago e João.
Jesus chamou-os e disse-lhes:
«Sabeis que os que são considerados como chefes das nações
exercem domínio sobre elas
e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder.
Não deve ser assim entre vós:
Quem entre vós quiser tornar-se grande,
será vosso servo,
e quem quiser entre vós ser o primeiro,
será escravo de todos;
porque o Filho do homem não veio para ser servido,
mas para servir
e dar a vida pela redenção de todos».

15 outubro 2021

Dos olhos cansados ou não *

Dos que têm uma visão pessimista da vida e dos que têm uma visão optimista da mesma vida não os separa apenas a forma de olhar, o entendimento que fazem dos mesmos factos, o modo como vislumbram o futuro e tiram, do que vêem, conclusões, ideias, angústias ou alívios. Não há garantia, ainda assim, que ambos, colocados lado a lado no mesmo ponto geográfico e no mesmo minuto do mesmo dia, vejam as mesmas nuvens no ar, o mesmo vento quente que sopra de leste, os mesmos indícios de tempestade. Se a realidade não existe, e é apenas construída pela nossa mente, então o pessimista pode ver nuvens onde há céu limpo e o optimista pode ver exactamente o oposto: céu limpo num horizonte fortemente nublado. 

O raciocínio acima está incompleto. Se é certo que defronte de uma aparente mesma realidade (e sublinhe-se a expressão 'aparente mesma'), cada um deles vê factos diferentes ou, de acordo com outras teorias, a exacta mesma realidade é interpretada de forma diferente, tem de haver algo mais que os diferencie - ou até que os assemelhe - para que o raciocínio que suporta este aspecto da vida não seja exageradamente maniqueísta: ou isto, ou aquilo. Perante C, ou A ou B, sendo que ambos são mutuamente exclusivos.

Na diferença de forma como ambos observam a linha do horizonte e vêem (no sentido mais lato do termo) nuvens, vento, humidade, folhas em torvelinho arrastadas pelo chão, há algo em que o pessimista e o optimista são ironicamente iguais: a fulgurância com que interpretam os sinais e os traduzem para os interlocutores de momento, mesmo que em solilóquio. Isto é, há uma nitidez muito clara, de certo modo impressionante, na interpretação do agitar das ramagens, na forma dos nimbos ou dos estratos, na visão do higrómetro. Ambos vêem tudo com uma clareza própria muito grande - quase irrefutável - mesmo que ambos observem uma realidade comum, que talvez seja totalmente diversa.

***

Cruzei-me com este trecho (de um texto mais vasto) nas minhas investigações erráticas para coisas da faculdade. Saio de um período de trabalho excepcionalmente intenso e que deixa marcas nas horas de sono e na diversidade das actividades. Menos para as primeiras, quase nada para as segundas. Ao ler este texto quis acrescentar-lhe um outro aspecto: o cansaço. Em que medida é que o estado físico ou psíquico influi na nossa capacidade de olhar o mundo?

Como é óbvio, há uma resposta que, por ser o cliché que advém do senso comum, não me interessa: a de que o cansaço embota a nossa percepção. Quero pensar exactamente o oposto - até que ponto é que o cansaço é uma lupa, um microscópio ou, na visão mais comezinha das coisas, uns óculos graduados com que vemos a realidade se formos pessimistas? E, inversamente, até que ponto é que um excelente estado de folga do corpo e da mente acrescenta o mesmo à visão de um optimista?

Gostaria um dia de elaborar sobre esta teoria: para um pessimista, o cansaço aguça o discernimento da coisas. Para um optimista é exactamente o oposto. Um dá-se bem com a fadiga, o outro com o descanso. Porquê? Isso ainda não sei.... Isto, claro, se a teoria tiver alguma validade...

