As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
31 outubro 2022
Das frases importantes *
30 outubro 2022
XXXI Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO - Lc 19,1-10
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus entrou em Jericó e começou a atravessar a cidade.
Vivia ali um homem rico chamado Zaqueu,
que era chefe de publicanos.
Procurava ver quem era Jesus,
mas, devido à multidão, não podia vê-l'O,
porque era de pequena estatura.
Então correu mais à frente e subiu a um sicómoro,
para ver Jesus,
que havia de passar por ali.
Quando Jesus chegou ao local,
olhou para cima e disse-lhe:
«Zaqueu, desce depressa,
que Eu hoje devo ficar em tua casa».
Ele desceu rapidamente
e recebeu Jesus com alegria.
Ao verem isto, todos murmuravam, dizendo:
«Foi hospedar-Se em cada dum pecador».
Entretanto, Zaqueu apresentou-se ao Senhor, dizendo:
«Senhor, vou dar aos pobres metade dos meus bens
e, se causei qualquer prejuízo a alguém,
restituirei quatro vezes mais».
Disse-lhe Jesus:
«Hoje entrou a salvação nesta casa,
porque Zaqueu também é filho de Abraão.
Com efeito, o Filho do homem veio procurar e salvar
o que estava perdido».
28 outubro 2022
27 outubro 2022
Poemas dos dias que correm *
Depois da esperança, qualquer paz
26 outubro 2022
Vai um gin do Peter’s ?
A GREGA DA TURQUIA MUDOU A HISTÓRIA
Nas voltas inimagináveis da vida, emergem personalidades extraordinárias, frequentemente a despontar em momentos adversos, onde as próprias circunstâncias hostis favorecem a clarificação das intenções e aptidões de cada um. É dos principais motivos por que muitos realizadores e argumentistas da Sétima Arte escolhem cenários de guerra e de enorme provação para fazer fluir as suas narrativas, sabendo quanto os ambientes de limite humano revelam melhor as personagens até ao tutano. Também assim acontece no dia-a-dia: quem conhecia a fibra de Zelensky, antes de as tropas de Putin invadirem a Ucrânia? Quem antecipava o talento de Van Gogh, que morreu apenas com uma tela vendida?
Nesta Segunda, tive o privilégio de ver um filme, entre o documentário e a ficção, que está na fase dos ajustes finais. O autor é um dentista de sucesso, que aproveitou a fase de confinamento decretada durante a pandemia covid19, para se estrear num novo hobby – o cinema! Apesar de ser um homem dos sete-ofícios, dotado de sensibilidade artística, fez um curso de cinema para se familiarizar com o vasto potencial tecnológico à disposição de qualquer amador. Com raízes no Norte do país, soube filmar com mestria a beleza das paisagens e de alguma etnografia transmontanas, que servem de cenário a uma mensagem subtil e densa onde se reflecte sobre a arte, o artista e a origem mais profunda da obra de arte. Interpelativo e originalíssimo. Quando for do domínio público, poderá ser tema de um “gin”. Mas neste início de semana, já alimentou a animada conversa do jantar que se seguiu ao visionamento do filme. Quantas pessoas terão tirado tão bom partido da pandemia (começando e acabando em mim)?
A originalidade do percurso individual confirma a condição única de cada ser humano. Mesmo os de vidas aparentemente pacatas e comuns poderão resguardar segredos e talentos inimagináveis, como foi o caso de Fernando Pessoa para quase todos. Há, depois, as existências implausíveis e fulgurantes, como a da inesperada soberana do garboso Império Romano, nascida numa família humilde da Turquia. Para lá da origem incomum para o cargo, ainda somou mais méritos e improbabilidades, como lembra um artigo gentilmente cedido pelo autor:
«A GREGA DA TURQUIA
É tão grande a multidão dos santos e santas que, ao fim de vinte séculos de cristianismo, não é possível celebrá-los todos. Destacam-se uns poucos, conforme a sensibilidade de cada época, mas todos contribuem para tornar gloriosa a história da Igreja. Entre esses santos, conta-se uma mulher do século IV, que se celebra no dia 18 de Agosto. Hoje em dia é menos lembrada, mas muitos a recordam, numa das quatro estátuas colossais que estão sob a cúpula da basílica de S. Pedro, uma em cada esquina, diante do altar papal. A estátua dela é obra do escultor Andrea Bolgi (1651).
