31 agosto 2022

Vai um gin do Peter’s ?

 NO ANO DA MORTE DE FERNANDO PESSOA (I) 

Por mérito de um italiano ligado ao maior evento cultural da Europa – o «Meeting» de Rimini (lançado em 1980) – receberam destaque três poemas de Fernando Pessoa desconhecidos em Portugal, à parte de um par (mesmo!) de especialistas na obra pessoana(1). 

www.meetingrimini.org/edizioni/edizione-2022/

As três composições têm em comuns datarem do último ano de vida do poeta (1935), centrarem-se na figura de Cristo e serem pouco conhecidas do grande público. Neste “gin” segue o poema partilhado por mão amiga, participante na edição do Meeting de Rimini deste ano, que dedicou uma exposição ao poeta que mais se desdobrou em heterónimos:  

Cartaz da mostra dedicada a Pessoa e intitulada a partir da sua frase:  «Se voglio, voglio l’infinito».

 «O REI, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-n'O de espinhos
E por trono Lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares ansiosos e sozinhos.
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
Essas pálpebras mortas de Jesus.

O Rei fala, e um seu gesto tudo prende,
O som da sua voz tudo transmuda.
E a sua viva majestade esplende;

Meu Rei morto tem mais que majestade;
Diz-me a Verdade aquela boca muda;
E essas mãos presas dão-me a Liberdade

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Versão do poema sem título de F. Pessoa (1935) adoptada na tese de doutoramento de Carlos Pittella-Leite: “Pequenos infinitos em Pessoa: uma aventura filológico-literária pelos sonetos de Fernando Pessoa”.

É invulgar, mas interpelativo, as férias poderem ficar associadas a pedidos maiores como o do grande poeta português, que reclama pelo infinito, por uma infinita e eterna liberdade! Porque férias também são tempo e tempo não quadra com silly season

Maria Zarco 

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas) 
__________________

(1) Caso de Carlos Pittela-Leite, cujo tema do doutoramento foram os sonetos de Pessoa.  

30 agosto 2022

Da importância das palavras *

Um dia destes, na minha ronda de blogues, encontrei um pensamento. Alguém se questionava sobre o que o salvava do caos, sendo que a resposta reiterada era: a palavra. O sentido era este, se bem que o reproduza de forma obscenamente simplista. Não sei se poderei dizer o mesmo sem que se adivinhe uma presunção a que não quero atirar-me. Não obstante, estou em crer que a palavra escrita desempenhou uma grande importância nos momentos - e foram alguns - em que o caos se instalou dentro de mim com ideias de ficar. 

Porque escrevo - seja no blogue, nos textos académicos que se prendem com temas que me tocam, nas cartas que envio aos que me estão mais próximos, nas frases com que invado de forma maçadora a caixa de correio alheia? Porquê? Para ordenar a desordem, para organizar o caos, para alumiar um  buraco, para iluminar um caminho, para encontrar sentido para as coisas. Escrevo para mim próprio, sobretudo, mesmo que disfarce a tontaria - ou uma aparente vaidade - dirigindo-me aos outros. Estou tão certo disso como do meu número de contribuinte que fixei há anos.

(Também o faço por divertimento, mas porque não poderá ser isso considerado uma terapia, passe o exagero?) 

Tem isto alguma relevância? Não, a não ser para mim. Para os outros são violações do sossego próprio, frases cujo sentido nascem e morrem dentro de mim, apesar dos que me conhecem o suficiente para entender os subterfúgios ou as bizarrias. É por isso que envio mais do que recebo, lutando interiormente contra a ideia da desilusão que advém de uma contabilidade desencontrada. Afinal, o combate ao caos é essencialmente solitário, e cada um sabe como fazer o seu. Perceber isto é perceber muito, porque o deve e o haver da vida estão longe de serem iguais. Felizmente, direi eu, apesar de tudo...

JdB 

* publicado originalmente a 21 de Agosto de 2014

29 agosto 2022

Músicas dos dias que correm *

 



* enviado por mão amiga, no seguimento de um bom jantar e de uma boa conversa. E também porque estiverem este Sábado em Cascais.

28 agosto 2022

XXII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO - Lc 14,1.7-14

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus entrou, a um sábado,
em casa de um dos principais fariseus
para tomar uma refeição.
Todos O observavam.
Ao notar como os convidados escolhiam os primeiros lugares,
Jesus disse-lhes esta parábola:
«Quando fores convidado para um banquete nupcial,
não tomes o primeiro lugar.
Pode acontecer que tenha sido convidado
alguém mais importante que tu;
então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer:
'Dá o lugar a este';
e ficarás depois envergonhado,
se tiveres de ocupar o último lugar.
Por isso, quando fores convidado,
vai sentar-te no último lugar;
e quando vier aquele que te convidou, dirá:
'Amigo, sobre mais para cima';
ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados.
Quem se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».
Jesus disse ainda a quem O tinha convidado:
«Quando ofereceres um almoço ou um jantar,
não convides os teus amigos nem os teus irmãos,
nem os teus parentes nem os teus vizinhos ricos,
não seja que eles por sua vez te convidem
e assim serás retribuído.
Mas quando ofereceres um banquete,
convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos;
e serás feliz por eles não terem com que retribuir-te:
ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos.


25 agosto 2022

Dos casais que se imaginam maçados

 Comecei a viajar pelos meus 16 anos, talvez. Ia para casa de amigos e, por isso, fazia muito a vida que eles faziam: praia, jantares em casa de outras pessoas, passeios aqui e ali. Quando comecei a viajar sozinho - por altura dos 20 anos, talvez -  encetei o tempo dos museus. Fiz o interrail e outras viagens numa vertente muito cultural, pois passava os dias a ver exposições. Quando percebi que a cabeça já confundia tudo, e não me lembrava do que tinha visto em Viena ou se um determinado quadro estava em Florença, atirei-me para as esplanadas ou para outros sítios onde pudesse observar o próximo. Queria ver gente: as pessoas individuais a lerem um livro ou uma revista, grupos numa dinâmica própria, casais a interagirem. Não me interessava saber ou conhecer, porque não consigo adivinhar a vida das pessoas. Mas interessava-me, isso sim, imaginar: quem são, o que fazem, o que as motiva, com que choram ou com que perdem a cabeça, de que forma amam ou odeiam. 

Há cerca de 30 anos, Martin Parr fotografou um conjunto de casais, tendo essas fotografias sido publicadas no seu livro Bored Couples (Galerie du Jour Agnès B., 1993). Nada o ligava às pessoas fotografadas. Olhei para as fotografias e vi-me atrás da lente com que ele viu as pessoas que eu via nas esplanadas, nos restaurantes, sentadas numa fonte no meio de uma praça ou nas escadarias de uma rua movimentada. Não sabia se o olhar de paixão era paixão, se a ideia de um feitio violento ou manso pela linguagem corporal era isso ou uma insegurança; não sabia se uma boa sensual e semi-aberta para uma companhia do lado de lá de uma mesa não seria apenas sarcasmo ou antevisão de uma infidelidade. 