JdB 

* publicado originalmente a 29 de Julho de 2014

14 outubro 2021

Do rugby como análise de carácter

 Vejo um jogo de rugby no qual os jogadores têm menos de 18 anos. A dado momento, referindo-se a alguém em particular, dizem-me: está a proteger o colega de equipa; toda a vida foi isto, a proteger os outros... O pensamento gera uma ideia interessante: a de que a posição de um jogador numa equipa desportiva é determinada pelo seu carácter, não pelas suas características físicas ou técnicas. 

Num conjunto alargado de desportos que conheço, o rugby tem uma característica muito particular: há uma variedade muito grande de compleições na equipa; é normal uma diferença de 20 kg de peso e 20 cm de altura entre jogadores de topo numa mesma equipa. Isto não acontece no futebol, no andebol, no voleibol ou noutros desportos de equipa. Imaginar que as posições do rugby são influenciadas pelo feitio dos jogadores é afirmar que um avançado é avançado porque é um homem que gosta de embates e que um abertura é um abertura porque gosta de distribuir jogo na sua relação com o próximo. 

Sabemos bem que não é assim, porque um jogador de 90 kg não será avançado, mesmo que tenha um feitio mais atreito ao embate físico. E um jogador de 116 kg nunca será um arrière, mesmo que seja muito bom no jogo de mãos no seu contacto social. Será que este raciocínio poderia ser aplicado ao futebol? Que característica de feitio é que Cristiano Ronaldo tem para ser avançado? E o Peter Schmeichel, qual o traço de carácter que o levava a ser guarda-redes? 

O rugby tem, obviamente, características únicas: como jogo de equipa, como jogo de contacto, como metáfora para a conquista de terreno obedecendo a regras bem definidas. É, como já foi referido acima, um desporto onde a diferença de tamanhos é fundamental. A ideia de que se ocupa uma determinada posição porque se tem um determinado feitio é uma ideia arrojada, que cai pela base por inúmeros motivos. E no entanto, dizem-me, os capitães de equipas / selecções muito relevantes no panorama internacional ocupam o lugar daquele rapaz de quem se diz que passou a vida a proteger os outros, o que não deixa de ser curioso.

Ocupa-se um lugar porque se é assim, ou tornamo-nos assim porque ocupamos um determinado lugar? Talvez nem uma coisa nem outra, mas não deixa de ser curioso.

JdB 

13 outubro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

NAPOLEÃO SANTO?... SÓ NA CABEÇA DO OPORTUNISTA-MOR

Por motivos que a psicologia explicará, o perfil dos oportunistas tende para o repetitivo, sem absorver as diferenças expectáveis face a conjunturas tão distintas como a época, a geografia, a raça, o temperamento e nível cultural dos protagonistas, etc. Mas não, o padrão repete-se, geração após geração, em qualquer ponto do globo. Num retrato robot, sobressai a megalomania, a astúcia, o óptimo conhecimento da psicologia humana, a capacidade de manipulação usada sem escrúpulos, um supremo descaramento (propriamente, “lata”), amoralidade num extremo desinteresse pela verdade desaguando na mitomania, boa dose de imaginação e uma versatilidade camaleónica apta a operar transfigurações de 180º C em acelerado. Obviamente desprovidos de “coluna vertebral”, são avessos à lealdade, traindo ad nauseam. Têm por horizonte o instante presente, pelo que sobrevalorizam o sucesso imediato quais campeões da sobrevivência. Serão das melhores exemplificações dos “filhos das trevas”, na acepção evangélica, focada na sua habilidade ardilosa e nas aptidões manipulativas.

A maleabilidade sem escrúpulos deste perfil psicológico desponta, com especial exuberância, nas fases conturbadas da história e nos locais (países, etc.) onde as instituições são débeis, portanto presas fáceis dos calculistas, com jeito para colocar tudo ao seu serviço, funcionando acima e à margem de qualquer autoridade (necessariamente fraca).  

