31 julho 2020

Textos dos dias que correm

O dom de ter uma pessoa boa junto de nós

Se tivesse de escolher a mais essencial entre todas as qualidades a procurar na pessoa com quem partilhar a vida, direi que a coisa, em absoluto, mais importante seria encontrar, se possível, uma pessoa boa.

Não que sejam irrelevantes a beleza, a inteligência, o espírito empreendedor, a capacidade de ter sucesso; mas nenhuma destas qualidades, por si só, é a crucial na vida em comum. Ao longo dos anos convenci-me de que para viver bem em conjunto e amar a cada dia como se fosse o primeiro, é preciso, sobretudo, aprender a tornar-se uma pessoa boa.

A bondade não está muito na moda, e talvez nunca tenha estado; com efeito, é percebida como uma característica dos perdedores e dos fracos, daqueles que estão bem com todos para não terem de tomar posição, ou de quem não é capaz de se pôr do seu próprio lado, de defender e afirmar os seus direitos.

A bondade parece, por isso, uma qualidade triste, reservada a quem não possui outros, e bem mais interessantes, recursos. Além disso, muitas vezes confundem-se bondade e excesso de bons sentimentos: uma espécie de indiferentismo superficial, complacente e enfadonho, que, seguramente, não pode fascinar ninguém.

Mas que quer dizer ser bom? Romano Guardini surpreende-nos com esta fulgurante definição: «Um homem bom é alguém que tem boa opinião da vida». Ter uma boa opinião da vida não é uma coisa banal, porque a maior parte de nós considera muito mais natural falar mal da vida e ter dela uma má opinião.

A vida, de resto, está repleta de dificuldades: limites, desgraças, prepotências, injustiças estão na ordem do dia; as pessoas ferem-nos, as coisas resistem-nos, os contratempos irritam-nos. A coisa mais óbvia parece ser blindarmo-nos, adotando defesas que são frequentemente defesas preventivas, úteis para evitar ficar feridos.

A muitos, depois, a vida surge como uma promessa não mantida; passada a infância, sobretudo hoje tão amimada, e a adolescência, sobretudo hoje tão desresponsabilizada, a vida real com as suas responsabilidades e os seus limites aparece-nos como desilusiva e injusta: quase sem nos darmos conta, assumimos, assim, uma atitude de crédito perene, que torna o coração duro e invejoso para quem nos parece mais favorito.

É precisamente aqui que entra em jogo a diferença de quem tem o coração bom: a pessoa boa, que consegue manter em todas as situações uma boa opinião da vida, é capaz de encontrar em cada circunstância o bem que é possível encontrar, sabe ler os dons, mesmo que pequenos, que cada dia traz consigo, sabe rejubilar com o bem dos outros, sabe apreciar cada rebento que vê nascer e encoraja-o a crescer.

A confiança que um coração bom tem para com a vida permite ao bem multiplicar-se, e ao mal de permanecer confinado, sem se alastrar ou levar a melhor; permite ler as razões dos outros e assumir o seu ponto de vista, e, portanto, de tentar perdoar, ou, pelo menos, nunca alimentar o rancor.

O coração bom dispõe-nos de maneira fundamentalmente positiva diante de qualquer pessoa ou acontecimento, e, por isso, dispõe-nos a ser, na medida do possível, também felizes.

Ter próximo de nós uma pessoa boa é um dom precioso: não é difícil amar pessoas assim. Portanto, se desejamos ser amados, talvez a melhor coisa seja treinar o nosso coração a tornar-se bom; também o ser-se bom treina-se: dia após dia, procurando cuidadosamente o belo e o bem que, de alguma forma, passam junto de nós, predispondo o olhar para a parte positiva dos outros, aprendendo a mandar embora o fastídio dos pequenos e grandes contratempos sem deixar que nos estraguem o dia.

E cultivando também o nosso senso de humor, que nasce de um olhar bom sobre a fragilidade e estranheza do humano: como também as neurociências nos ensinam, uma gargalhada de coração dá ao nosso corpo e à nossa psique muitos mais benefícios do que tantos medicamentos.


Mariolina Ceriotti Migliarese
Neuropsiquiatra infantil, psicoterapeuta
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins

30 julho 2020

Textos dos dias que correm

Algures no céu, entre Funchal e Lisboa


Se eu fosse eu

Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.

E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.

Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.

“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.

Clarice Lispector in A Descoberta do Mundo

29 julho 2020

Vai um gin do Peter’s ?

NESTAS FÉRIAS, DÊ ATENÇÃO À VIDA

Há uma década, veio de Roma um par de conselhos sobre a riqueza muitas vezes subestimada das férias. Para lá do puro e legítimo descanso, merece ser oportunidade de renovação lenta, profunda, como no restauro minucioso de uma peça de arte, que sairá rejuvenescida do atelier ao recuperar o colorido e a luminosidade originais. Em Portugal, temos por onde arejar entre as nortadas frescas ou o cheiro intenso da maresia nas praias a Norte e os mergulhos na água lisa e quente do areal algarvio. Há para todos os gostos neste país marítimo, onde mesmo as praias fluviais abundam para gozarmos os dias solarengos sob o céu turquesa do Verão português.

A novidade dos conselhos está na premissa de que as férias têm enorme potencial para ser um momento fecundo, e não apenas a soma de pequenos prazeres fugazes pulverizados em mil variantes, o que lhes aumentaria a brevidade. Para ampliar o gozo das férias, etapa maravilhosa e insubstituível de cada ano, Bento XVI desfiou quatro dicas. Primeiro, recomendou a suspensão do corrupio das nossas agendas sobrecarregadas, para vivermos de modo novo a relação com os outros e com Deus. Depois, apontou à natureza, para saborearmos a sua beleza tranquila (em geral) e cultivarmos o dom de perscrutar os sons e a vida semi-escondida das paisagens naturais, interpretando a linguagem e os sinais sábios, mas subtilíssimos, da criação. Em terceiro, pensou nos viajantes e peregrinos, desafiando-os a aguçar a curiosidade através de um olhar inteligente e da abertura de coração a civilizações e a séculos longínquos. Antevendo as atribulações de um terceiro milénio inaugurado pelo ataque perverso ao Ocidente na derrocada violenta das Torres Gémeas, o Papa pediu uma oração pela humanidade nos monumentos-templos do itinerário cultural de quem viaje. Hoje, em ambiente mais tenso, num nível abertamente confrontacional, o pedido mantém actualidade. Por último, lançou uma proposta invulgar para pedirmos a Deus que nos liberte da carga desnecessária acumulada ao longo do ano, i.e., a maluquice (de facto, está para lá da mera tentação) de chegarmos a todo o lado e não perder nada. Assim elencou dicas simples para nos aproximarmos do sentido da Vida, da nossa vida, sugerindo que pedíssemos aos Céus um coração arguto para nos «essencializarmos». 