Escultura de Santa Helena, na basílica de S. Pedro, numa das quatro esquinas diante do altar papal |
Nasceu na província romana de Bitínia, hoje no Norte da Turquia, junto ao Mar Negro, numa família pagã, pobre. Deram-lhe um nome que estava na moda, Helena, que significa de origem grega, apesar de a Bitínia não fazer parte da Grécia.
Ainda muito nova, quando trabalhava numa hospedaria, passou por lá o poderoso Tribuno romano Constâncio Cloro que reparou na elegância e na inteligência dela e a tomou como mulher. O direito romano não permitia que um Tribuno daquele estatuto se casasse com uma rapariga do povo, mas ninguém proibia que Cloro vivesse com ela. Tiveram um filho, chamado Constantino, que ainda muito novo se manifestou um líder extraordinário, adorado pelos exércitos sob o seu comando e pelo povo.
A carreira fulgurante de Constâncio Cloro elevou-o a César da Gália, da Grã-Bretanha e da Espanha, isto é, de toda a Europa romana da época, à excepção da Grécia e da Itália, e, chegou o momento em que lhe deu jeito casar-se com Teodora, filha do Imperador Maximiliano Hércules. Para isso, Cloro repudiou Helena e separou-a do filho de ambos, Constantino.
Este revés durou treze anos, até à morte de Constâncio Cloro, ocasião em que o jovem Constantino ascendeu a César e, por manobras políticas, batalhas vitoriosas e eliminação de adversários, chegou rapidamente a Imperador único de Roma. A partir desse momento, Helena tornou-se a mãe do Imperador, a quem ele se sentia profundamente ligado.
A aldeia em que Helena nasceu foi elevada a Cidade de Helena, «Helenópolis», e Constantino concedeu enorme autoridade à sua mãe e deu-lhe o título de «Augusta».
Foi nessa época que Helena se converteu ao cristianismo e realizou uma revolução na sociedade romana. Interessou-se pelos pobres, pelos doentes, pelos prisioneiros, pelos mineiros e por outros trabalhadores que viviam em condições difíceis. Era uma mulher poderosa, atraente, activa e inteligente, que sabia conviver com o povo e com os mais altos dignatários, com um grande sentido da justiça e uma autoridade inata, naquele ambiente dominado por homens violentos. Não se pense que a situação de Helena era fácil. A violência e os assassinatos eram comuns na corte e o próprio Constantino cometeu vários homicídios, até entre familiares próximos. Helena interveio, mas nem sempre chegou a tempo. A Igreja, até então perseguida, deveu-lhe muito.
Naqueles tempos, em que muitos dos que sobreviviam à nascença não chegavam aos 40 anos, Helena viveu —cheia de energia e actividade— até aos 80. Ainda nos últimos tempos, fez várias viagens, a principal das quais à Terra Santa, para se ocupar dos lugares da vida de Cristo.
Uma das medidas dos imperadores pagãos para combater o cristianismo tinha sido destruir os lugares mais sagrados da vida de Cristo: o Calvário onde foi crucificado, o túmulo, a gruta de Belém onde nascera, o Jardim das Oliveiras. Curiosamente, ao construírem templos pagãos nesses lugares, pretendendo apagar deles a memória de Cristo, documentaram para a história onde ficavam exactamente esses mesmos lugares. Helena dirigiu as obras de recuperação e as escavações para encontrar a Cruz do Salvador. Efectivamente, desenterraram no local três cruzes e encontrou-se a inscrição mandada colocar por Pilatos, «Jesus Nazareno, Rei dos Judeus», como o atestam os Evangelhos de S. Mateus, de S. Marcos, de S. Lucas e de S. João. No entanto, subsistiam dúvidas sobre qual das três cruzes era a de Jesus, que ficaram esclarecidas quando um doente ficou curado milagrosamente ao tocar numa delas. Encontraram-se também os pregos que fixaram Jesus à Cruz e, por influência da mãe, o Imperador Constantino juntou um desses pregos ferrugentos às jóias do seu diadema imperial.