Ver as fotografias de Martin Parr (há mais aqui) é ver tudo, porque é imaginar tudo. 

JdB






24 agosto 2022

Textos dos dias que correm

Não Tenho Rancores nem Ódios

Pertenço a uma geração que ainda está por vir, cuja alma não conhece já, realmente, a sinceridade e os sentimentos sociais. Por isso não compreendo como é que uma criatura fica desqualificada, nem como é que ela o sente. É oca de sentido, para mim, toda essa (...) das conveniências sociais. Não sinto o que é honra, vergonha, dignidade. São para mim, como para os do meu alto nível nervoso, palavras de uma língua estrangeira, como um som anónimo apenas.
Ao dizerem que me desqualificaram, eu não percebo senão que se fala de mim, mas o sentido da frase escapa-me. Assisto ao que me acontece, de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das coisas que acontecem na vida. Hoje, ainda ninguém sente isto; mas um dia virá quem o possa perceber.
Procurei sempre ser espectador da vida, sem me misturar nela. Assim, a isto que se passa comigo, eu assisto como um estranho; salvo que tiro dos pobres acontecimentos que me cercam a volúpia suave de (...).

Não tenho rancor nenhum a quem provocou isto. Eu não tenho rancores nem ódios. Esses sentimentos pertencem àqueles que têm uma opinião, ou uma profissão ou um objectivo na vida. Eu não tenho nada dessas coisas. Tenho na vida o interesse de um decifrador de charadas.
Mas eu não tenho princípios. Hoje defendo uma coisa, amanhã outra. Mas não creio no que defendo hoje, nem amanhã terei fé no que defenderei. Brincar com as ideias e com os sentimentos pareceu-me sempre o destino supremamente belo. Tento realizá-lo quanto posso.
Nunca me tinha sentido desqualificado. Como lhe agradecer ter-me ministrado esse prazer! Ele é uma volúpia suave, como que longínqua.
Não nos entendem, bem sei...
...Assim como criador de anarquias me pareceu sempre o papel digno de um intelectual (dado que a inteligência desintegra e a análise estiola).

Fernando Pessoa, 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação'

22 agosto 2022

Propostas curriculares para o ano lectivo 2022 - 2023 (farei um, dois, ou nenhum dos seminários...)

TEO5.921704/ TEO8.921710 Tópicos de Teoria Literária (12 ECTS, S1, 2ª, 9:30-12:30, Miguel Tamen)

Obiter dicta

Um obiter dictum é um dito de baixo valor epistémico.  No entanto, tais ditos podem ser importantes na caracterização de acções, acontecimentos ou pessoas.  O seminário ocupar-se-á de descrições de pessoas, existentes e inexistentes, a partir de ditos incidentais que lhes foram atribuídos por terceiros.  Discutir-se-ão, entre outros, fragmentos e paráfrases de Diógenes Laércio, o Evangelho de Tomé, a conversa de mesa de Lutero e Coleridge, extractos de Life of Samuel Johnson, de James Boswell e das conversas de Eckermann com Goethe, Sartor Resartus, de Thomas Carlyle, e  “Notas para a recordação do meu Mestre Caeiro”, de Fernando Pessoa.


TEO5.921709/ TEO8.921715 Tópicos de Teoria Literária (12 ECTS, S2, 4ª, 9:30-12:30, Maria Sequeira Mendes)

A arte da crítica

“Some of my very best work went into that book and they’re treating it like a Mills and Boon potboiler, it just doesn’t make sense. I don’t expect them to give me the Nobel Prize, for Christ’s sake – I do know my own limitations, only too well, alas! – but isn’t it rather peculiar that not one of them so far has spotted the perfectly obvious point that the whole thing is meant to be an allegory of Good and Evil?”, diz a romancista num conto de Francis Wyndham.   Este seminário reflecte sobre a actividade de críticos que se ocupam (ou que se ocuparam) da produção artística do seu tempo (teatro, cinema, livros, séries de televisão), procurando demonstrar o seu valor. Leem-se artigos de autores como Andrew O’Hehir (Salon.com), David Orr (NYT), Emily Nussbaum (New Yorker), Michael Billington (The Guardian), Patricia Lockwood (LRB), entre outros, e responde-se a uma série de questões: que apreciamos num artigo de crítica?; que estratégias usam certos críticos?; podemos apreciar a crítica de espectáculos que não vimos ou de livros que não lemos? Procura-se perceber se a crítica estará, como pensa a romancista, morta e enterrada, ou se ainda existe esperança para quem procura ocupar-se destes objectos do presente. Ao longo do seminário os alunos farão exercícios tentativos de crítica.  


TEO5.921707/ TEO8.921713 Tópicos de Teoria Literária (12 ECTS, S2, 5ª, 9:30-12:30, José Maria Vieira Mendes)

Staying With the Trouble

Em um dos seus últimos livros, Staying With the Trouble. Making Kin in the Chthulucene, Donna Haraway escreve: “staying with the trouble requer que aprendamos a estar verdadeiramente presentes, não num lugar de fuga algures entre (...) futuros salvíficos ou futuros apocalípticos, mas enquanto criaturas mortais embrenhadas em miríades de configurações inacabadas de lugares, tempos, matérias, significados.” Neste seminário iremos ler alguns textos desta bióloga, filósofa e feminista, estabelecendo com a sua escrita e pensamento uma relação literária que se apoia no seu vocabulário e metáforas idiossincráticos. Com esta aproximação procuraremos também ecos do seu pensamento em textos de autoras e autores como Octavia Buttler, P.B. Preciado, Franz Kafka ou Legacy Russel, aprendendo com Haraway a ficar com o problema ou dificuldade (trouble).



21 agosto 2022

XXI Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 13,22-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus dirigia-Se para Jerusalém
e ensinava nas cidades e aldeias por onde passava.
Alguém Lhe perguntou:
«Senhor, são poucos os que se salvam?»
Ele respondeu:
«Esforçai-vos por entrar pela porta estreita,
porque Eu vos digo
que muitos tentarão entrar sem o conseguir.
Uma vez que o dono da casa se levante e feche a porta,
vós ficareis fora e batereis à porta, dizendo:
'Abre-nos, senhor';
mas ele responder-vos-á: 'Não sei donde sois'.
Então começareis a dizer:
'Comemos e bebemos contigo
e tu ensinaste nas nossas praças'.
Mas ele responderá:
'Repito que não sei donde sois.
Afastai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade'.
Aí haverá choro e ranger de dentes,
quando virdes no reino de Deus
Abraão, Isaac e Jacob e todos os Profetas,
e vós a serdes postos fora.
Hão-de vir do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul,
e sentar-se-ão à mesa do reino de Deus.
Há últimos que serão dos primeiros
e primeiros que serão d
os últimos».

19 agosto 2022

Dos Homens e das reses *

Assumamos duas ideias chave:

no domínio da matemática, que o limite de algumas funções tende para infinito;

no domínio de outras ciências, que a existência da Terra é finita, porque são finitos a água e o calor do sol.