Num texto publicado, em português, no ano de 2007, Bento XVI aprofunda a reflexão em torno das férias, fazendo a apologia explícita da paragem, em alerta ao excesso de produtividade cultivado pela nossa civilização. Isto dito por um alemão, tem graça… O título é auto-explicativo, como curiosa é a necessidade de esclarecer que não pretende defender a preguiça, mas limpar o significado de termos desgastados e apoucados pelo mau uso, mudando a hierarquia das virtudes. No fundo, desfaz preconceitos e modas:

                                                                   
                                                                      «PODER DESCANSAR 

Os discípulos colocaram a Jesus o problema do stress e do descanso. Os discípulos regressavam da primeira missão, muito entusiasmados com a experiência e com os resultados obtidos. Não paravam de falar sobre os êxitos conseguidos. Com efeito, o movimento era tanto que nem tinham tempo para comer, com muitas pessoas à sua volta.

Talvez esperassem ouvir algum elogio por tanto zelo apostólico. Mas Jesus, em vez disso, convida-os a um lugar deserto, para estarem a sós e descansarem um pouco.

Creio que nos faz bem observar neste acontecimento a humanidade de Jesus. A sua acção não dizia só palavras de grandeza sublime, nem se afadigava ininterruptamente por atender todos os que vinham ao seu encontro. Consigo imaginar o seu rosto ao pronunciar estas palavras. Enquanto os apóstolos se esforçavam cheios de coragem e importância que até se esqueciam de comer, Jesus tira-os das nuvens. Venham descansar!  

Sente-se um humor silencioso, uma ironia amigável, com que Jesus os traz para terra firme. Justamente nesta humanidade de Jesus torna-se visível a divindade, torna-se perceptível como Deus é.  

A agitação de qualquer espécie, mesmo a agitação religiosa não condiz com a visão do homem do Novo Testamento. Sempre que pensamos que somos insubstituíveis; sempre que pensamos que o mundo e a Igreja dependem do nosso fazer, sobrestimamo-nos. 

Ser capaz de parar é um acto de autêntica humildade e de honradez criativa; reconhecer os nossos limites; dar espaço para respirar e para descansar como é próprio da criatura humana. 

Não desejo tecer louvores à preguiça, mas contribuir para a revisão do catálogo de virtudes, tal como se desenvolveu no mundo ocidental, onde trabalhar parece ser a única atitude digna. Olhar, contemplar, o recolhimento, o silêncio parecem inadmissíveis, ou pelo menos precisam de uma explicação. Assim se atrofiam algumas faculdades essenciais do ser humano. 

O nosso frenesim à volta dos tempos livres, mostra que é assim. Muitas vezes isso significa apenas uma mudança de palco. Muitos não se sentiriam bem se não se envolvessem de novo num ambiente massificado e agitado, do qual, supostamente, desejavam fugir. Seria bom para nós, que continuamente vivemos num mundo artificial fabricado por nós, deixar tudo isso e procurarmos o contacto com a natureza em estado puro.

Desejaria mencionar um pequeno acontecimento que João Paulo II contou durante o retiro que pregou para Paulo VI, quando ainda era Cardeal. Falou duma conversa que teve com um cientista, um extraordinário investigador e um excelente homem, que lhe dizia: "Do ponto de vista da ciência, sou um ateu...". Mas o mesmo homem escrevia-lhe depois: "Cada vez que me encontro com a majestade da natureza, com as montanhas, sinto que Ele existe". 

Voltamos a afirmar que no mundo artificial fabricado por nós, Deus não aparece. Por isso, temos necessidade de sair da nossa agitação e procurar o ar da criação, para O podermos contactar e nos encontrarmos a nós mesmos.  

  In «Esplendor da Glória de Deus» - Card. J. Ratzinger,
p.161 na edição da Editorial Franciscana.

As férias de gosto atlântico, para a maioria, evocam a poesia aquática e solar de Sophia:
         
         «OS DIAS DE VERÃO

Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é o nosso corpo

Tempo é de repouso e festa
O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é o nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade
 Justa é a forma do nosso corpo»


Sophia de Mello Breyner Andresen
in Obra Poética, Volume III


Por memórias pessoais, um repertório muito estival (embora vá bem todo o ano!) inclui «The Most Beautiful Girl» e este excerto de um concerto de Freddie Mercury. Que saudades de ambos! Na estreia de Prince em Portugal, a 15 de Agosto de 1993, brilhou em Alvalade para um público esfusiante, mas saudavelmente tranquilo. Nunca tinha ouvido um sistema de som tão sofisticado em concertos ao ar livre. Ainda havia boa música nos estádios de futebol! 




Amizade, leitura, natureza, incursões culturais e sabedoria para desacelerar a fundo são boas dicas para nos refrescarmos e voltarmos ao quotidiano com nova inspiração. Talvez o dom maior nos chegue pelos versos de Sophia ao confiar na possibilidade de em tudo poder aflorar Eternidade. Era impossível pedir mais ao tempo! BOAS FÉRIAS.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

28 julho 2020

Moleskine

Funchal, Julho de 2020

TAP

Já aqui o disse: tive a sorte de começar a viajar cedo - e na TAP: serviço impecável, comidas quentes, menu em papel de boa gramagem, opção de refeições, talheres de metal. Nada é eterno, e a necessidade de cortar custos, o desaparecimento de uma certa aura de aventura na vida de uma hospedeira, o desejo do turismo de massas e o 11 de Setembro deram cabo de tudo. Passou a haver uma sandes má de atum ou um pacotinho com sete bolachas salgadas. Para uma certa imagem que ainda tinha na memória, a ida ao Funchal foi um desastre: não havia refeições quentes, não havia sandes nem salgadinhos; havia, isso sim, comida paga. Não acho que seja uma vergonha ou um disparate - foi apenas uma tristeza. Como sempre, a expectativa (ainda que já muito pequenina...) é mãe da desilusão. Acresce ainda que no regresso houve falta de comida para vender...

Padre

Contam-me uma história curiosa e muito verdadeira: falam a um padre de província sobre o fim do celibato dos padres ou alguma coisa do género. O padre empertiga-se, irrita-se e diz: é fácil viver sem nada; sabes o que é a dificuldade de viver com pouco? Não me lembro do que suscitou a pergunta, mas gostei sobretudo da resposta.

Uber

Usei Uber para ir para o aeroporto; usei Uber no Funchal. Serviço sempre 5 estrelas - bom e barato. Chamo um Uber para o trajecto aeroporto - casa. Motorista simpático mas com uma conversa estranha: é hipertenso, teve muitos amigos que morreram de covid 19, a irmã, o cunhado e os sobrinhos (ou familiares semelhantes) apanharam todos o virus mas safaram-se. Questiono-me se devia sair na 2ª Circular ou se confio no destino - ou se acredito que ele é apenas um homem com uma conversa pouco convidativa. 

JdB


27 julho 2020

Textos dos dias que correm

O laborioso primado da consciência

Declarou o concílio Vaticano II:

«No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo.  O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser» (“Gaudium et spes”, 16).