É impossível resumir aqui o que Santa Helena fez na Terra Santa e noutros lugares, porque manteve uma actividade incessante até aos 80 anos. A memória da Igreja recorda sobretudo a sua relação com a Cruz de Jesus e por isso a escultura gigantesca que está diante do altar papal, na basílica de S. Pedro, representa-a segurando devotamente a Cruz. Hoje, poucas vezes se celebra a memória de Santa Helena no dia 18 de Agosto, mas é fácil lembrarmo-nos dela na grande festa do dia 14 de Setembro, chamada da Exaltação da Santa Cruz.»
Na misteriosa sequência da vida humana, claro que conta muito o que cada um faz com o tempo e as circunstâncias que lhe calham, segundo comprova o dentista talentoso, agora, realizador nas horas livres. É caso para dizer: ‘todos iguais, todos muito diferentes’, o que só não é uma constatação fantástica para quem queira impor à diversidade humana um igualitarismo redutor, necessariamente empobrecedor. Chegam a ser divertidos os desfechos menos prováveis da história, que baralham os cálculos dos mais astutos, iludidos com a miragem possessiva de controle da realidade. Quanta vaidade ou, simplesmente, quanto irrealismo sobre o magma que compõe a Vida, impregnada de uma novidade quase indomável! Felizmente, o curso do planeta azul escapa-nos, em parte, não parando de nos surpreender.
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
25 outubro 2022
Dos desequilíbrios *
O mundo não é mais do que o equilíbrio, temporariamente instável, de acções e reacções, de forças contraditórias e opostas, sendo que tudo se anula para que a esfera terrestre continue levemente achatada nos pólos, com partes desiguais de água e terra. O grande desafio é acreditarmos que o mundo se traduz, numa escala infinitamente mais pequena, naquilo que nós somos. Mesmo que não saibamos o número de forças que se digladiam internamente, há quem creia que ele é em número par, para que todas as nossas descompensações se ajustem. Há vidas globalmente equilibradas mas feitas de desequilíbrios – humores, feitios, opções, caminhos traçados. Há os excêntricos, os fora de centro, nos quais se nota essa desarmonia. Qual a diferença entre uns e outros? Não o número de forças que cada um contém dentro de si, mas o facto de serem em número impar ou em número par.
24 outubro 2022
Músicas dos dias que correm *
Já não dá pra continuar, eu não mereço
Miúda prendada, bonita, hmm
Já não da pra continuar, mama, desculpas peço
Eu tentei mas eu não consegui
Ai, desculpa
Miúda prendada, carinhosa, hmm
Já não da pra continuar, mama, desculpas peço
Ela me espera toda noite, e eu só chego à madrugada
Ela me trata muito bem, eu é que me zango à toa
Oh, meus sogros, vou
Eu sou da noite, eu sou da Nguenda
Eu sou do corpo, eu não mereço
Eu não mereço, iêiê
Me desculpa pelas vezes que não dormi em casa
Disse que estava de serviço, era mentira
A vizinha que você desconfiava, era verdade
Era verdade, hmm
Você me espera toda noite, eu só chego à madrugada
Você me trata muito bem, eu é que me zango à toa
Aiue, oh, minha mulher
Eu sou da noite, eu sou da Nguenda
Eu sou do corpo, mulher
Eu não mereço, eu não mereço
(Estava nem aí)
Quando choravas de noite sozinha
(Estava nem aí)
Quando tudo acabou pra ti
Eu sou da noite
Eu sou da Nguenda
Eu sou do corpo, mulher
Eu não mereço, eu não mereço
Eu sou da noite
Eu sou da Nguenda
Eu sou do corpo, mulher
Eu não mereço, eu não mereço
23 outubro 2022
XXX Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO - Lc 18,9-14
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus disse a seguinte parábola
para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros:
«Dois homens subiram ao templo para orar;
um era fariseu e o outro publicano.