Aprendemos, nós, os cristãos, que o Homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, que em cada um dos entes nascituros já há um sopro divino. Ora, acredito que esse tal influxo com que cada um foi bafejado é apenas uma infinitésima marca do Criador, como se fossemos uma rês ferrada na perna, ou uma criança deixada na roda dos enjeitados acompanhada de um lenço onde se bordou "Justina, virei buscar-te um dia, perdoa-me". Nem a marca gravada a quente nem a cambraia guarnecida de texto e lágrimas são indicadoras de santidade, perfeição, bondade, espírito recto. Revelam apenas uma propriedade que alguém - ou Alguém - reclamará um dia, seja numa tórrida e feliz tarde de um Agosto qualquer, seja no fim dos tempos, quando a Terra não for mais do que frio e noite.

Há nas crianças, naquilo que é o melhor do mundo, uma inquebrantável maldade. Gozam com quem tem óculos, com quem coxeia, com quem está inchado de remédios, com quem gagueja, com quem tem uma madeixa de cor bizarra, que a genética atraiçoa os mais capazes e o destino amaldiçoa os mais puros. Deus está lá, apesar do dichote carregado de desumanidade, da troça onde se pressente um vaguíssimo cheiro a enxofre encoberto pela fragrância matutina. O que significa isto? Que nascemos com uma origem desarmónica, como o bezerro que tem um olho cegado pela imperfeição. E no entanto o sopro está lá, e o ferro em brasa encosta-se na mesma num fumego de carne. É Meu filho, dirá Alguém; o gado é meu, dirá alguém.

Enquanto seres racionais somos uma função cujo limite tende para um fim harmonioso, que é o infinito da matemática. Procuramos a perfeição, sabendo que não a alcançaremos jamais. Na natureza as coisas tendem para, porque aquilo que já é tem uma dimensão morta, fixa, estática - um concerto de Beethoven, um ovo Fabergé, a Ronda da Noite de Rembrandt. Assim sendo, acumulamos imperfeição, porque o nosso passado - carregado de defeito - é sempre superior ao nosso futuro, onde se vislumbra o apuro máximo. Há sempre mais passado do que futuro, porque o que foi é uma realidade, e o que está para vir é apenas uma hipótese que se confirma momento a momento. Por isso a longevidade é uma realidade traiçoeira: por um lado, são mais anos de aperfeiçoamento na procura da Beleza; por outro lado, são mais anos de acumulação de Fealdade. A contabilidade não é uma ciência exacta.

Como seres humanos, nascemos bafejados pelo Divino; o sopro é um ferro em brasa num corpo pequeno e sorridente, que não cheira a carne queimada mas a alma repleta. Este hálito celeste não está impregnado de probidade, como o ferro não está impregnado de bravura. Revelam apenas uma propriedade que, no caso dos seres animados de sentimentos, vem com uma condição - não desistir, porque o tempo é finito. 

JdB    

* publicado originalmente a 4 de Março de 2015

18 agosto 2022

Músicas (muito repetidas) dos dias que correm

 

Uma música fantástica, uma execução fantástica, uma animação fantástica. Abanem-se, em podendo e querendo.


JdB

17 agosto 2022

Vai um gin do Peter’s ?

 SABOTAGEM NO DIA DA RÚSSIA?

As pesquisas interessantes do jornalista José Milhazes (fluente em língua russa) aos meandros da guerra na Ucrânia, a partir da perspectiva do país invasor, permitiu-nos conhecer inúmeros actos heróicos de cidadãos russos críticos da barbárie de Putin em território ucraniano. Com risco de vida, têm denunciado o rol de mentiras e de crueldade do Kremlin, que insiste na impiedosa invasão de outro país soberano. Como se não bastasse a destruição de cidades ucranianas, alvejando sem escrúpulos alvos civis, Moscovo também se tem revelado insensível às baixas das suas tropas, escondendo e mentindo sobre o número de mortes, que já atingiu cifras obscenas, cada vez mais difíceis de assumir junto da população russa sem aumentar a turbulência interna.     

Um dos actos que resultou mais divertido e de provável sabotagem perpassou nos cartazes destinados a abrilhantar os festejos do dia da Rússia, este ano (a 9 de Maio). Do lay-out à imagética usada, nada pareceu inocente, destacando-se a associação das tropas russas aos nazis que invadiram a Rússia durante a Segunda Guerra Mundial. Como não perceber a insinuação de que Putin será o Hitler do nosso tempo? A intrigante colecção de cartazes vem explicada com bom detalhe neste artigo gentilmente cedido pelo autor:

«A guerra das bandeiras

O espectáculo da parada militar de 9 de Maio em Moscovo, carregado de símbolos bélicos, não é fácil de interpretar.

Que significam tantas foices e martelos? Porque é que muitos esquadrões desfilavam com bandeiras vermelhas? E havia tantas insígnias comunistas? E enormes decorações da extinta União Soviética? As iniciais do país voltaram a ser CCCP (União Soviética), como estava escrito em letras garrafais na praça Vermelha? Que faziam tantas fotografias de Stalin na parada militar? Ainda mais, porque é que os cartazes de propaganda da parada de 9 de Maio usavam símbolos nazis e fotografias norte-americanas?

Felizmente, a Rússia não virou comunista, nem nazi. A história é mais longa.

Quando se deu o Cisma do Oriente (ano 1043) e o mundo grego quebrou a unidade da Igreja Católica, a Rússia acompanhou Constantinopla, que então se considerava «a nova verdadeira Roma». Quando os Otomanos invadiram Constantinopla (ano 1453), Moscovo considerou-se a herdeira desse título, passando a ser «nova-nova verdadeira Roma». É por isso que, até hoje, os ortodoxos russos se consideram os eleitos por Deus para salvar a Terra.

Durante quase um século, os comunistas perseguiram o povo em nome do ateísmo. Esse período terrível não deixou saudades, excepto num ponto: foi o momento em que mais povos estiveram submetidos à autoridade de Moscovo. Com a queda do comunismo, algumas dessas colónias aproveitaram para ficar independentes, o que é considerado pela Igreja Ortodoxa russa o retrocesso mais grave dos últimos séculos. Assim se explica que uma igreja cristã erga as bandeiras do regime comunista, não já como símbolos marxistas, mas como momento alto do imperialismo russo.

Nos seus múltiplos esforços para acabar com a guerra, o Papa falou por vídeo-conferência com o Patriarca Ortodoxo de Moscovo no dia 16 de Março. Infelizmente, a conversa não correu bem. Ao fim de ouvir durante 20 minutos o Patriarca ler um discurso a defender o direito da Rússia a invadir a Ucrânia, o Papa Francisco não se conteve e interrompeu-o: «Irmão! Não pode fazer de menino do coro de Putin!». Parece que o Patriarca vê a hierarquia ao contrário: Putin é que é o santo servidor do Patriarcado de Moscovo.