O que é, então, a consciência? É a voz de Deus em cada ser humano criado à sua imagem e semelhança, capaz de bem e de mal. É, para cada pessoa, o critério último e definitivo do seu pensar, falar e agir.

No hebraico bíblico, não há um termo correlativo do nosso “consciência”. Na tradução latina das Escrituras, o termo “conscientia” aparece 35 vezes, das quais só três no Antigo e 32 no Novo Testamento. Os termos hebraicos “conhecer” (“jada’) e “coração” (“leb”), como também o grego “syneídesis”, confluem com a sua riqueza semântica para o nosso conceito de “consciência”. Em particular, uma expressão fundamental é «coração que escuta» (1 Reis 3,9), pedido de dom a Deus por Salomão, para poder discernir como concretizar a sua função de rei: o coração capaz de escutar a voz da verdade, a voz de Deus que lhe indica o caminho. Paulo, por seu lado, afirma: «Tudo aquilo que não cem da consciência é pecado» (Romanos 14,23), palavras retomadas pelo axioma: «Quem age contra a sua consciência merece a condenação».

A consciência é voz de Deus, eco da Palavra que ressoa na intimidade, ainda que sempre limitada e condicionada pelo ser humano. Ela é um eco do Espírito Santo, eco reflexo da liberdade de que toda a pessoa é dotada, sempre condicionado pela própria condição humana. Certamente que para exercer a consciência é preciso poder dizer «eu», e, portanto, condição prévia é que haja um espaço de liberdade para este «eu». Isto, no entanto, na consciência de que sobre cada pessoa pesam vários condicionamentos: a história social, familiar, pessoas, as estruturas que nos plasmam, a cultura em que estamos mergulhados, as alterações devidas ao pecado…

É sobre o terreno da consciência que todos os humanos deveriam confrontar-se para caminhar juntos. É a consciência o órgão a exaltar para indicar a verdadeira dignidade de cada homem e de cada mulher: um órgão que deve ser absolutamente exercido, para deixar às novas gerações um esboço de criticismo, de resistência, para as habilitar às escolhas que terão, com responsabilidade e criatividade, de assumir e exercer.

Por isso, os cristãos não esqueçam a realidade da consciência, porque é nela que Deus pode falar:
- quando lê a Escritura, saiba que na sua consciência elas podem tornar-se Palavra endereçada pessoalmente a ele;
- quando pensa, exercite-se no discernimento, interrogando-se longamente, em vez de procurar respostas fáceis. Com efeito, é na consciência que, através do exercício da crítica e do confronto, se pode abrir o caminho para a verdade;
- quando reza, procure antes de tudo escutar mais do que falar a Deus. A voz de Deus é um «silêncio subtil» (1 Reis 19,12), e, por vezes, se Ele parece mudo, é porque a surdez do crente se torna impedimento a uma verdadeira escuta;
- quando tem de fazer escolhas, invoque o «Espírito de sabedoria e de discernimento» (Isaías 11,2), dom sempre renovado a quem o invoca (cf. Lucas 11,13). É o Espírito que ilumina e dá força e coragem, parrésia.

A consciência não é uma voz que nos recorda uma lei “já feita”, a aplicar de maneira mecânica, mas pede-nos criatividade e profecia no discernir situações novas, sempre iluminadas pelo princípio fundamental do amor. Por isso, é inviolável, é um santuário, é o tesouro que cada humano recebeu de Deus como dom.

A consciência deve ser ajudada a descobrir os seus erros, deve confrontar-se, mas nenhuma autoridade humana tem o direito de pisar a consciência pessoal. Nenhuma autoridade, no limite nem o papa, segundo a famosa frase de John Henry Newman: «Se eu tivesse de fazer um brinde à religião após um almoço …, então brindaria pelo papa. Mas primeiro pela consciência, e depois pelo papa».


Enzo Bianchi
In Monastero di Bose
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 21.07.2020

26 julho 2020

17º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 13,44-52

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
disse Jesus às multidões:
"O reino dos Céus é semelhante
a um tesouro escondido num campo.
O homem que o encontrou tornou a escondê-lo
e ficou tão contente que foi vender tudo quanto possuía
e comprou aquele campo.
O reino dos Céus é semelhante
a um negociante que procura pérolas preciosas.
Ao encontrar uma de grande valor,
foi vender tudo quanto possuía e comprou essa pérola.
O reino dos Céus é semelhante
a uma rede que, lançada ao mar,
apanha toda a espécie de peixes.
Logo que se enche, puxam-na para a praia
e, sentando-se, escolhem os bons para os cestos
e o que não presta deitam-no fora.
Assim será no fim do mundo:
os Anjos sairão a separar os maus do meio dos justos
e a lançá-los na fornalha ardente.
Aí haverá choro e ranger de dentes.
Entendestes tudo isto?"
Eles responderam-Lhe: "Entendemos".
Disse-lhes então Jesus:
"Por isso, todo o escriba instruído sobre o reino dos Céus
é semelhante a um pai de família
que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas".

24 julho 2020

Das coisas ou pessoas que curam tudo


A Rádio Amália, de que sou ouvinte frequente, anuncia um xarope (é pelo menos algo em forma  líquida) que faz milagres em quem o toma, pois cura uma variedade grande variedade de doenças (e cito de cor): hemorróidas, tensão alta, problemas cancerígenos, diabetes, etc. Volta e meia ouve-se um testemunho de alguém que tinha achaques e que, depois de tomar este benfazejo líquido, melhora substancialmente. 

O Professor Mamaduba, com quem me cruzei ontem no Funchal (ou seria um colaborador dele?) é o xarope da Rádio Amália, dada a plêiade de achaques da alma ou do corpo que ele ataca e resolve. A diferença? Não há testemunhos, ninguém vem a público dizer que recorreu ao Professor Mamaduba (que colégio, agremiação ou comissão o considera um dos melhores profissionais em Portugal? E profissional de quê?) e que foi beneficiário da sua competência, que curou um alcoolismo em 24 horas ou um problema amoroso em 7 dias. É importante realçar que, na escala profissional do Prof. Mamaduba, um feitiço demora 7 vezes mais a resolver do que a inveja ou a impotência sexual. Esta diferença diz muito das capacidades do referido profissional.

Por último, e não sendo um sicário das Finanças, gostaria de saber o volume de facturação do cavalheiro, só para aquilatar a dimensão da clientela.

JdB

23 julho 2020

Dos arautos de um tempo que há-de vir


Numa dada altura da pandemia criou-se uma ideia de que a humanidade poderia ter sido confrontada - no melhor sentido da palavra - com uma epifania. O teletrabalho revolucionaria - para melhor - a vida profissional das pessoas; a experiência do confinamento permitira descortinar as virtudes de uma existência lenta, sem desperdício nem consumismo; as relações entre os seres humanos mais próximos enchera-se de uma dimensão benfazeja, repleta de cumplicidades e passeios ao fim da tarde. Acontecera, à escala global, o que acontece às pessoas confrontadas com uma morte iminente: tornam-se melhores, devotando uma especial atenção aos pormenores, às rotinas suaves, ao relacionamento de proximidade. Até o desaparecimento do beijo ou do aperto de mão parecia contribuir para essa felicidade tão surpreendente.