O fariseu, de pé, orava assim:
'Meu Deus, dou-Vos graças
por não ser como os outros homens,
que são ladrões, injustos e adúlteros,
nem como este publicano.
Jejuo duas vezes por semana
e pago o dízimo de todos os meus rendimentos'.
O publicano ficou a distância
e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu;
Mas batia no peito e dizia:
'Meu Deus, tende compaixão de mim,
que sou pecador'.
Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa
e o outro não.
Porque todo aquele que se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».
21 outubro 2022
Da conversa
Praga, Setembro de 2022 |
Afiançam-me que o provérbio é alentejano: à mesa não se envelhece. Agustina Bessa-Luís, numa caracterização do nosso colonialismo, afirmou que ao português, ao contrário dos franceses ou dos ingleses, não lhe interessava impor nada, mas apenas estabelecer entrepostos.
Há, entre o provérbio alentejano e a caracterização agustina, uma similitude evidente, que assenta num elemento que lhes é comum: a conversa. Ao alentejano, homem sabedor
(a sesta é uma prova de grande sabedoria, mais do que de grande preguiça)
não lhe ocorre dizer que a comer não se envelhece. Mas sabe que à mesa se conversa, e é essa actividade que previne o envelhecimento. Por outro lado, para além de acharmos que é o sorriso que estabelece o comércio entre as pessoas, é a conversa que promove os negócios e suscita as soluções. A criação de um entreposto é a edificação de um centro de conversas. Uma negociação é um diálogo, não um combate. Nada cai pior ao dono de um entreposto do que um negociante muito avaro ou muito perdulário. Mais do que a alienação de um artigo de inventário, ao comerciante interessa a barganha.
Neste sentido, estar à mesa ou ser dono de um entreposto são actividades iguais, porque implicam a conversa. A conversa é o sorriso dos mudos, é a dança dos que não sabem agitar-se, é o abraço dos que vivem distantes. A conversar ninguém envelhece.
JdB
20 outubro 2022
Poemas dos dias que correm *
Do infinito variável
19 outubro 2022
Textos dos dias que correm
A Impossibilidade de Renunciar
Mário de Sá-Carneiro, in "Cartas a Fernando Pessoa"
18 outubro 2022
17 outubro 2022
Da serenidade e de outros coisas diversas para o dia de hoje *
Um destes dias, uma esplanada da zona, um fim de tarde ameno e uma companhia aprazível. Ao meu lado, em mesa demasiado próxima, duas pessoas conversam sem preocupações de sigilo ou pudor. É impossível não escutar o que dizem, o que respondem. Talvez mesmo o que pensam, se bem que não tenha a certeza.
Fulano (ou seria fulana?) diz para beltrano (entre parênteses igual ao prévio): sabes, juntamente com este e aquele (ou esta e aquela) és a pessoa que conheço que vive com maior serenidade. Nada parece afectar-te muito. Beltrano percebe-se que sorri, encolhe ligeiramente os ombros e balbucia o que parecem ser modéstias e fórmulas não testadas cientificamente. Mas o tema está lançado: a serenidade.
Agarremos cinco palavras que no fundo são quatro: serenidade, desgostos, inquietação, vidas fagueiras. Busquemos os livros de matemática e falemos de cálculo combinatório: arranjos, permutações e combinações. Encontramos tudo, quase como se tendesse para infinito: gente com desgostos e inquieta, gente com desgostos e serena, gente fagueira assim e assado. O que distingue uns dos outros? Agarremos nas vidas difíceis: o que está por trás dos que serenam e o que está por trás dos que se inquietam? É o trabalho feito interiormente - a fé, a confiança, a escuta própria e dos outros - ou a ausência disto ou de coisas semelhantes? Podemos falar, como dizia o interlocutor da mesa do lado, de uma química interior? Quem não consegue e se queda numa inquietação permanente tem falta de jeito, de vontade - ou falta-lhe uma química interior, uma enzima, um metal, um ião positivo?