Alguns russos não concordam com este programa imperialista e talvez isso explique as imagens nazis nos cartazes de propaganda russa. Quando o regime se deu conta da brincadeira, era tarde demais. Os cartazes já estavam na rua, a sugerir ao povo russo quem faz actualmente o papel dos nazis.» 

Que significavam os símbolos comunistas na parada militar de 9 de Maio?

Olhando para as decorações da praça Vermelha no 9 de Maio, parecia que o país voltava a chamar-se União Soviética: CCCP.

Uma fotografia norte-americana da Segunda Guerra Mundial (à direita) serviu de base ao cartaz russo (à esquerda) a anunciar a parada militar em Moscovo, com a bandeira americana substituída pela bandeira comunista. A legenda do cartaz significa «Pela nossa VITÓRIA!». [Fotografia apresentada pelo jornalista José Milhazes no Jornal da Noite, na SIC Notícias].

Cartaz russo da parada militar de 9 de Maio de 2022 em Moscovo. A fita amarela e vermelha das forças russas emoldura a fotografia de um regimento nazi. [Fotografia apresentada pelo jornalista José Milhazes no Jornal da Noite, na SIC Notícias].

Cartaz de rua russo a anunciar a parada militar de 9 de Maio de 2022 em Moscovo. As riscas amarelas e vermelhas das forças russas sobre uma fotografia de pilotos alemães da Segunda Guerra Mundial, com a frase «Eles lutaram pela pátria». [Fotografia apresentada pelo jornalista José Milhazes no Jornal da Noite, na SIC Notícias].

À esquerda, cartaz de rua a anunciar a recente parada militar de 9 de Maio. Por trás das cores da Federação Russa, vê-se parte de um cartaz de propaganda nazi com um soldado a lançar uma granada. A legenda do cartaz nazi, à direita, dizia «A Alemanha luta em todas as frentes». [Fotografia apresentada pelo jornalista José Milhazes no Jornal da Noite, na SIC Notícias].

José Maria C.S. André
Publicado em media e blogs anglo-portugueses 
no final de maio de 2022


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

16 agosto 2022

Pensamentos dos dias que correm

 A Fidelidade é a mais Integral de todas as Virtudes Humanas

A fidelidade (...) é a mais integral de todas as virtudes humanas. O homem participa numa batalha e, sem a fidelidade, não conhece a sua luta; apenas usa da violência, interpreta uma vontade, é instrumento de uma opinião. A fidelidade move-o desde a sua origem, é a primeira condição da consciência. Não se efectuam coisas novas sem fidelidade. Não se engrandece a piedade ou se priva com o mais simples sentimento, sem a fidelidade. Uma acção progressiva tem que ter raízes tumulares, raízes naquilo que encerrámos definitivamente - uma era, um conhecimento, uma arte, uma maneira de viver. A fidelidade, disse eu, assegura-nos o tempo de criar e o tempo de destruir o que se tornou inconforme à imagem do homem. Nada é digno de valor, sem fidelidade.

Agustina Bessa-Luís, in 'Alegria do Mundo'

15 agosto 2022

Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria

 EVANGELHO - Lc 1,39-56

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direcção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».
Maria disse então:
«A minha alma glorifica o Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre».
Maria ficou junto de Isabel cerca de três meses
e depois regressou a sua casa.

14 agosto 2022

XX Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 12,49-53

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Eu vim trazer o fogo à terra e que quero Eu senão que ele se acenda? Tenho de receber um baptismo e estou ansioso até que ele se realize.
Pensais que Eu vim estabelecer a paz na terra?
Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão. A partir de agora, estarão cinco divididos numa casa: três contra dois e dois contra três.
Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra».

11 agosto 2022

Bem-aventurados os que choram *

Roberto lembrava-se da primeira vez que consultara a Dra. Inês para tirar do peito o aperto que o consumia:

Sabe Dra. Inês... Não leve a mal o que lhe vou dizer, mas a minha vida sexual lembra-me a frustração da primeira comunhão. Percorri a catequese que desembocava naquela festa tão branca, tão pura, tão promissora da proximidade com Deus. Mas sabe, quando chegou ao domingo seguinte, a minha mãe alegou enxaquecas próprias de uma rotina feminina e o meu pai reclamou um torneio de bilhar às três tabelas; quando dei por mim a minha mãe tinha uma mensalidade de trinta dias difíceis e o torneio de bilhar terminava próximo do infinito. Até me zanguei com o Padre Alberto por ele me ter enganado. Afinal, para alguns meninos, não havia primeira comunhão, mas única comunhão... Percebe-me Dra. Inês?

E a psicóloga, oferecendo as costas a uma carta de curso e à evidência da sua presença em seminários onde não se discutiam doenças, mas oportunidades de estudo, alegava que sim, que entendia, e tomava notas num moleskine encarnado para depois introduzir números e factos num programa informático que trabalhava perfis, comportamentos de risco, antecedentes criminais - e facturação ao trimestre.

A minha vida sexual é assim, doutora. Há uma primeira vez, uma entusiasmante primeira vez...

E Roberto recostava-se no sofá, comprado ao preço de uma ninharia num estabelecimento que fechara para mudança de ramo, e lembrava-se das primeiras noites: a música suave, a luz a morrer de sensualidade por acção de um reóstato eficiente, dois corpos que se juntam, se tocam, se despem, percorrendo um território que se desconhece mas pelo qual se anseia; a Marília, a Tânia, a Susana, a Antónia, a Elisabete; botões que se desapertam, roupa bonita que tomba sem um ruído na alcatifa, a nudez total e ávida que se oferece ao toque, ao beijo, à carícia, ao desejo; bocas e mãos que exploram e devoram, almas que se deixam enredar por uma necessidade carnal onde o limite não encontra terra fértil.

E depois dessa primeira vez doutora? Sabe o que acontece?

E a Dra. Inês a saber tudo, mas a incitar o Roberto à catarse, ao choro, ao reconhecimento que, tal como a comunhão, não havia uma primeira vez, mas uma única vez. Aquando da sua meninice não tinha havido uma segunda oportunidade para ele engolir aquela bolachinha de água e farinha que recompensava quem era bom e não entristecia o bom Jesus; agora, em adulto, as Marílias e as Antónias desapareciam sem quase deixar rasto, não pelo seu desempenho nas artes do sexo – com classificação na ordem do satisfaz bem / satisfaz muito bem – mas porque viam um futuro inconsistente, que é mais dramático do que não ver um futuro...

E Roberto, encostado no sofá comprado nas oportunidades que sempre são a falência vizinha, chorara inconsoladas sessões contínuas frente a uma doutora Inês que, emoldurada por um renque de cursos e encontros profissionais, meditava sobre a desdita dos que choram e da melhor forma de os consolar...

Um dia, Roberto faltou à sua sessão quinzenal; reagendou-a, mas voltou a não comparecer; ainda telefonou, engasgado numa desculpa. Que sim, que marcaria, que apreciava muito o trabalho da Dra. Inês, que se lembrava bem do alívio que recebia e do recibo verde que ficara de recolher, do bem que lhe tinha feito, etc., etc., etc.