O desconfinamento trouxe o tema para as conversas de jantar ou de café: a comunidade dos Homens não voltaria a ser igual, pois o maldito vírus constituía-se como a salvação do planeta, da espécie, do mundo. Seríamos mais solidários, mais ambientalmente correctos; as restrições à circulação poriam ordem no turismo de massas, devolvendo a cidade aos cidadãos, expurgando o alojamento local como quem expurga a formiga branca: sem hesitação nem desejo de poupança.

Como já tive oportunidade de escrever neste estabelecimento, dentro de mim há um optimista acanhado; tão acanhado que quase nunca surge, cedendo o palco ao pessimista que me habita há mais de seis décadas. Ao contrário de todos os comentadores da televisão, sorridentes e confiantes com um renque de livros por trás, não acredito na redenção da humanidade; acredito, isso sim, que o virus suspendeu o pior que nos habita, sendo que a suspensão dura o tempo que medeia o grito há virus e o grito há vacina. Vi gente assim: vítimas de uma doença grave tornam-se melhores; logo que se curam voltam ao mesmo...

Como detectamos se houve ou não mudança nos comportamentos? Estando atentos, percebendo que nada disto é repentino, mas gradual: pessoa a pessoa, grupo a grupo, comunidade a comunidade. A saga obscena da mudança da Cristina Ferreira da SIC para a TVI é um sinal: podemos falar de números astronómicos pagos a quem se dedica a entreter gente ou da ética subjacente ao rompimento unilateral de um contrato. A saga obscena da contratação de Jorge Jesus é outro sinal: leio que o custo do frete do avião pode ter ascendido aos 100.000€, e penso se não haverá voos diários do Rio de Janeiro para Lisboa. A chegada de Jorge Jesus a Tires, rodeado de polícias armados e com viseiras, como se se tratasse de uma testemunha em risco ou de um mafioso em fuga é um sinal da nossa menoridade, iniciada (ou continuada....) por Marcelo, Costa e Ferro Rodrigues a anunciarem jogos de futebol como quem anuncia a cura para o cancro.

Mais do que treinador competente de futebol ou entertainer competente de televisão, Jorge Jesus e Cristina Ferreira são os arautos de um tempo que há-de vir, ou que há-de regressar: o tempo do pão e do circo. A mudança das pessoas estará restringida a um nicho, como o novo cinema turco ou a cozinha molecular. 

JdB 

     

21 julho 2020

Textos dos dias que correm *

Sete palavras para uma semana

Biblioteca
Mas será que os leu todos?
Quando vês uma livraria imponente, talvez atrás de uma pessoa que fala da sua casa para o telejornal, também fazes a mesma pergunta?
A resposta inteligente deu-a Umberto Eco, que tinha 30 mil livros: não.
Porque a biblioteca não é o apêndice do nosso ego, mas um instrumento da nossa humildade, um instrumento de procura.
A vida espiritual alimentar-se de Palavra, da Escritura, da tradição da Igreja, da vida dos santos.
Conheces todos?
Leste todos?
Recordas todos?
Não, porque o Evangelho não é o apêndice do teu ego, e os versículos que sabes de cor não são a patente da santidade.
A vida interior é busca contínua, humilde e tenaz, que, no entanto, precisa de uma boa biblioteca; não de muitos livros, mas de livros que contenham muito.
Não livros espessos, mas autores de espessura, não páginas em papel de açúcar, mas páginas ásperas capazes de arrancar a pele seca que já deixou de transpirar.
Boa leitura.

Deus
Nestes tempos complexos, muitos recordaram-me um episódio particular em que sentiram a presença de Deus junto deles, uma interseção de “casos” que desenham uma mão do alto.
Tudo isto é belo e importante, mas não é um episódio de Graça que faz a diferença, mas uma relação de Graça.
Para Deus, tu és uma ideia fixa, não o capricho de um momento.
Para Deus, tu és um pensamento constante, não uma intuição passageira.
Para Deus, tu vales a sua vida, não uma palmada nas costas e vai em frente.
Deus ama-te segundo por segundo, como podes pensar que só esteve junto de ti em determinado momento do passado?
Não confundir aquilo que percecionas com a sua verdade, aquilo que sentes com a sua constância.

Dormir
Ontem, à tarde, um médico veio à paróquia para orar diante do Santíssimo.
A certo ponto, no silêncio da igreja vazia, ouço a respiração lenta e pesada de uma pessoa que dorme.
Era ele.
Exausto, e ouso esperar, um pouco consolado.
A vida espiritual é exatamente isto: vida normal que se conduz pelo bem comum até ao esgotamento, mas, um instante antes de se adormecer, entrega tudo nas mãos do Todo.
Como se conclui o teu dia?


7h40, toca o intercomunicador.
- Sim?
- A igreja não está aberta.
- Abre às oito, minha senhora.
- Hoje é a primeira sexta-feira do mês.
- Abre às oito também na primeira sexta-feira do mês.
- A igreja não está aberta.
A fé é paciência para quem faz de si mesmo a regra do mundo.
A fé é descer à pressa para abrir a igreja.
A fé é ficar em silêncio diante de uma idosa que devia estar em casa, e que toca a campainha às 7h40.
A fé é feita de pequenas coisas, de encontros inoportunos, e de uma boa dose de ironia.
Mas, sobretudo, a fé é impaciência de encontrar o Senhor.
Às 7h40.

Férias
As férias, que já começaram ou estão prestes a começar, serão diferentes para muitos, talvez mais próximas de casa, talvez mais breves, diferentes por muitas razões.
O que são as férias para a vida interior?
São uma prova de liberdade.
As férias são tempo livre, são o tempo da liberdade, o tempo em que experimentas por ti próprio o que significa para ti ser livre, como o teu tempo se torna tempo de Deus, ou o tempo em pões Deus de parte.
A liberdade das férias não deve servir para deixar de pensar nas coisas que deixaste em casa, mas para pensar naquilo que verdadeiramente queres alcançar na tua vida.
O tempo da liberdade é o tempo em que escolhes onde colocar a tua liberdade, o teu coração, qual é realmente o teu tesouro.
Livres para se ser enamorados, a vida interior em férias está toda aqui.

Igreja
Para conhecer verdadeiramente alguém é preciso estar com ele durante tempo suficiente.
Tornamo-nos amigos numa turma não depois do primeiro dia de escola, a equipa não se faz a seguir ao primeiro treino.
E não ficamos cristãos estando simplesmente na igreja, no edifício, alguns minutos por semana.
A vida espiritual sem a Igreja não é possível, mas a Igreja não é o papa ou alguns minutos dentro de um edifício.
A Igreja é feita de pessoas concretas com quem é necessário desencontrar-se e encontrar-se.
A paróquia devia ser isto: um lugar, mas sobretudo pessoas, de idades diferentes, a conhecer e a dar-se a conhecer.
Hoje, muitas paróquias não são assim, já não o são, ou talvez ainda o sejam, mas não para muitos, só para os poucos que não encontraram outro espaço onde se colocar.
A vida espiritual precisa da Igreja, e a Igreja, para existir, precisa também de ti. Paróquia, associação, movimento.
Aquilo que considerares melhor.
Não há cristianismo sem Igreja, não há Igreja sem ti.
Não há cristianismo sem ti, não és cristão sem a Igreja.
Não é uma equação, é uma condição. Imprescindível.