Falar no trabalho interior (e encurto propositadamente) é condecorar o agente, apondo por baixo da medalha: por ter-se excedido no cumprimento do dever. Um excedeu-se, e serenou, o outro não o conseguiu e vive em sobressalto. E se é uma enzima (encurto e etc.)? Se é um gás raro que habita uns e não outros? Juntamos uma injustiça à injustiça da vida? O que distingue, na realidade, uns e outros? Há pessoas virtualmente incapazes - sem recurso a medicamentos - de atingirem a serenidade? É o feitio?
Ainda quis ouvir a conclusão da mesa ao lado mas já não consegui, que a conversa mudou para o sporting, talvez. Ou seria a escola dos miúdos?
***
Ontem, por motivos que se prendem com o dia de hoje, surgiu a expressão nostalgia em aniversariar. Se acreditarmos que, como dizia Vitor Hugo, nostalgia é a felicidade de estar triste, vou ter de pensar se a frase acima é verdade.
No final de Agosto de 2008, depois de uma noite memorável no Pointe (Harare, Zimbabwe) para uma sessão de Karaoke, escrevi: a alegria pode ser um túnel todo iluminado. É injusto que se veja ao longe um brilho que se extinguiu, como se algo nos dissesse que todo o gozo tem uma sombra de nostalgia. Talvez haja aqui um pouco de resposta, sei lá eu...
JdB
---
* Publicado originalmente a 30 de Outubro de 2014. Retirei o último parágrafo por ser datado e não fazer sentido nesta re-publicação.
16 outubro 2022
XXIX Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO - Lc 18,1-8
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus disse aos seus discípulos uma parábola
sobre a necessidade de orar sempre sem desanimar:
«Em certa cidade vivia um juiz
que não temia a Deus nem respeitava os homens.
Havia naquela cidade uma viúva
que vinha ter com ele e lhe dizia:
'Faz-me justiça contra o meu ad
versário'.
Durante muito tempo ele não quis atendê-la.
Mas depois disse consigo:
'É certo que eu não temo a Deus nem respeito os homens;
mas, porque esta viúva me importuna,
vou fazer-lhe justiça,
para que não venha incomodar-me indefinidamente'».
E o Senhor acrescentou:
«Escutai o que diz o juiz iníquo!...
E Deus não havia de fazer justiça aos seus eleitos,
que por Ele clamam dia e noite,
e iria fazê-los esperar muito tempo?
Eu vos digo que lhes fará justiça bem depressa.
Mas quando voltar o Filho do homem,
encontrará fé sobre esta terra?»
14 outubro 2022
Textos dos dias que correm *
Últimos conselhos de uma mãe a seu filho
«Filho, fui eu que te criei. Sustentei-te de restos, de pobreza, de humildade. Só pensei em ti: tu tens, portanto, obrigação de ouvir os últimos conselhos que te dou. Olha que és o meu filho, o filho que criei de dia, de noite, de fome, de obediência e de sonho amargo. Criei-te para que pudesses um dia pertencer às classes elevadas. Por isso sofri, para isso sonhei, para isso desapareço, agora que cumpri o meu destino.
13 outubro 2022
Das frases que se querem ouvir *
Todos nós, cada um à sua maneira, somos baronesas Blixen, pedindo aos nossos mais próximos que profiram o nosso nome. Karen representa uma variedade imensa de frases que desejamos ouvir de forma pausada e lenta: sou teu amigo, amo-te, fazes-me falta, ajuda-me, tenho saudades, não sei o que fazer, vem comigo senão perco-me, diz-me como farias, fica, quero ficar, ajuda-me, sei que sabes, nem sempre é fácil, havemos de chegar, sou feliz, sonho-te feliz, quero que digas o meu nome. Todos sabemos que eles sabem e, não obstante, queremos ouvi-lo, nem sempre realizando que por vezes as baronesas Blixen são os outros, remetendo para nós o papel de Farah.
Karen nunca mais viu Farah. Farah nunca mais viu Karen. O que os uniu para sempre não foi a casa que se encheu de refinamento europeu, a escola que ensinou o bê-á-bá às crianças, o gramofone que rompeu de beleza musical um silêncio já de si belo. O que os uniu para sempre foi a cheia que tudo levou, o fogo que tudo consumiu, a avioneta que se despenhou sobre um sonho. O que os uniu para sempre, por mais irónico que possa parecer, foi o fim de uma vida quimérica construída no sopé de uma montanha. O que os uniu para sempre foi um diálogo composto de duas frases:
- I want to hear you say may name.