Quando soube dele - estava a psicóloga a negociar uns candeeiros de pé de um consultório falido - o paciente tinha aberto uma sex-shop e entrado como sócio para uma empresa de match making que, inovadoramente, desenvolvera um software assente nas incompatibilidades pessoais para detectar as suas inversas. Roberto tinha-se oferecido para case study - e o sucesso tinha sido meteórico.

Obrigado, Dra. Inês. Sinto-me mais consolado. Já lhe tinha falado na Olga? Nunca vi pessoa mais diferente de mim...

JdB

* publicado originalmente a 7 de Junho de 2010

09 agosto 2022

Cartas e campanhas dos dias que correm

OS PADRES

Os Padres são, hoje em dia, uma espécie de “bombos da festa”!

Tudo e toda a gente “malha” nos Padres, em letra maiúscula de propósito.

Começa, (sei lá bem onde começa?), pelos leigos, pelos paroquianos, passa pelos ditos católicos que não “vão” à Igreja e lhes dá jeito os problemas de alguns padres para não irem, (aqui com letra minúscula de propósito), pelos políticos, (é tão bom que falem dos outros e esqueçam a “porcaria” que fazem todos os dias), pelos ditos jornalistas, que de jornalistas nada têm, mas apenas de fazedores de suspeitas, de difamações, de manipulações, passa até pelos que cometem os terríveis pecados que alguns, poucos, padres cometem, porque assim ninguém olha para eles, enfim, é um nunca acabar de gente a criticar, a julgar, a condenar, os Padres, normalmente na praça pública.

Infelizmente, até na própria Igreja, mesmo aos mais altos níveis, os Padres são objecto e razão para permanentes críticas e admoestações, porque são clericalistas, porque são conservadores, porque são progressistas, porque isto, porque aquilo, esquecendo-se essa mesma hierarquia de, pelo menos de vez em quando, os presentear com o reconhecimento do trabalho feito em tanto lugar e tantas vezes em momentos e lugares tão difíceis.

Quem vive com os Padres no seu dia a dia, quem com eles colabora no intuito de servir a Deus, percebe como tantas vezes é injusta a maneira e o modo como os Padres são tratados.

Quem cuida de saber se estão cansados, se celebram mais Missas do que deviam, intercalando com funerais, baptizados, casamentos e “outras coisas mais”?

Se confessam e nada dizem, não valeu a pena a confissão. Se confessam e tentam dar conselhos e ajudar a encontrar caminho, são uns “chatos”, quando não uns convencidos que pensam saber mais do que os “confessados”!

Se nas homílias tentam dar testemunho das suas vidas servindo-se das Leituras e do Evangelho, é porque estão a falar de si próprios, se falam apenas da Palavra e A tentam explicar com mais profundidade, têm a mania que são “teólogos”, se sorriem, riem e estão bem dispostos, é porque não percebem a “dignidade” do que estão a fazer, se estão de cara séria e chamam a atenção para os erros que todos praticamos, têm a mania que são melhores do que os outros.

A lista é interminável, mesmo sem fim, e aplica-se sempre aos Padres que acabam por pagar pelos erros dos outros, padres como eles também.

Então isso quer dizer que não se deve dar atenção e conhecer e punir os actos vergonhosos de alguns padres?

Claro que não!

Tudo isso deve ser apurado até ao fim e com toda a força da lei canónica e civil, doa a quem doer, mas que envolva também todos os outros sectores da sociedade onde tal acontece também.

As outros, filhos de Deus também, mas que nEle não acreditam, é prova mais do que acabada que Deus não existe, que a Igreja é uma “fantochada”, e que tudo isso devia acabar de imediato.

No entanto, não são capazes de tomar a mesma atitude, por exemplo, perante a política, pois sabendo que há políticos corruptos, reconhecem que há bastantes que o não são.

Aqueles que se dizem cristãos católicos e se afastam da Igreja por causa do pecado gravíssimo de alguns padres, (bem poucos no universo geral), ainda não perceberam que a Igreja não são os Padres, somos nós todos reunidos em nome de Deus.

Àqueles que se sentem envergonhados pelo comportamento inaceitável e pecaminoso de certos padres, obrigado, porque são Igreja e sofrem com a Igreja que são.

O texto não teria fim porque, infelizmente, é muito vasto o assunto e exige de nós cristãos católicos muita oração pelos Padres e pelos padres que prevaricam gravemente, bem como pelas suas vítimas.

Eu, pessoalmente, dou graças a Deus pelos Padres, orgulho-me de conhecer e ser amigo de muitos deles e agradeço-lhes do fundo do coração a sua entrega, mais ainda nestes momentos tão difíceis em que seria bem mais fácil “abandonar a barca”, e sobretudo o dom de trazerem Deus nos Sacramentos ao povo que O adora e nEle sempre confia e espera.

Amemos os nossos Padres, por eles pedindo sempre e pedindo ao nosso Papa Francisco e aos nossos Bispos que os acarinhem e reconheçam a sua dedicação profunda, não os criticando tantas vezes como se fossem eles os “culpados” de tudo o que não corre tão bem na Igreja.

Só Deus sabe o seu enorme sacrifício, a sua persistência, perante tantos e tão variados ataques e incompreensões com que as suas vidas são escrutinadas, a maior parte das vezes apenas para dizer mal e interpretar falsamente os seus gestos e atitudes.

O texto é cáustico, muito, eu sei, mas dói-me profundamente que a enorme maioria de Padres que deram e dão a sua vida por Cristo, estejam num frenesim de ataques que toma sempre a “nuvem por Juno”.

A vós Padres todos que, humanamente, resistis às tentações, que reconheceis as vossas fraquezas, mas vos mantendes firmes na fé, ajudando-nos a vivê-la em Igreja por Cristo, com Cristo e em Cristo, OBRIGADO!

Rezo por vós e dou graças a Deus por todos e cada um que permanece fiel ao seu sacerdócio, tudo e só para a maior glória de Deus.

Marinha Grande, 6 de Agosto de 2022

Joaquim Mexia Alves 

***

Carta dos católicos aos Bispos e Padres de Portugal

Para: Bispos e Padres de Portugal

Nós, católicos de Portugal, profundamente entristecidos com as notícias dos abusos sexuais cometidos por alguns membros do clero, vimos manifestar, de todo o coração, a nossa gratidão a todos os sacerdotes que são fiéis à sua vocação, à imagem de Jesus, o Bom Pastor e, de modo silencioso e discreto, diariamente fazem o bem às nossas famílias e comunidades.

Obrigado pelo acompanhamento aos mais frágeis dos frágeis, nas paróquias, nas misericórdias, nos lares, nos orfanatos, nas capelanias hospitalares, nas prisões, nos centros sociais e nas inúmeras associações da Igreja que diariamente ajudam os mais necessitados, os mais excluídos da sociedade.