Maligno
Como é que age preferencialmente o Demónio? Desacreditando Deus.
É o seu desporto favorito, assim o praticou desde o início, se recordarmos o que aconteceu no jardim, com a árvore e o fruto.
Desacreditar Deus faz-se de muitas maneiras, nunca diretas, nunca vulgares, nunca grosseiras. Deus desacredita-se como merece, isto é, de maneira divina.
Deus desacredita-se fazendo-o mais omnipotente do que é, ou seja, descrevendo-o como mais poderoso do que a tua liberdade.
Mas Deus quis que o teu sim e o teu não fossem para Ele barreira intransponível.
Deus desacredita-se fazendo-o mais justo do que é, isto é, descrevendo-o como paladino da justiça e da lei.
Mas Deus ama mais o pecador da norma que ele pode ter violado, por isso não castiga e não pune.
Deus desacredita-se tornando-o mais belo do que é, isto é, descrevendo-o de tal maneira divino, que dele se elimina qualquer vestígio humano, e tornando-o inacessível.
Mas Deus é verdadeiro homem, e por isso não tem segredos incognoscíveis e horizontes inalcançáveis para ti.
A vida espiritual é também conhecer as táticas do Maligno. Conhecê-las é suficiente para as derrotar.
Vês como é tão pouco poderoso, tão injusto e tão mau?
Esquece-o, não veste Prada. Tu, veste-te de Espírito Santo, uma moda eterna.


P. Luca Peyron
In Facebook
Trad. / edição: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 20.07.2020

20 julho 2020

Da relação entre a Madeira e a Cristina Ferreira


Funchal, Estrada Monumental (18 de Julho de 2020, pela hora de almoço)
Funchal, Estrada Monumental (18 de Julho de 2020, pelas 22.30 horas)

A vantagem de termos um estabelecimento como o Adeus, até ao meu regresso... reside no facto de podermos dar-nos ao luxo dos maiores dislates intelectuais. Visto e lido por uma pequena comunidade persistente de fiéis seguidores (cuja motivação está para além do explicável racionalmente), aqui posso escrever sobre cebolas roxas, mas posso escrever sobre a relação que há entre essas mesmas cebolas roxas e o principado do Mónaco.

Na minha mente estava latente a ideia de ir escrevendo sobre a Madeira, já que me encontro no Funchal; porém, o bombardeamento de que eu e todos os portugueses - pelo menos os menos interessados neste tema - fomos vítimas com as notícias da mudança da Cristina Ferreira da SIC para a TVI levam-me a escrever sobre a Madeira (a tal "cebola roxa") mas na relação com a Cristina Ferreira (o tal "principado do Mónaco", embora em versão menos ruidosa). 




Metaforicamente, as fotografia do Reid's Palace Hotel e do letreiro pendurado numa porta voltada para a rua são legendas perfeitas para o estado da Madeira: está tudo fechado. Metaforicamente, as fotografias da Estrada Monumental, tiradas a um sábado de Julho, são legendas perfeitas para o estado da Madeira: está tudo vazio.

Anda-se pelas ruas, pelo Mercado dos Lavradores, por zonas de restaurantes ou de lojas e tudo se resume a isto: o que não está fechado está vazio. A um sábado à noite vimos restaurantes com uma ou duas mesas ocupadas, outros sem ninguém; muitos - das mais diferentes categorias - fechados, sem vislumbre, talvez, de reabertura. Há hotéis fechados ou semi-vazios. Num deles, numa fiada grande de varandas deitadas para o mar, só havia luz num quarto... Numa zona como a Madeira (ou como o Algarve, noutra proporção) a falta de turistas não é um prejuízo - será uma tragédia. 

***

O fim de semana português foi dedicado a Cristina Ferreira. O Observador, cujo jornal sigo, fez uma cobertura ampla e, diria eu, exagerada. Em boa verdade, só nos faltou saber a cor da roupa interior da jornalista aquando da rescisão do contrato com a SIC, já que fomos sabendo tudo de hora a hora. A transferência não foi uma notícia: foi A notícia. Dos montantes envolvidos só sei o que a SIC pede de indemnização: 4 milhões de euros, que a jornalista e a TVI pagarão, seguramente, em partes proporcionalmente justas, se os tribunais derem razão aos queixosos.

Passo da impressão pessoal para o mais forte lugar-comum: nada disto me preocuparia muito numa empresa privada, onde a obscenidade dos salários e dos valores de transferências não me afecta. Ora, acontece (como foi salientado publicamente) que a TVI recebeu uma verba para compensar perdas de publicidade derivadas da pandemia. E nesse sentido, sim, a gestão dos dinheiros da TVI já me afecta os bolsos. Mais do que dizer-me muito, Cristina Ferreira grita-me muito; fora isso, será uma boa profissional, seguramente uma pessoa inteligente porque chegou a estes níveis de popularidade, mesmo que isso revele alguma coisa do povo português - ou da espécie humana. 

A televisão e o futebol ombreiam, de certa forma, numa obscenidade de ordenados. Veja-se os valores envolvidos na transferência de Jorge Jesus para o Benfica (desmemoriado que sou para algumas coisas, não sei se o clube da Luz se tem candidatado a apoios estatais...).  Por esse Portugal fora, médicos e profissionais de saúde ganham uma miséria. Na outra ponta do espectro, há jornalistas ou entertainers - ou Jorge Jesus, que também entretém... - a ganhar milhões, pagos por patrões que pediram apoio ao Estado para fazer face a dificuldades. Um médico cura vidas; Cristina Ferreira (com todos os méritos profissionais) alegra vidas. 

Uma certa ética está acima da lei ou das lógicas de mercado ou de facturação de empresas privadas. A diferença entre os ordenados de jornalistas, de treinadores de futebol e de médicos (ou de outros profissionais de saúde) não configura um incumprimento legal. Não há nada na lei que impeça o Estado de pagar 1.800€ a um médico e um clube de futebol (ou uma estação de televisão) pagar cem vezes mais a um profissional da bola ou do pequeno ecrã. Talvez haja, apenas, uma distorção entre valor e valores

Talvez não possa comparar-se uma "cebola roxa" (os números do drama humano se o Verão da Madeira, ou de outros pontos do país, for isto que vi nestes últimos dias) com o "principado do Mónaco" (materializado pelos ordenados de Jorge Jesus e Cristina Ferreira); a vantagem deste estabelecimento é que aqui pode-se...