Por isso, a Revolução Bolchevique foi fértil na erupção destes parasitas da sociedade, que pulularam amiúde na própria elite comunista revolucionária. O mesmo acontecera 100 anos antes, durante e por causa da Revolução Francesa. Precisamente, no coração da Cidade das Luzes, viveu e prosperou um campeão do oportunismo – Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838). De raízes aristocratas, começou por ser clérigo mas rapidamente abandonou a fé cristã e tornou-se num eficientíssimo diplomata e ministro dos negócios estrangeiros, disposto a e capaz de todas as guinadas. Sempre se moveu bem nos meandros do poder, tendo sido agraciado com os títulos de Príncipe de Benevento e, mais tarde, de Príncipe de Talleyrand. O seu longo currículo, num contínuo de lugares de poder, ilustra o êxito alcançado em vida e imortalizado em inúmeras telas, onde a sua presença pontifica. 

As mil poses do cortesão de todas as modas e regimes.

Os mil ofícios e títulos do campeão do oportunismo, que surfou por entre os diferentes regimes em que viveu.

Por comparação, parecem poucas as caricaturas de época, que denunciam o seu óbvio oportunismo. 

«O coxo (Talleyrand) a guiar o cego» (The lame leading the blind) – caricatura de 1832,
do inglês John Doyle, a parodiar com a parceria entre Talleyrand e Lord Palmerston.

Com Bonaparte, Talleyrand levou o servilismo indispensável para se manter à tona até novos patamares, sendo incumbido da tarefa de fabricar a canonização do Imperador. A aventura rocambolesca está sintetizada neste artigo escrito em estilo cinematográfico, publicado a 8 de Agosto e gentilmente cedido pelo autor. 

«A festa de S. Napoleão

No próximo dia 15 de Agosto, como todos os anos, celebra-se a grande solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu.

Como todos os anos? Bem, houve um tempo em que o Imperador dos franceses, Napoleão Bonaparte, substituiu Nossa Senhora por S. Napoleão. Que a Igreja nunca tivesse canonizado um Napoleão não era problema, porque entre as multidões de centuriões romanos que se converteram e estão no Céu, possivelmente algum se chamava Napoleão e, mais importante que um Napoleão no Céu era o Napoleão omnipotente que governava a França e queria dominar o mundo. Parecia-lhe que quem mandava tanto neste mundo podia também mandar no outro mundo e a Igreja cabia sob a autoridade suprema do imperador.

Napoleão nomeava bispos em França, dispunha dos padres e dos conventos, substituía a seu bel-prazer as celebrações católicas por festas de S. Napoleão, mas Deus ainda não era seu súbdito e o Papa, seu representante na Terra, ainda lhe escapava. O magno desafio de subjugar a Igreja foi confiado a um profissional de invulgar habilidade, chamado Talleyrand.

A trajectória deste especialista é desconcertante. Como, apesar de ser nobre, não podia fazer carreira militar, porque tinha uma perna mais curta que a outra, decidiu em alternativa ser bispo. Naquela altura, em que os reis mandavam tanto, o plano era exequível e, de facto, o Rei nomeou-o. Pouco depois, o Rei reúne os Estados Gerais e Talleyrand entra na política ao lado do Rei. Como este estava falido, Talleyrand propõe nacionalizar os bens da Igreja. Com pouco mais de dois anos como bispo, a função deixa de lhe interessar e demite-se. Entretanto, abandona o Rei, refugia-se momentaneamente no estrangeiro durante a revolução e regressa como Ministro dos Negócios Estrangeiros do Directório. Entretanto, começa a conspirar e organiza o golpe de Estado que acaba com o Directório e prepara o consulado de Napoleão, que mantém Talleyrand como Ministro dos Negócios Estrangeiros e seu principal conselheiro. É nesta função que concebe o seu plano para subjugar a Igreja.