Obrigado pelo acompanhamento que dão às nossas famílias, todos os dias e em todas as etapas. Obrigado por nos terem preparado para o matrimónio e presidido à sua celebração.

Obrigado por batizarem os nossos Filhos, ajudando-os a despertar na Fé e acompanhando a catequese ao longo da sua infância e juventude. Obrigado pela presença alegre nos escuteiros, nos campos de férias, nas capelanias dos colégios e das universidades.

Obrigado pela presença amiga e consoladora junto dos nossos mais queridos nos momentos em que partem para o Pai. Obrigado por acompanharem a nossa dor nas missas de exéquias e nos funerais.

Obrigado por nos ouvirem no sacramento da reconciliação e por nos terem resgatado nos momentos de crise das nossas vidas. Obrigado por aquela homilia que nos transformou, por todas as vezes que rezaram por nós e pela Eucaristia que diariamente celebram em nossa intenção.

Obrigado pelos quilómetros percorridos para não falharem às povoações mais isoladas. Obrigado pela alegria com que festejam os acontecimentos das famílias e das comunidades cristãs. Obrigado por acolherem os que chegam e por festejarem o regresso dos que partiram.

Obrigado por se gastarem e cansarem para chegar a todos.

Sabemos que ser Padre não é fácil nos dias de hoje. Que alguns são tentados pelo maligno e sucumbem. Rezamos por esses, para que o seu coração se arrependa e sejam transformados pela misericórdia do Senhor. Rezamos pelas suas vítimas, para que o mal que lhes foi feito seja compensado em abundância de amor.

Sabemos que a grande maioria de vós permanecem fiéis ao sacerdócio e à vocação. São para nós testemunho de entrega aos outros e imagem de Cristo. Damos graças pelo dom do vosso sacerdócio, que nos interpela e aponta o Céu.

Contem connosco e com as nossas orações. Sabemos que contamos sempre com as vossas.

https://peticaopublica.com/?pi=PT113307 

08 agosto 2022

Poemas dos dias que correm

ODE À DIFERENÇA

Felizmente.
Somos todos diferentes. Temos todos
o nosso espaço próprio de coisinhas
próprias, como narizes e manias,
bocas, sonhos, olhos que vêem céus
em daltonismos próprios. Felizmente.
Se não o mundo era uma bola enorme
de sabão e nós todos lá dentro
a borbulhar, todos iguais em sopro:
pequenas explosões de crateras iguais.
Assim e felizmente somos todos
diferentes. Se não a terapia
em grupo era um sucesso e o que é certo
é sermos mais felizes a explorar
solitários o nosso próprio espaço
de manias, de traumas, de unhas dos pés
invaloradas pela nossa cultura
(que lá no Oriente o pé é o caso sério,
motivo sensual e explorativo).
Começa por aí: o mundo di-
vidido por atávicos ritmos 
– e outras coisas somenos como guerras
ou fomes (Note Bem: a criatura
é céptica e tem um gosto péssimo,
mas veja-se outros textos que redimem
em sério o que aqui diz. Cf. por ex.
o que quiser, mas deixe a criatura
regalar-se por se pensar– coitada–
incómoda e sonora). Prova evidente
de que somos diferentes, felizmente.
Começa por aí: no mundo divi-
dido – e continua em raças e
raízes. Nós somos portugueses,
tão felizes, com tanta história atrás
e tantos feitos, tantas coisinhas próprias
de delícia: o mar que nos gerou,
e o resto tudo, são bolas pequeninas
de sabão a atestar da diferença
do nosso irmão do lado, esse infeliz
cheio de recalques de tradições e línguas,
paella e calamares. Tem boca como
nós: não canta o fado. Tem pernas como
nós: não dança o vira. Contenta-se
– coitado– com flamencos chorados
e falanges doridas. Somos todos
diferentes, felizmente (Note Bem:
[se a sua paciência ainda não 
fugiu despavorida
– é sem dê,
mas ela insiste em respeitar
o ritmo –]: isto que a criatura
repete e reafirma, quando em quando,
não deve ser tomado em ligeireza
como sinal senil [aliterou!],
mas como tentativa suicida
de oferecer unidade ao que o não tem,
moralizar o texto a pouco e pouco,
dar-lhe uma ideia igual, ser um mote
formal a contrabalançar a tal
prova evidente. Que de diferenças
estamos todos cheios e isto
pretendia-se uma ode e não foi).
Felizmente.

Ana Luísa Amaral

07 agosto 2022

XIX Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lc 12,32-48

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Não temas, pequenino rebanho,
porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o reino.
Vendei o que possuís e dai-o em esmola.
Fazei bolsas que não envelheçam,
um tesouro inesgotável nos Céus,
onde o ladrão não chega nem a traça rói.
Porque onde estiver o vosso tesouro,
aí estará também o vosso coração.
Tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas.
Sede como homens
que esperam o seu senhor voltar do casamento,
para lhe abrirem logo a porta, quando chegar e bater.
Felizes esses servos, que o senhor, ao chegar,
encontrar vigilantes.
Em verdade vos digo:
cingir-se-á e mandará que se sentem à mesa
e, passando diante deles, os servirá.
Se vier à meia-noite ou de madrugada,
felizes serão se assim os encontrar.
Compreendei isto:
se o dono da casa soubesse a que hora viria o ladrão,
não o deixaria arrombar a sua casa.
Estai vós também preparados,
porque na hora em que não pensais
virá o Filho do homem».
Disse Pedro a Jesus:
«Senhor, é para nós que dizes esta parábola,
ou também para todos os outros?»
O Senhor respondeu:
«Quem é o administrador fiel e prudente
que o senhor estabelecerá à frente da sua casa,
para dar devidamente a cada um a sua ração de trigo?
Feliz o servo a quem o senhor, ao chegar,
encontrar assim ocupado.
Em verdade vos digo
que o porá à frente de todos os seus bens.
Mas se aquele servo disser consigo mesmo:
‘o meu senhor tarda em vir’;
e começar a bater em servos e servas,
a comer, a beber e a embriagar-se,
o senhor daquele servo
chegará no dia em que menos espera
e a horas que ele não sabe;
ele o expulsará e fará que tenha a sorte dos infiéis.
O servo que, conhecendo a vontade do seu senhor,
não se preparou ou não cumpriu a sua vontade,
levará muitas vergastadas.
Aquele, porém, que, sem a conhecer,
tenha feito acções que mereçam vergastadas,
levará apenas algumas.
A quem muito foi dado, muito será exigido;
a quem muito foi confiado, mais se lhe pedirá».