JdB  


19 julho 2020

16º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 13,24-43

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
Jesus disse às multidões mais esta parábola:
"O reino dos Céus pode comparar
-se a um homem
que semeou boa semente no seu campo.
Enquanto todos dormiam, veio o inimigo,
semeou joio no meio do trigo e foi-se embora.
Quando o trigo cresceu e deu fruto,
apareceu também o joio.
Os servos do dono da casa foram dizer-lhe:
'Senhor, não semeaste boa semente no teu campo?
Donde vem então o joio?
Ele respondeu-lhes: 'Foi um inimigo que fez isso'.
Disseram-lhe os servos:
'Queres que vamos arrancar o joio?'
'Não! - disse ele –
não suceda que, ao arrancardes o joio,
arranqueis também o trigo.
Deixai-os crescer ambos até à ceifa
e, na altura da ceifa, direi aos ceifeiros:
Apanhai primeiro o joio e atai-o em molhos para queimar;
e ao trigo, recolhei-o no meu celeiro'".

Jesus disse-lhes outra parábola:
"O reino dos Céus pode comparar-se a um grão de mostarda
que um homem tomou e semeou no seu campo.
Sendo a menor de todas as sementes,
depois de crescer, é a maior de todas as hortaliças
e torna-se árvore, de modo que as aves do céu vêm abrigar-se nos seus ramos".
Disse-lhes outra parábola:
"O reino dos Céus pode comparar-se ao fermento
que uma mulher toma e mistura em três medidas de farinha,
até ficar tudo levedado".
Tudo isto disse Jesus em parábolas,
e sem parábolas nada lhes dizia,
a fim de se cumprir o que fora anunciado pelo profeta,
que disse: "Abrirei a minha boca em parábolas,
proclamarei verdades ocultas desde a criação do mundo".

Jesus deixou então as multidões e foi para casa.
Os discípulos aproximaram-se d'Ele e disseram-Lhe:
"Explica-nos a parábola do joio no campo".
Jesus respondeu:
"Aquele que semeia a boa semente é o Filho do homem
e o campo é o mundo.
A boa semente são os filhos do reino,
o joio são os filhos do Maligno
e o inimigo que o semeou é o Demónio.
A ceifa é o fim do mundo
e os ceifeiros são os Anjos.
Como o joio é apanhado e queimado no fogo,
assim será no fim do mundo:
o Filho do homem enviará os seus Anjos,
que tirarão do seu reino todos os escandalosos
e todos os que praticam a iniquidade,
e hão-de lançá-los na fornalha ardente;
aí haverá choro e ranger de dentes.
Então, os justos brilharão como o sol
no reino do seu Pai.
Quem tem ouvidos, oiça".

17 julho 2020

Duas Últimas

Até onde sei, esta música, na versão interpretada por Janis Joplin, terá atingido o seu pico de notoriedade em 1971. Não me lembro se a dancei, mas seguramente que a cantei muito em 1973, 74, por aí. Um destes dias cruzei-me com a letra. Tal como já o disse aqui, neste estabelecimento, tanto nesta, como noutras músicas, não fazia ideia do que estava a cantar. Comprovei isso (se seria necessária comprovação) ao ler esta letra - a semelhança com o que eu contava era pouca, talvez ao nível da fonética...

JdB



Me and Bobby McGee

Busted flat in Baton Rouge, waitin' for a train
And I's feelin' near as faded as my jeans
Bobby thumbed a diesel down, just before it rained
It rode us all the way to New Orleans
I pulled my harpoon out of my dirty red bandanna
I was playin' soft while Bobby sang the blues, yeah
Windshield wipers slappin' time, I was holdin' Bobby's hand in mine
We sang every song that driver knew
Freedom's just another word for nothin' left to lose
Nothin', don't mean nothin' hon' if it ain't free, no no
And, feelin' good was easy, Lord, when he sang the blues
You know, feelin' good was good enough for me
Good enough for me and my Bobby McGee
From the Kentucky coal mine to the California sun
There Bobby shared the secrets of my soul
Through all kinds of weather, through everything we done
Yeah, Bobby baby kept me from the cold
One day up near Salinas, Lord, I let him slip away
He's lookin' for that home, and I hope he finds it
But I'd trade all of my tomorrows for one single yesterday
To be holdin' Bobby's body next to mine
Freedom's just another word for nothing left to lose
Nothing, and that's all that Bobby left me
Feeling good was easy Lord, when he sang the blues
You know feeling good was good enough for me
Good enough for me and my Bobby McGee
Lord, I called him my lover, I called him my man
I said called him my lover just the best I can and come on
And and a Bobby oh, and a Bobby McGee yeah

Janis Joplin

16 julho 2020

Da viagem à Madeira em temos de pandemia


Muito provavelmente, há alguns anos publiquei neste estabelecimento fotografias iguais a estas, tiradas ontem no Funchal, onde me encontro. O mar não mudou, as piscinas estão onde sempre estiveram, a entrada para o Clube mantém-se inalterada, com uma menina - talvez não a mesma... - sentada, e quiçá maçada, atrás de um computador. Esta parte da ilha da Madeira está inalterada. Não falo do resto, porque ainda não vi: os restaurantes vazios, os hotéis às moscas, as ruas sem trânsito, a ausência de inglês ou alemão escutado nas ruas.


Embarquei ontem, 15 de Julho: um voo atrasado 3 horas por causa do vento na Madeira; uma aterragem "ventosa", oscilante mas, ainda assim, segura, como compete aos pilotos da TAP. Talvez outros pilotos, de outras companhias aéreas, não aterrassem com o vento que se fazia sentir ontem. 

Foi a minha primeira viagem pós-pandemia. O que se oferece dizer? Um aeroporto da Portela tristemente vazio, mas com mais regras de segurança. Um hall de restaurantes sem ninguém, mas com 4 italianos a colarem-se à mesa onde eu estava, falando muito alto (senti que tinha de mudar de sítio) e deixando entender que há uma sensação gregária que não nos sai da pele, porque vamos para os sítios onde outros já estão. Uma viagem de avião curta, com a estranheza (talvez faça sentido ser assim....) de ver pessoal da TAP a vender comida a bordo: Lays gourmet, cacahuetes, bolachas de chocolate, sandes de perú, Sprite ou água mineral... Por último, porque todas as grandes dificuldades encerram em si ganhos secundários, a alegria de um distanciamento social. Ao contrário de muitos à minha volta, não me alegro com o desaparecimento do cumprimento físico. Há quem fique satisfeito por já não haver beijo (é um ou dois?) ou aperto de mão. Para pessoas como eu, a grande alegria está, repito, no distanciamento social: obcecado que sou com questões de proxémia, alegra-me poder dizer a um cavalheiro sem correr o risco da deseducação: importa-se de manter o distanciamento recomendado? É o vírus, sabe...

JdB


15 julho 2020

Vai um gin do Peter’s ?