O primeiro passo consistia em raptar o Papa Pio VI, escondê-lo em França e anunciar que tinha morrido. O segundo passo seria dar tempo para que um novo Papa fosse eleito e, depois, apresentar Pio VI afinal vivo. Confrontada com dois Papas em exercício, a Igreja dissolver-se-ia em lutas internas, Paris substituía o Vaticano e o Imperador substituía o Papa.

A primeira parte da operação, invadir Roma e raptar o Papa, foi fácil. Levá-lo para França correu menos bem porque as multidões desobedeciam ao Imperador e ajoelhavam-se à passagem do prisioneiro. Mas a parte do plano que correu pior foi que Pio VI não sobreviveu aos maus tratos e morreu antes de a Igreja ter escolhido o sucessor. Pior ainda, para marcar a continuidade, o Pontífice seguinte escolheu o nome de Pio VII.

Preocupado com a situação da igreja em França, Pio VII cedeu em tudo o que não era essencial. Aceitou o confisco dos bens da Igreja e reconheceu o Governo francês em troca de alguma liberdade para a Igreja. Só não pôde aceitar o divórcio de Napoleão, nem o bloqueio económico ao Reino Unido. Como as cedências não bastavam, o exército francês volta a invadir Roma e Pio VII é levado prisioneiro para França. Sujeitam-no a enormes pressões mas resiste e, quando a estrela de Napoleão começa a apagar-se, o Imperador desiste do plano e consente que o Papa regresse a Roma.

Talleyrand —que mudava de amantes a um ritmo que escandalizava o próprio Napoleão, que também não era fiel à sua mulher— depois de ter apoiado o Imperador, começa a conspirar contra ele. Cai Napoleão e Talleyrand é eleito para chefiar o Governo provisório e junta-se ao novo Rei Luís XVIII, de quem depois se afastou. Continuou assim a manter o poder e a trair, um a um, os seguintes que o nomearam.

No dia da morte, Talleyrand assina uma retractação por tudo o que tinha feito contra a Igreja e recebe a Unção dos Enfermos. E S. Napoleão? A Igreja ainda não canonizou nenhum Napoleão, mas o ex-Imperador Napoleão Bonaparte quis morrer «no seio da Igreja Apostólica e Romana». Pouco antes de morrer confessou-se ao Pe. Vignali, enviado do Papa; fez há poucos dias 200 anos.

E no próximo dia 15 de Agosto, em todo o mundo, também em França, celebra-se a Assunção de Nossa Senhora ao Céu.

Talleyrand numa caricatura de 1815 como o homem das seis faces:
«Viva o Rei!», «Viva o Imperador!», «Viva o 1º Cônsul!», «Viva a Liberdade!»,
«Viva os notáveis!», «Viva!...».
Numa mão, o báculo de bispo, na outra os símbolos da revolução;
a perna esquerda mais curta que a direita

José Maria C.S. André

Publicado em media anglo-portugueses, a 8 deAgosto de 2021

É curioso que o sucesso destas figuras esteja marcado pelo paradoxo, o que lhe encurta a longevidade, tal o grau de desfasamento da realidade. É estranho que gente tão talentosa comece logo por desbaratar e desvalorizar os teimosos factos, que tarde ou cedo irrompem como vulcões indomáveis. É irónico que pessoas tão vaidosas aceitem passar por lacaios de líderes, frequentemente, bem menos talentosos, mas apenas com mais força bruta para ascender aos pináculos do poder. Eça, Shakespeare e tantos outros reservaram-lhes inúmeras páginas na sua produção literária, sobretudo nas comédias, aproveitando o toque burlesco que invade as existências ziguezagueantes destes oportunistas com nome nos canhenhos de história. Mas felizmente que a realidade, a seu tempo, supera todas as artimanhas e recoloca tudo num lugar sábio, onde cada um encontra o lugar que é ‘seu’.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

12 outubro 2021

Casas * e poemas dos dias que correm

 