- You are Karen, m'sabu.
JdB
12 outubro 2022
Vai um gin do Peter’s ?
A NATUREZA GOSTA DO SILÊNCIO
FALTA-NOS SILÊNCIO
Nestes tempos agitados e perigosos em que vivemos, urge convocar as vozes sábias, porque têm o condão de descobrir razões para acreditar no futuro, desencantando oásis de paz no meio das piores calamidades. O segredo da amiga dos indigentes, para recuperar o sentido profundo da vida, começava na desintoxicação do bruaá agitado e barulhento do dia-a-dia:
NO SILÊNCIO
«Não podemos encontrar a Deus no barulho e na agitação.
O essencial não é o que nós dizemos, mas o que Deus nos diz e o que Ele diz a outros através de nós.
Precisamos do silêncio do coração para ouvirmos a Deus em todo o lado — na porta que se fecha, numa pessoa que reclama a nossa presença, nos pássaros que cantam, nas flores e nos animais. Se estivermos atentos ao silêncio, não teremos dificuldade em orar. Há tanta tagarelice, coisas repetidas, coisas escusadas, naquilo que dizemos e escrevemos. A nossa vida de oração é afetada pelo facto de o nosso coração não estar em silêncio. Vou ter mais cuidado em manter o silêncio no meu coração, para, nesse silêncio, ouvir as suas palavras de conforto e, da plenitude do meu coração, consolar Jesus escondido no infortúnio dos pobres.
Os contemplativos e os ascetas de todos os tempos e de todas as religiões sempre procuraram a Deus no silêncio e na solidão dos desertos, das florestas e das montanhas. Jesus viveu quarenta dias em absoluta solidão, passando longas horas num coração a coração com o Pai, no silêncio da noite.
Ciclicamente, também somos chamados: a retirar-nos para um silêncio mais profundo, num isolamento com Deus; a estar a sós com Ele, não com os nossos livros, os nossos pensamentos, as nossas recordações, mas num despojamento perfeito; a permanecer na sua presença – silenciosos, vazios, imóveis, expectantes.»
Santa Teresa de Calcutá (1910-1997), in «Não há maior amor»
Ressoa claramente nos conselhos da fundadora das Irmãs da Caridade o antigo provérbio português: ‘se as palavras são de prata, o silêncio é de ouro’. Porém, esta máxima conhece uma excepção na música, mais ainda quando é interpretada por uma criança num momento especialmente doloroso, como aconteceu com a serenata deste rapazinho ucraniano, em Março de 2022. Na sua simplicidade, a fé inspirou-lhe especial confiança e mansidão para reagir à selvática agressão das tropas russas contra o seu país, devastado por um rasto de morte, tortura e saque:
https://twitter.com/i/status/1506070567455125506
Entretanto, a gravação tornou-se viral, ajudada pela tenra idade de um miúdo incrivelmente convicto, pela invulgaridade do símbolo escolhido para falar com Jesus e até pela letra do cântico entoado em ucraniano (aqui na tradução disponível): «I sing, God, for the living and for the dead. / Alleluia, alleluia, alleluia./ And I say ‘God, save us and Ukraine.’ I say to God ‘I love you’.». Antes de se afastar do enorme crucifixo de pedra, a criança faz o sinal da cruz na sequência ortodoxa, da direita para a esquerda e conclui com uma vénia.
Como era bom sermos contagiados pelo ânimo, pela esperança límpida deste pequeno sábio. A vida no planeta agradecia…
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
11 outubro 2022
10 outubro 2022
Textos dos dias que correm
A Riqueza de Espírito no Estado de Doença
Virginia Woolf, in "Acerca de Estar Doente"
09 outubro 2022
XXVIII Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO - Lc 17,11-19
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
indo Jesus a caminho de Jerusalém,
passava entre a Samaria e a Galileia.