05 agosto 2022

O fado, canção de vencidos

Cabaré

Foi num cabaré de feira - ruidoso 
Que uma vez ouvi cantar - comovido 
Uma canção de rameira - sem ter gozo 
Que depois me fez chorar - bem sentido

Era a canção da alegria - couplé novo 
Mas a pobre que a cantava - eu bem a vi 
Naquela noite sorria - para o povo 
E ao mesmo tempo chorava - para si

É que a linda cantadeira - tão formosa 
Mais linda do que ninguém - certamente 
Sentia a dor traiçoeira - rancorosa 
A magoar-lhe o peito de mãe - cruelmente

Tinha um filhinho doente - quase á morte 
E a pobre ganhava a vida - só de fel 
Cantando a rir tristemente - por má sorte 
Uma canção de perdida - bem cruel

Versos de Henrique Rego

04 agosto 2022

Dos fragmentos *

 Era 1981, talvez, e eu fumava Português Suave sem filtro. 

Por duas vezes, em fins de semana com amigos, partilhei um exercício com quem estava ao meu lado, que podia ser companhia certa ou ocasional de restaurantes modestos: escrever na toalha de papel - nos interstícios dos cigarros, das nódoas de vinho tinto ou de gordura das viandas - palavras soltas, excertos de frases igualmente soltas que se iam proferindo durante aquela refeição. No fim, dividida a conta, levantada a loiça e sacudidos os despojos, dobrava-se a toalha escrevinhada e fazia-se a oferta, como se fosse um recuerdo, um agradecimento, um rendilhado em forma de nada para memória futura. 

***

Mencionam-me uma dissertação filosófica sobre um álbum de fotografias. Pós-segunda guerra mundial, talvez; nos Alpes, parece. Uma fotografia de um homem parcialmente de costas, outra de uma mulher a sorrir. Depois, tudo o resto é paisagem - a neve, os montes, um carro ao longe, uma casa bucólica, uma vaca sem passado nem futuro. Invento eu, que só as duas primeiras fotos, a data e o local foram citados. O resto fica em aberto, ao devaneio de cada um. Paisagem, sempre. O homem não aparece mais, a mulher, se sorri, já não é para a câmara. 

***

O que distingue os dois "acontecimentos"? Nada. Falo de duas coisas talvez iguais, e contudo diferentes. Uma toalha de mesa ornada com semi-frases soltas e anónimas é igual a um álbum de fotografias onde não se identifica mais do que uma época, um local, um retalho de costas ou um sorriso quiçá ingénuo. São fragmentos de vida que dizem tudo ou não dizem nada, consoante os olhos de quem os vê. Para os mais afortunados talvez digam o suficiente, e esse "suficiente" seja uma infinidade de hipóteses, um centro vital pejado de saídas para a interrogação. 

Não saber é o caminho mais feliz, porque é o caminho de todas as hipóteses. O que distingue o personagem fictício mais fascinante do ser humano mais baço? A vida do primeiro resume-se ao conteúdo do livro - fora dele não existe. Tudo o que há para saber está vertido nas duzentas páginas do romance. A vida do segundo, pelo contrário, é um jogo de cartas que pode deduzir-se, adivinhar-se, supor-se. É uma toalha de papel para onde se transcreveram frases soltas e incompletas; é um álbum onde se vêem um pedaço de costas e um sorriso quiçá ingénuo. Parece pouco, mas esse aparente pouco é quase tudo.

JdB 

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* publicado originalmente a 26 de Novembro de 2013    

03 agosto 2022

Música para o dia de hoje *

* enviado por mão amiga. Para o A., que faz hoje 6 anos.


Vai um gin do Peter’s ?

SHAKESPEARE NO CONVENTO DO CARMO

Até 20 de Agosto, estará em cena no Convento do Carmo a peça divertida e inspirada do bardo inglês «MUITO BARULHO POR NADA» (Much ado about nothing). A tradução para português tem o selo de qualidade de Sophia de Mello Breyner Andresen. A interpretação está a cargo do talentoso grupo Teatro do Bairro. E a beleza do cenário, no interior das ruínas do Convento, com os arcos ogivais góticos bem recortados contra o azul-escuro do céu límpido de Verão, amplia a poética de Shakespeare. Recomendação prática: levar um bom agasalho, porque a brisa das noites lisboetas pode enregelar-nos em minutos. 


A comédia arranca com dois jovens muito promissores e das melhores linhagens italianas a apaixonarem-se. A vida corre-lhes de feição. O próprio regresso a casa dos valorosos cavaleiros, depois de uma batalha onde confirmaram a sua valentia, inaugura um ciclo de paz e de prosperidade. É o merecido troféu dos nobres guerreiros.

À maneira de Shakespeare, a trama complica-se num ápice, quer por um par de personagens maliciosas apostadas em estragar os projectos felizes, quer por uma elevada percentagem de gente conspirativa, que consegue fazer despontar o romance mais improvável, apenas instigado por uma intriga benigna. 

O entrelaçado das teias humanas, que compõe o enredo, dá pretexto a diálogos extraordinários sobre a fragilidade da condição humana, a complexidade única que é cada pessoa e a misteriosa coabitação de bem e de mal a digladiar-se ferozmente para marcar o rumo dos acontecimentos. Por toda a obra de Shakespeare perpassa a observação de um crítico literário aplicada inicialmente à peça ‘HENRIQUE V’: «What we have here is one man’s battle with his inner demons, and also with France».

Sabemos que nem tudo o que parece é e ser ou não ser condensa o grande desafio da existência humana. Mas, na criatividade do dramaturgo inglês, esta subtileza contranatura sobre as aparências é levada ao limite, expondo toda a variedade de surpresas e contradições que comporta, a ponto de poder caber às personagens mais desastradas os actos certeiros, que acabam por reparar os estragos das armadilhas obscuras. 

Em Shakespeare, a luta entre o bem e o mal, entre o amor/a amizade e o ódio surge envolta num rendilhado de lusco-fusco. No curto prazo, singra mais rapidamente o mal e os seus ardis tenebrosos, depois sujeitando-se à longevidade precária da mentira. Como não reconhecer o famoso alerta sobre a maior esperteza dos filhos das trevas?... Igualmente rápidos a atuar são os sábios bondosos (que costumam ter idade provecta e concentrar-se numa figura única), desencantando soluções literalmente extra-ordinárias para reverter toda a malícia. Mas a execução proposta é mais lenta e depende da colaboração heróica dos que se lhe confiam (tipicamente, as jovens apaixonadas). Têm de avançar mais devagar para ajudarem mais gente a chegar mais longe. Nas comédias, o dramaturgo também costuma atirar para a ribalta figuras inaptas, a quem cabe a desmontagem no terreno das ciladas perversas. Há especial frisson em vê-los dar as estocadas certas que irão repor a ordem, apesar da pouca ou nula noção do alcance dos seus actos. A sua óbvia inconsistência soma às vantagens narrativas do suspense e do humor uma forte carga filosófica, porque dá a medida da grandeza imensa (de certo modo, escatológica) da boa intenção dos pobres de espírito, que atraem, com a sua docilidade natural, uma outra vontade capaz de conferir consistência e muita pontaria aos gestos meio acidentais desses incapazes. A sua inabilidade revela o invisível.  

As personagens mais densas e multifacetadas oferecem um caleidoscópio de surpresas, incluindo para o próprio, proporcionando mudanças de comportamento imprevisíveis e consequentes guinadas no argumento, tudo favorável ao bom suspense. 