A Casa
É um chalé com alpendre,
forrado de hera.
Na sala,
tem uma gravura de Natal com neve.
Não tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem.
Mas afirmo que tem janelas,
claridade de lâmpada atravessando o vidro,
um noivo que ronda a casa
— esta que parece sombria —
e uma noiva lá dentro que sou eu.
É uma casa de esquina, indestrutível.
Moro nela quando lembro,
quando quero acendo o fogo,
as torneiras jorram,
eu fico esperando o noivo, na minha casa aquecida.
Não fica em bairro esta casa
infensa à demolição.
Fica num modo tristonho de certos entardeceres,
quando o que um corpo deseja é outro corpo pra escavar.
Uma ideia de exílio e túnel.

Adélia Prado, in 'O Coração Disparado'





11 outubro 2021

Música e poema para o dia de hoje

 


À Minha Filha

Vejo em ti repetida,
A anos de distância,
A minha própria vida,
A minha própria infância.

É tal a semelhança,
É tal a identidade,
Que é só em ti, criança,
Que entendo a eternidade.

Todo o meu ser se exala,
Se reproduz no teu:
É minha a tua fala,
Quem vive em ti, sou eu.

Sorris como eu sorria,
Cismas do meu cismar,
O teu olhar copia,
Espelha o meu olhar.

És como a emanação,
Como o prolongamento,
Quer do meu coração,
Quer do meu pensamento.

Encarnas de tal modo
Minha alma fugitiva,
Que eu não morri de todo
Enquanto sejas viva!

Por que mistério imenso
Se fez a transmissão
De quanto sinto e penso
Para esse coração?

Foi como se eu andasse
Noutra alma a semear
Meu peito, minha face,
Meu riso, meu olhar...

Meus íntimos desejos,
Meus sonhos mais doirados,
Florindo com meus beijos
Os campos semeados.

Bendita é a colheita,
Deus confiou em nós...
Colhi-te, flor perfeita,
Eco da minha voz!

Foi o amor, foi o amor,
Ó filha idolatrada,
O sopro criador
Que te tirou do nada!

Deus bendito e louvado,
Ó filha estremecida,
Por te cá ter mandado
A reviver-me a vida!

Alberto de Oliveira, in "Lar"

10 outubro 2021

XXVIII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mc 10,17-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
ia Jesus pôr-Se a caminho,
quando um homem se aproximou correndo,
ajoelhou diante d'Ele e Lhe perguntou:
«Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?»
Jesus respondeu:
«Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
Tu sabes os mandamentos:
'Não mates; não cometas adultério;
não roubes; não levantes falso testemunho;
não cometas fraudes; honra pai e mãe'».
O homem disse a Jesus:
«Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude».
Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu:
«Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu.
Depois, vem e segue-Me».
Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante
e retirou-se pesaroso,
porque era muito rico.
Então Jesus, olhando à volta, disse aos discípulos:
«Como será difícil para os que têm riquezas
entrar no reino de Deus!»
Os discípulos ficaram admirados com estas palavras.
Mas Jesus afirmou-lhes de novo:
«Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!
É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no reino de Deus».
Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros:
«Quem pode então salvar-se?»
Fitando neles os olhos, Jesus respondeu:
«Aos homens é impossível, mas não a Deus,
porque a Deus tudo é possível».
Pedro começou a dizer-Lhe:
«Vê como nós deixámos tudo para Te seguir».
Jesus respondeu:
«Em verdade vos digo:
Todo aquele que tenha deixado casa,
irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras,
por minha causa e por causa do Evangelho,
receberá cem vezes mais, já neste mundo,
em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras,
juntamente com perseguições,
e, no mundo futuro, a vida eterna».

08 outubro 2021

Abusos em França. Números que não batem certo *

 Foi divulgado esta semana um relatório sobre abusos sexuais praticados em ambiente eclesial, em França.