A BELA VOLTA A SER ADORMECIDA, À FORÇA – HAGIA SOFIA

Hoje, em que assistimos – em directo – a um recuo da história, começo com as palavras de um “gin” de há dois anos sobre uma das mais Belas Adormecidas da arte mundial, que tinha sido corajosa e habilmente acordada, em 1934, pelo fundador do Estado turco moderno laico – Kemal Ataturk:  

«O destino mítico do «Expresso do Oriente» coincide com o expoente do ponto de encontro das civilizações oriental e ocidental, no estreito vital do Bósforo – Istambul. Elo de ligação da Ásia à Europa, é a única cidade situada entre dois continentes.  […]  Volvidos cerca de cinco séculos de intervenções infrutíferas e caras, Istambul rendeu-se à traça original e aceitou acordar a Bela, que ficara Adormecida desde meados do séc.XV.  Assim, em 1934-35, Hagia Sophia renasceu como museu-Basílica ortodoxa para revelar os tempos áureos de Constantinopla. Um monumento de luxo, que sobressai na lindíssima cidade banhada pelo Bósforo. Quando se cruza o limiar daqueles portais invulgarmente altos, mais do que a beleza, impressiona o eco da História milenar. Um passado ali quase palpável. Quase audível, como se ressentíssemos vibrar a passada fogosa das montadas dos cavaleiros cristãos, ao nosso lado. Uma experiência única!» [gin de 25.Abril.2018]

Quando o famoso templo dedicado à divina sabedoria (Sofia) foi convertido em Museu, houve logo a preocupação de recuperar a traça original do auge de Constantinopla e destapar os magníficos ícones que revestiam as paredes e tectos da basílica, entaipados enquanto funcionou como mesquita (séc.XV). Tornaram-se, aliás, numa fonte de rendimento para a economia do Levante, sendo uma das principais atracções turísticas de Istambul. Situada junto à poderosa Mesquita Azul, a Basílica da cristandade ortodoxa integrava o circuito imperdível da cidade. E estabelecia um valioso contraponto ao templo muçulmano vizinho, num diálogo de dois expoentes da confissão religiosa que lhes marcara, para sempre, a arquitectura. As duas linhas arquitectónicas levavam (e levam) a marca d’água dos cultos em que tinham sido forjadas!  

Hagia Sofia –
exterior, com minaretes acrescentados depois da primeira decisão de a adaptar a mesquita, após 1453. 

Hagia Sofia –
o interior não conseguiu ser formatado segundo o culto muçulmano, reduzida a uma pobre mesquita a contra-gosto.

Mesquita Azul

Equivalente a Santa Sofia, havia ainda a pequena e igualmente maravilhosa Igreja de São Salvador in Chora, mais afastada do centro antigo, mas ainda mais especial em matéria de ícones, pelo melhor estado de conservação e em cobertura mais contínua por comparação com os vazios na Basílica da Sabedoria. 

E foi pelo templo cristão mais pequeno que Erdogan começou a reversão do passo arrojado dado em 1934. Sem apelo nem agravo, em 2018, declarou São Salvador in Chora mesquita, apesar de nada naquele espaço estar talhado para tal. A quantidade enorme de murais com ícones lindos arrisca-se a ser, novamente, encoberta sob camadas de argamassa decorada a caracteres corânicos, pouco a ver com os inúmeros recantos de pequenas capelas quase labirínticas e tectos abobadados, sustentados por arcos. 





Este mês, o Presidente turco foi mais longe e avançou sobre Santa Sofia assinando o decreto que a declara mesquita, doa a quem doer. Invoca um argumento deslocado, comparando o templo de Constantinopla com o Vaticano, como se Hagia Sophia fosse equivalente a uma transformação forçada da Mesquita Azul, essa sim concebida como espaço de oração maometano. O que diria Erdogan se a cristandade actual se propusesse transformar a magnífica Mesquita de Suleiman em catedral? É essa a equivalência do lado otomano. Por último, acusa o Ocidente de islamofobia numa jogada de vitimização. 

Todo o processo prima pela precipitação, apanhando o mundo semi-desprevenido. A primeira cerimónia no novo culto já está marcada para 24 de Julho e Erdogan faz gala em ser um dos participantes. Nenhum dos protestos e lamentos internacionais o demoveu. Nem os avisos da UNESCO de que poderá revogar o cobiçado estatuto de Património Mundial, por poder constituir um atentado à obra original. Nem as súplicas do Papa Francisco, que afirma estar a sofrer com esta decisão unilateral. Nem o alerta do Conselho das Igrejas temendo um novo recrudescer da tensão entre muçulmanos e cristãos num país em acentuada radicalização religiosa. Nem a reacção oficial dos EUA a manifestar o desapontamento com este regresso a um passado mais obscuro e fechado. 

É verdade que, em fase de atordoamento provocado pelo combate a esta estranha pandemia, assistimos a um boom de medidas polémicas, como se o ambiente de medo instalado tivesse assanhado derivas mais abusivas para fortalecimento de poderes pouco ou nada democráticos. À sua escala de potência intermédia, a Turquia de Erdogan acentua um regime mais teocrático na região, revertendo o movimento de abertura protagonizado pelo aclamado pai da nação turca, após a derrocada do Império Otomano, no final da Primeira Guerra Mundial. Significativamente, o tribunal turco, que emitiu o parecer onde se baseia a nova deliberação de Erdogan, taxou de ilegal a decisão de Ataturk, tomada há perto de 80 anos! Já é uma novidade atacar o fundador da República da Turquia. Percebe-se quanto estes gestos simbólicos, que açambarcam Santa Sofia e São Salvador in Chora, agitam a miragem do império perdido, como se o tempo fizesse marcha-atrás. Os únicos em festa são os segmentos tradicionalistas e mais passadistas da sociedade turca, núcleo de suporte eleitoral de Erdogan.  

Na qualidade de historiador, que procura interpretar o presente, José Pacheco Pereira dedicou o seu último artigo no PÚBLICO ao tema, juntando dados do passado glorioso do que era o maior templo de Bizâncio com leituras geopolíticas que cada um aproveitará como entender: 


- Artigo/Crónica de JPP

«A divina sabedoria

Na Aya Sophia não se sai como se entra, mas entrar como 
mesquita não é a mesma  coisa do que entrar num museu

Duvido que alguém preste muita atenção ao facto que motiva este artigo: a ameaça do retorno da Aya Sophia da sua actual função de museu para ser mesquita de novo. (Uso o nome turco, em vez do grego Hagia Sophia, mas como todas as coisas que têm muita história, tem muitos nomes.) É um ataque desnecessário e puramente político a um local dos mais importantes da nossa história comum do Ocidente, incluindo a própria Turquia, e que nada tem de religioso. 

Na própria história dos locais sagrados do Islão este nunca foi muito relevante. O significado mais forte desta opção é o abandono de uma das decisões fundamentais de Atatúrk na sua tentativa verdadeiramente revolucionária de laicizar a Turquia. É contra isso que vai Erdogan.