Ao entrar numa povoação,
vieram ao seu encontro dez leprosos.
Conservando-se a distância, disseram em alta voz:
«Jesus, Mestre, tem compaixão de nós».
Ao vê-los, Jesus disse-lhes:
«Ide mostrar-vos aos sacerdotes».
E sucedeu que no caminho ficaram limpos da lepra.
Um deles, ao ver-se curado,
voltou atrás, glorificando a Deus em alta voz,
e prostrou-se de rosto por terra aos pés de Jesus
para Lhe agradecer.
Era um samaritano.
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Não foram dez que ficaram curados?
Onde estão os outros nove?
Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus
senão este estrangeiro?»
E disse ao homem:
«Levanta-te e segue o teu caminho;
a tua fé te salvou».
07 outubro 2022
06 outubro 2022
Do gosto pelo frio *
No seu ensaio Nautilus (1975, parece-me, e já citado neste estabelecimento) Roland Barthes afirma:
"O gosto pelo navio é sempre a alegria do enclausuramento perfeito, do domínio do maior número possível de objetos, do ato de dispor de um espaço totalmente finito: amar os navios é, antes de mais nada, amar uma casa superlativa, porque fechada sem remissão, e de modo algum as grandes e indeterminadas partidas. O navio é uma ação do habitat, antes de ser um meio de transporte. Ora, todos os barcos de Júlio Verne são, realmente, perfeitos ambientes de aconchego, e a grandeza de seu périplo aumenta ainda mais a felicidade de sua clausura, a perfeição de sua humanidade interior. Sob este aspecto, o Nautilus é a caverna adorável: o prazer da clausura atinge o seu paroxismo quando, no seio dessa interioridade sem fissuras, é possível ver através de uma imensa vidraça o vago exterior das águas e assim definir assim num mesmo gesto o interior pelo seu contrário."
Por seu lado, na sua História do Fado, Pinto de Carvalho refere a “(...) teoria de Mantegazza, que, discreteando a respeito da mímica como expressão dos afectos e movimentos físicos, diz que a alegria é centrífuga, enquanto que a dor é centrípeta.”
Só aparentemente há dissociação entre estas duas citações. E a ligação entre ambas é tão forte que consigo ainda juntar-lhe um outro vector sem que nada se perca: o apreço pelo frio como revelador de uma insegurança. Raciocinemos:
É muito pouco provável que o gosto pelo frio ou pelo calor esteja na ordem do conforto corporal mais físico. Isto é - ainda que não possamos afirmar, categoricamente (e cito), que "o frio é um estado de espírito" - podemos dizer que, tomadas as devidas precauções de roupa em quantidade qb, o que define se gostamos de temperaturas elevadas ou baixas é o nosso interior mais profundo, não uma infinidade de sensores à flor da pele que enviam sinais para o cérebro.
O frio, tal como a música triste, é centrípeta. O frio convida ao recolhimento, ao gorro, à gola levantada do sobretudo, à proximidade com a lareira, ao aconchego de uma manta. O calor, pelo contrário, é centrífugo: convida às janelas abertas, aos grandes espaços, às bebidas alegres, aos sorrisos rasgados, aos movimentos amplos. Assim, o gosto pelo frio (e podemos aqui acrescentar o tempo outonal, o nevoeiro, o encurtar dos dias) revela, não uma resistência à intempérie ou uma mentalidade depressiva, mas um movimento de recolhimento. Gostar do frio é gostar do conforto da casa com tudo o que isso representa. Talvez gostar do frio não seja então um simples prazer - como ouvir música ou cozinhar ou conviver com amigos - mas também uma fragilidade, uma necessidade. E se entendermos que o movimento centrípeto da existência humana é a tal "felicidade da clausura", podemos então afirmar que o frio é uma espécie de Nautilus. Gostar do frio é ter a necessidade do "perfeito ambiente do aconchego." E nesse sentido, a nossa apetência pelas temperaturas altas ou baixas é reveladora, apenas, de uma aparente (in)segurança.