O relatório fez manchetes em todo o mundo. Dias depois de ter sido revelado que entre 1950 e 2020 houve cerca de 3.000 padres ou religiosos que abusaram sexualmente de menores em França, na terça-feira soube-se que terá havido até 216 mil vítimas, ou mais, uma vez que o número sobe para os 330 mil se forem contabilizados os leigos que abusaram de menores em contextos de igreja.

São números verdadeiramente chocantes. Aliás, ainda que fosse só uma vítima e um abusador, não deixaria de ser verdadeiramente chocante. Contudo, penso que os dados apresentados merecem ser questionados.

Estimativas, não factos

Em primeiro lugar é preciso que fique muito claro que não estamos a falar de números concretos, mas sim de estimativas. E mais, que as estimativas se baseiam em três fontes: os casos revelados por vítimas que fizeram queixa; os casos sobre os quais foram encontradas referências em documentação da Igreja e, por fim, um inquérito levado a cabo junto da população maior de idade em França.

E qual é a distribuição? 2.700 vítimas tomaram a iniciativa de denunciar os seus casos e 4.800 vítimas referidas nos registos diocesanos. Isto significa que os restantes 209.500 casos da estimativa foram calculados com base no tal inquérito feito à população.

Convém recordar que estamos a falar de casos de abuso sexual de menores, e não de uma sondagem eleitoral, ou um inquérito de satisfação com um serviço. Eu compreendo que apesar dos apelos, nem todas as vítimas têm a coragem de falar dos seus casos, e compreendo ainda que nem todos os casos que tenham de facto existido estejam registados nos arquivos diocesanos. Mas uma diferença deste tamanho?

Quais foram as perguntas feitas no inquérito? Houve alguma triagem das respostas para se poder averiguar da plausibilidade das respostas? Confesso que não li as 2.500 páginas do relatório à procura da resposta, até porque o meu francês não é suficientemente bom para poder compreender bem os conteúdos técnicos, se é que lá estão descritos.

A surpresa com os números só aumenta se tivermos em conta o número de padres abusadores, segundo o relatório. Mesmo que se aponte para o máximo estimado de 3.200 ao longo dos 70 anos, isso representa cerca de 3% do universo total de 115 mil. Até aqui tudo bem – salvo seja – pois bate certo com as estatísticas encontradas noutros países e está mesmo abaixo de alguns.

A questão é que, juntando os dois números, somos forçados a concluir que cada padre ou religioso abusador teve, em média, mais de 67 vítimas. É um número absolutamente incrível, no sentido literal da palavra, de que não dá para acreditar.

Tenhamos em conta que segundo o relatório John Jay, sobre os abusos clericais nos Estados Unidos, que foi levado a cabo por uma instituição altamente credível, naquele país a maioria dos padres tinha abusado apenas de uma pessoa. Houve casos de abusos em série, mas são em número reduzido.

Onde está a discrepância? Claro que pode estar do lado dos padres. Se a estimativa do número de padres abusadores estiver (muito) aquém, então o número de vítimas já faz mais sentido. Mas se o número de padres está mais ou menos correcto, então estamos perante uma clara inflação do número de vítimas.

Credibilidade

A prática comum nos países onde a Igreja está mais avançada em lidar com este problema é de analisar cada acusação e tentar perceber se é, ou não, credível. Não é por haver acusações falsas que devemos desvalorizar todas as denúncias, mas por uma questão de justiça para com os acusados e as verdadeiras vítimas, devemos avaliar bem e distinguir entre o que é verdade, invenção ou confusão. Incrivelmente, o relatório chega a sugerir que a Igreja pague indemnizações sem que haja processo judicial. Mas isso faz algum sentido como regra?

Há mais. Michael Cook, no Mercatornet, realça uma série de confusões com datas – parece que ao contrário do que dizem, há dados que remontam à década de 40 – e aos dados sobre outras instituições, como as escolas, em que só foram tidas em conta escolas públicas sem internato.