Mulheres fortes, independentes e assertivas, que poderíamos pensar serem um produto das lutas feministas do século XX, afinal, já existiam (algumas) no século XVI. Beatriz assume uma concepção de amor com as exigências e a liberdade de movimentos que só seriam admissíveis nos homens. E ousa defendê-la com uma frontalidade invulgar no arquétipo feminino que associamos ao Renascimento. Para a indomável Beatriz não se vislumbrava homem à altura, segundo o seu diagnóstico: «He that has a beard is more than a youth, and he that has no beard is less than a man; and he that is more than a youth is not for me, and he that is less than a man, I am not for him». Resposta pronta ao tio duque, que a queria ver casada: «Not till God make men of some other metal than earth.» Mas quando, numa pirueta da vida, calhou apaixonar-se por um cavaleiro improvável, faz uma constatação sobre o amor com o seu típico toque de racionalidade adverso a sentimentalismos, mas também a noção do seu temperamento crítico ad nauseam: «I love you with so much of my heart that none is left to protest».

Significativamente, o nome da apaixonada e maior vítima da tramoia perpetrada pela estranha figura do invejoso-mor e do anti-amor (D.João), é «Hero», cujo nome substantiva um adjetivo com leitura directa na língua inglesa. Nesta tragicomédia, cabe a Hero o papel da mártir, felizmente, com oportunidade de reabilitação ainda em vida, embora tome a aparência de acontecer postumamente. É no silêncio corajoso com que enfrenta as piores calúnias, impotente para se defender, que a amada amaldiçoada corporiza a definição de Bob Dylan para o heroísmo: «I think of a hero as someone who understands the degree of responsibility that comes with his freedom.» Diz muito daquela noiva ter aceitado viver até às últimas consequências as várias decisões que tomou, das atractivas às amargas, apanhando-se a arcar com o preço da liberdade. Face a acusações vis, que lhe ensombram o futuro, Hero preferiu a espera discreta, demonstrando uma tranquilidade invulgar a reagir aos sobressaltos da vida. Quando embarca confiante no expediente que o tio lhe propõe para dar tempo à dissipação das horrendas suspeitas de que é acusada, Hero ilustra a acepção de herói professada por Tom Hanks: «A hero is someone who voluntarily walks into the unknown», quando se intui corresponder a um bom caminho. 

Faz sentido que provenha do dramaturgo que desenhou esta heroína a interpelação positiva que Shakespeare associa aos próprios reveses: «If you find yourself banished from the city of Rome, consider it a challenge» (na peça ‘CORIOLANOS’).

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

SINOPSE: Hero e Cláudio conhecem-se, apaixonam-se e combinam casar, beneficiando do aval do Duque, pai de Hero. Enquanto preparam os festejos da boda, conspiram com D.Pedro para juntarem Benedito, um arrogante solteirão, com Beatriz, sua céptica e cáustica adversária. Enquanto isto, uma iminência parda – o príncipe bastardo D.João – maquina contra o casamento dos dois amantes, acusando Hero de infidelidade. No final, tudo se deslinda e recompõe, resultando em "muito barulho por nada”.

FICHA ARTÍSTICA: 
Texto: WILLIAM SHAKESPEARE de 1598-1599; 
Tradução SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN. 
Encenação ANTÓNIO PIRES;  
Cenografia: ALEXANDRE OLIVEIRA 
Produção AR DE FILMES / TEATRO DO BAIRRO.
ELENCO: ANDRÉ MARQUES, CAROLINA CAMPANELA, CAROLINA SERRÃO, EDUARDO FRAZÃO, GRACIANO DIAS, GONÇALO NORTON, HUGO MESTRE AMARO, JOÃO BARBOSA, JOÃO SÁ NOGUEIRA, JOÃO VELOSO, MARIANA BRANCO e MÁRIO SOUSA. 
LOCAL: Museu Arqueológico do Carmo. 
PREÇOS Plateia (com lugares marcados) - 16€.

01 agosto 2022

Crónicas de um turista no Funchal

 Uma das vantagens da minha estadia quinzenal no Funchal é a leitura. Para não sobrecarregar a bagagem de volume não levo nenhum livro daqui, abastecendo-me do que houver na Bertrand local. No ano passado li Quando os Lobos Uivam, de Aquilino Ribeiro, que talvez não lesse no continente. Este ano abalancei-me a ler A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco, que começa desta forma poderosa e criativa:

Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, tem hoje quarenta e nove anos, por ter nascido em 1815, na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda.  

Gostei muito do livro, que tem 200 páginas e se lê num instante, tal o gosto. A citação abaixo - talvez um pouco longa - refere-se ao discurso do morgado nas cortes após o abade Estevães lhe dizer que o Estado subsidiava o teatro de S. Carlos com vinte contos de réis anuais.   

Sr. presidente, gozem nas boas horas os sátrapas da capital os deleites da sua civilização teatral. Despendam-se, arruínem-se, doudejem com essas ficções e visualidades, que relembram factos de alto escândalo que não deviam ser vistos à luz da civilização que o meu ilustre colega preconiza. Se gostam, não serei eu, homem de outros tempos e gostos, quem lhes impugne a racionalidade do seus passatempos. O que eu requeiro, em nome da justiça e da pobreza do País, é que se não sisem os povos provinciais para manutenção dos divertimentos de Lisboa. O que eu contesto é o direito de me fazerem pagar a mim e aos meus vizinhos as notas garganteadas dos ganha-pães que não têm na sua terra ofício honesto em que vivam com seriedade e utilidade comum. O que eu sobretudo lamento, Sr. presidente, é o silêncio desaprovador dos meus colegas. Sou eu só: serei eu só o vencido. Não importa! Victis honus!. As pequenas coisas tratam-nas os pequenos: Parvum parva decent. Eu abro mão das glórias prometidas ao nobre colega que, há pouco, pediu subsídio para o teatro do Porto. Dêem-lho. Desenrolem a onda aurífera do Pactolo do nosso tesouro até Braga. Quem pede subsídio para o teatro bracarense? A equidade reclama-o. O meu círculo também quer um teatro. Teatro e subsídio para todo o lugarejo onde morar um contribuinte. Estamos em vida fictícia como país independente. Somos como o sapateiro que se veste de príncipe no Entrudo. Pois bem! Comédia geral! Seja Portugal um teatro desde Monção ao cabo da Roca! Peço uma companhia italiana para a minha terra. Os meus constituintes querem provar o sabor das delícias que têm estipendiadas em Lisboa. Se eu não posso, Sr. presidente, levar-lhes a boa-nova de que vão ter estradas que os liguem à sua nação, seja-me permitida a glória de lhes levar a Lucrécia Bórgia, a incestuosa e envenenadora Lucrécia, que os há de edificar e converter à civilização. Disse.

160 anos passados após a escrita deste livro. nalguns aspectos o país não mudou muito.

JdB 


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