Gostar do frio (ou do nevoeiro, ou do cair da folha) ou de calor não revelam apenas resistências físicas, mentalidades depressivas ou alegres. O gosto pelas temperaturas altas ou baixas diz-nos muito mais das pessoas do que se pensa. Não ficamos tristes porque gostamos do frio nem gostamos do frio porque somos tristes. Não há aqui gosto, como quem se atira a um pop ou a uma milonga, mas necessidade. "Apreciar" o frio e, nesse sentido, a dor centrípeta é, tão só, uma metáfora para a procura de uma segurança.
JdB
* publicado originalmente a 8 de Outubro de 2015, talvez não estivessem 30ºC...
05 outubro 2022
04 outubro 2022
Crónicas de um participante de congresso internacional (III)
Parte desta crónica tem um tom vagamente elitista. Talvez eu tenha sido afectado por um excesso de cansaço aquando do momento que suscita esta primeira parte.
À minha mesa num jantar restrito estão pessoas com formação universitária: vários médicos, uma arquitecta, uma bióloga. São pessoas urbanas, com um certo mundo. A mesa está posta com algum requinte: guardanapos de pano, copos diversos, menu impresso, prato do pão.
Olho à volta e os meus comensais tiram o pão indiscriminadamente, sendo que a maioria dos que come pão o tira do lado que está à sua direita. A uma dada altura alguém reclama - ou apenas levanta uma interrogação - e eu explico (foi o cansaço que me levou à explicação, não a genica educativa): "o prato do pão está sempre à esquerda, porque os copos estão sempre à direita." E acrescento: "o protocolo tem sempre por trás uma razão lógica". As pessoas acham graça e há alguém que diz: "mas se tirarmos todos do mesmo lado - mesmo que seja do lado direito - então está tudo bem." O meu cansaço aumenta: "Não. O lado do prato do pão não é opcional; já o guardanapo fica do lado direito ou do lado esquerdo, consoante uma tradição francesa ou inglesa." Os meus colegas riem-se, e dizem que é por isso que eu sou presidente de uma organização mundial.
Não há aqui elitismo, mas um olhar sociológico. Será que as pessoas, apesar de urbanas, sabem o que é um prato do pão, a etiqueta, o protocolo, as razões por trás das coisas serem feitas assim ou assado? E saberão que estas coisas também são importantes, para não cairmos numa certa cafrealização?
***
Quando comecei nestas andanças internacionais cruzava-me com um israelita. Perguntei-lhe um dia: "não comes porco?" E ele respondeu: "claro que como!". Agora tenho um colega sul-africano que é judeu. Percebi isso quando o convidei para um webinar a um sábado e ele recusou, dizendo que a religião dele não permitia. Voltei a perceber quando ele disse que chegaria mais tarde a esta conferência internacional por causa do ano novo judeu.
Sábado, no final de uma sessão, o meu colega quer fazer uma pergunta. Sugerem-lhe que se aproxime do microfone mas alguém diz que ele não pode, por causa da religião. Fui tentar perceber o que tinha o microfone a ver com o ser judeu. A resposta foi simples: é sábado, e os judeus não podem fazer nada que se assemelhe a trabalho; ora, aproximar-se de um microfone e fazer uma pergunta é considerado trabalho. Fazer em voz alta não é. Estamos sempre a aprender qualquer coisa.
JdB
03 outubro 2022
02 outubro 2022
XXVII Domingo do Tempo Comum
EVANGEHO - LUCAS 17,5-10
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
os Apóstolos disseram ao Senhor:
«Aumenta a nossa fé».
O Senhor respondeu:
«Se tivésseis fé como um grão de mostarda,
diríeis a esta amoreira:
'Arranca-te daí e vai plantar-te no mar',
e ela obedecer-vos-ia.
Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a guardar gado,
lhe dirá quando ele volta do campo:
'Vem depressa sentar-te à mesa'?
Não lhe dirá antes:
'Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires,
até que eu tenha comido e bebido.
Depois comerás e beberás tu.
Terá de agradecer ao servo por lhe ter feito o que mandou?
Assim também vós,
quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei:
'Somos inúteis servos:
fizemos o que devíamos fazer'».
Acerca de mim
- JdB
- Estoril, Portugal