Isto interessa? Claro que sim. Uma coisa é haver uma instituição em que existem alguns elementos que se comportam mal e outros que, motivados pela compreensível – mas inaceitável – vontade de proteger a reputação, abafam os casos; outra é haver uma organização que está irremediavelmente corrupta. Estes números, e a forma como foram reproduzidos na imprensa e nas redes sociais de todo o mundo, reforçam a ideia de uma instituição que mais não passa de uma rede de abusadores. O resultado é que já hoje vimos Macron a exigir explicações ao episcopado francês sobre o segredo da confissão e o porta-voz do Governo a insistir que “nada é mais forte que as leis da República”, em resposta ao comentário do presidente da Conferência Episcopal, que terá dito que no segredo da confissão não se pode mexer.

A questão dos abusos sexuais na Igreja é muito, muito grave. Os primeiros interessados em limpar a casa devemos ser nós, católicos. Os relatórios e estudos aprofundados sobre as causas e os erros cometidos pela hierarquia são bem-vindos, sempre, mesmo que doam muito, mas tenho sérias dúvidas de que este relatório sirva para muito mais do que para bater na instituição e perpetuar números que parecem ter muito pouco de científicos.

Esperemos que o tempo e olhares mais rigorosos e independentes aos números ajudem a revelar a verdade, pois essa sim nos liberta e é até mais forte que as leis da República de Macron.

Filipe d'Avillez

-----------

* retirado daqui

07 outubro 2021

Poemas dos dias que correm

Céu do Estoril, Setembro de 2021 (visto por um telemóvel) 

 Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

Vinicius de Moraes

05 outubro 2021

Monarquia

A vida do indivíduo quer-se uma monarquia. Em determinado momento herda a liderança singular de si mesmo e, daí para a frente, até findar ou abdicar do posto, mais ou menos voluntariamente, é rei do seu umbigo e de toda a vastidão corpórea que a sorte lhe destinou, bem como de todas as riquezas nela encerradas e de todo o céu ao alcance de uma braçada larga. Nascido sempre rei de si mesmo, o indivíduo passa pelo limbo que é digerir todas as memórias de infante, sujeito à sensibilidade que os acasos da educação lhe reservarem e ao filtro imprevisível do seu intelecto particular que, em metáfora, poderá ser comparado a uma sopa de novidades feita segundo a receita da fome. Chegada a altura de tomar as rédeas da existência, de tomar em mãos o mais nobre dos serviços, ao contrário do que a história poderia fazer prever, não se assinalam datas, nem com pompa nem com circunstância, não se soltam fogos nem se domam elefantes, não desfilam exércitos nem se ouvem vivas, não se recebe nenhuma coroa inútil e difícil de limpar. Há quem tenha o privilégio de um abraço, que no fundo é o melhor que se pode pedir, e depois, bem, depois é o que deus quiser.



ZdT

* publicado originalmente em 5 de Outubro de 2010

03 outubro 2021

Das actrizes, dos beijos e dos duplos

Em Junho de 2015 escrevi neste estabelecimento o texto abaixo. 

Leio algures que o primeiro beijo de Elizabeth Taylor foi como actriz. Vou presumir que não foi o primeiro primeiro beijo, no sentido de duas bocas que se juntam e permanecem juntas, como o primeiro beijo que se dá a uma namoradinha de muita infância nas traseiras de um prédio com o barulho dos comboios ao fundo, e cuja memória perdura porque sim. Falo do primeiro beijo carregado de sensualidade e, quiçá, de desejo. Do primeiro beijo carnal, quase pecaminoso, quase convidativo, quase desafiante - todo ele perturbador.

Imaginemos que Elizabeth Taylor beijou o actor com quem contracenou - Mr. Smith - ao fazer de enfermeira num hospital para loucos. Ela, chamada Christine Ford, apaixona-se pelo médico - John Smith - e beijam-se apaixonadamente no canto de uma enfermaria, enquanto um esquizofrénico, um deficiente mental, um psicopata preso e um toxicodependente com tendências depressivas deambulam pelos corredores de olhos esbugalhados, batas de doente e mãos agitando-se freneticamente.

A experiência do primeiro beijo não pertence, então, a Elizabeth Taylor, mas a Christine Ford. O primeiro beijo  - o da carne, do desejo, da volúpia, todo ele carregado de uma sexualidade da época - não é dela, Elizabeth, que foi Taylor mas muito Burton. Foi ela que o deu, mas o beijo é de Christine, que para o efeito é uma enfermeira, mas podia ser uma advogada chamada Pamela, uma pedinte chamada Mary, uma prostituta chamada Antoinette ou uma condessa russa chamada Natalia. O beijo não é dela, mas foi ela que o deu. A boca é dela, mas está vinculada a um contrato, a um guião, a uma direcção de actores que manda beijar mais assim e menos assim, ao trabalho de encarnar uma enfermeira (ou uma condessa russa) de quem vestiu a pele durante semanas.

De quem é o desejo? Que memórias guardamos de uma primeira experiência forte em que não somos nós que lá estamos, mas o personagem para o qual fomos contratados? E para que serve pensar nisso?

***

Contam-me que um rapaz filho de gente que conheço não quis continuar o namoro porque ela era - ou queria ser - actriz. Não sei exactamente os motivos, mas posso adivinhar alguns. Ontem, ao cruzar-me fugazmente e a uma hora tardia com uma séria que passa na SIC (e que ostenta um círculo encarnado no canto superior direito do ecrã) veio-me à memória este texto. A série a que me refiro gira à volta de um clube nocturno de prostituição de classe, tocando também (presumo eu, pelos 10 minutos que vi) em problemas de máfias de leste e tráfico de raparigas. 

Vamos supor, para simplificação do argumento, que a minha namorada é actriz, entra nesta série num papel de prostituta que se chama Cláudia (também podia ser Maria, ou Paula, ou Natália). Enquanto actriz já tinha entrado noutras séries mais juvenis, e já tinha beijado outros rapazes. Quando chega a casa dá-me um beijo apaixonado e diz-me que quem beija na televisão é a actriz, não a minha namorada - o beijo que ela dá é um beijo profissional, não um beijo afectivo. Num certo sentido segue a linha do beijo de Elizabeth Taylor. Então, corroído de ciúmes, falo-lhe nas cenas eróticas, ousadas, sensuais, e ela responde-me, toda cheia de calma e paciência: viste o meu corpo? Viste-me nua? Viste o cliente a tocar-me? Não percebes que é um duplo que faz aquilo? Eu estou ao lado, a assistir. É outra pessoa que faz aquilo em meu lugar...

A minha namorada é actriz, e numa das cenas beija um cliente com quem segue para um hotel. É ela que beija, pois eu identifico-a bem. Depois seguem para o quarto para uma noite tórrida de sexo; durante 10 minutos vejo corpos, mas não vejo caras. Há erotismo, toques, mãos sensuais e ávidas. A minha namorada diz-me que não é ela, que é a Solange, brasileira contratada para o efeito que se sente à vontade nessas cenas. Eu digo-lhe que acredito, mas que mesmo assim...

JdB

XXVII Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mc 10,2-16

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova
e perguntaram-Lhe:
«Pode um homem repudiar a sua mulher?»
Jesus disse-lhes:
«Que vos ordenou Moisés?»
Eles responderam:
«Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio,
para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes:
«Foi por causa da dureza do vosso coração
que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, 'Deus fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne'.
Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-n'O de novo
sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então:
«Quem repudiar a sua mulher e casar com outra,
comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro,
comete adultério».

Apresentaram a Jesus umas crianças
para que Ele lhes tocasse,
mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes:
«Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis:
dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo:
Quem não acolher o reino de Deus como uma criança,
não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las,
impondo a mão sobre elas.

Acerca de mim