Aya Sophia foi uma igreja cristã ortodoxa, uma igreja cristã latina, depois uma mesquita (estão lá os minaretes que foram acrescentados) e, por fim, um museu, no milénio e meio da sua história. As datas cruciais são 1453, 1931-5, mas estamos em 2020 e o significado deste processo, na Turquia de Erdogan, é um ainda maior afastamento do resto da Europa. Neste processo, a União Europeia tem muitas culpas: prometeu à Turquia o ingresso na União, se cumprisse determinadas condições, a Turquia cumpriu-as, e depois tiraram-lhe o tapete. Erdogan está lá também por causa disso, agora sob a asa sinistra de Trump, cujo secretário de Estado, Pompeo, todos muito religiosos, já lavou as mãos do futuro da Aya Sophia.

A transformação de museu em mesquita não é inócua do ponto de vista político e geopolítico e implica riscos para o património cultural preservado até hoje. O grande mosaico do Cristo Pantocrator e outros mosaicos bizantinos terão de ser de novo emparedados, como estiveram muitos séculos, e muitos detalhes da história cristã, por todo o edifício, terão de ser retirados ou escondidos. 

A Aya Sophia é um daqueles locais difíceis da história pelo excesso de sagrado e pela densidade da sua própria história, tal como Jerusalém. Como todos os turistas acidentais visitei várias vezes a Aya Sophia. Como todos os turistas acidentais intelectuais, há sempre a presunção de que o olhar é diferente, ou de que, iludindo os outros visitantes comuns, se está lá como um viajante do século XVIII que foi visitar a Porta partindo de Marselha à procura do exótico. Tretas. Mas o que se vê é o que se vê.

Quando entrei pela primeira vez, repeti a sensação atribuída ao seu construtor, o imperador Justiniano, sobre a dimensão da cúpula, um feito arquitectónico e de engenharia que permitiu resistir a terramotos, vandalismo, destruições. A gigantesca cúpula, aliás, foi o modelo para as mesquitas, porque não havia precedente arquitectónico no Islão e Aya Sophia sempre foi durante séculos o maior prédio do mundo. Mas eu sou homem de detalhes e perdi-me pelos detalhes e ainda hoje, se lá voltar outra vez, vou de novo aos detalhes. Os detalhes e as histórias à volta deles, meias lendas, meias verdades. 

Começo pelo Umbigo do Mundo, o Omphalos, o círculo de mármore onde eram coroados os imperadores bizantinos. Não é todos os dias que se está no Umbigo do Mundo. 

À minha volta, no piso térreo, se houver fantasmas, passarão os cruzados latinos da Quarta Cruzada que profanaram a catedral, entrando com um carro de bois com prostitutas, quando da conquista de Bizâncio no século XIII, no meio do saque generalizado da cidade. Muito do saque foi para Veneza, cujo doge Dandolo, que participou no assalto, teve os ossos atirados aos cães e depois colocados num túmulo térreo, que só foi marcado no século XIX numa galeria da catedral. Este foi um dos incidentes que mais marcaram o cisma entre os católicos e os ortodoxos, pelo qual o Papa pediu desculpa.

Outro grupo de fantasmas é o dos que estiveram na última missa realizada na catedral imediatamente antes da invasão otomana, com a presença de Constantino XI Paleólogo, o último imperador bizantino. Saiu dali para combater e desapareceu, nunca tendo sido encontrado o seu corpo. Numa versão sebastianista, corrente entre os gregos da diáspora, não teria morrido e estaria no interior das muralhas à espera de sair e libertar a cidade dos turcos. Até hoje.

Subindo às galerias, é a explosão da grande arte bizantina dos mosaicos, em honra de vários imperadores e imperatrizes e sob a égide de Cristo Pantocrator, omnipotente, todo-poderoso. Olha-se para estas figuras, que sobreviveram aos iconoclastas, ao emparedamento, e nunca há cansaço, há sempre novos detalhes numa figuração densa de símbolos religiosos. Verdade seja dita, também as devemos ao sultão Abdul Medid, que as protegeu e restaurou.

Na Aya Sophia não se sai como se entra, não se chamasse à coisa "divina sabedoria", mas entrar como mesquita não é a mesma coisa que entrar num museu. Não porque haja algum mal nas mesquitas - Istambul tem algumas -, mas o olhar muda, os gestos mudam, e muito do que hoje vemos não pode ser exposto numa mesquita sem violar preceitos do Islão. Lá fora há muitas distracções, desinteresse e geopolítica e cá dentro é um assunto tão remoto como a estrela Sirius, mas temos gente que sabe história e é sensível à cultura que podia pressionar a embaixada e a nossa diplomacia. Em nome inclusive da herança de Mustafa Kemal Atatúrk, o pai dos turcos, coisa que não é certamente Erdogan.»

Historiador. Escreve ao sábado
José Pacheco Pereira – 11.JUL.2020

A boa notícia anunciada no “gin” de 2018 e desactualizada por este recuo histórico também confirma quanto a realidade é dinâmica, ora em fase positiva, ora em ciclos regressivos, como é o caso. De certo modo, a notícia infeliz de hoje dá motivos de esperança para confiarmos que a nova realidade pode não ser a última palavra sobre o destino atribulado da Bela, que um dia poderá voltar à vida no pleno respeito pela sua singularidade maravilhosa! Vale a pena esperarmos e empenharmo-nos por esse ganho civilizacional. 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

14 julho 2020

Duas Últimas *



* sugerido por mão amiga. E, sugestão minha, para se ouvir alto!

13 julho 2020

De dois álbuns de Amália

Um dia perguntaram-me qual achava ser o melhor disco de Amália: Busto ou Com que voz (gravado em 1970). Não hesitei, nessa ousadia que é prerrogativa dos ignorantes: Busto, respondi. Nesta 6ªfeira, num programa da RTP1 Em Casa da Amália (penso que é assim que se chama), Pedro Abrunhosa terá dito (espero não me enganar) que o álbum Com que Voz rompia com um estilo de fado - até porque cantava poetas consagrados - dando origem a outro estilo (estou a reproduzir de forma simplista). Se interpretei bem o raciocínio dele, tendo a discordar.

Em 1957 Amália Rodrigues grava o seu primeiro longa-duração: Amália no Olympia. Quase todas as letras são de poetas (populares) da chamada “Idade de Ouro”: Amadeu do Vale, Avelino de Sousa, Linhares Barbosa, José Galhardo, Silva Tavares, entre outros. No alinhamento do disco, Perseguição é a quarta faixa:

Se de mim nada consegues 
Não sei porque me persegues 
Constantemente na rua 
Sabes bem que sou casada 
Que sempre fui dedicada
E que não posso ser tua.



O segundo LP de Amália - Busto - será gravado em 1962. É o início da colaboração com Alain Oulman, que compõe quase todas as músicas, bem como da inclusão de poetas nunca cantados até então: Luís de Macedo, David Mourão-Ferreira, Pedro Homem de Mello.

Da primeira faixa:

Asas fechadas são cansaço ou queda, 
Pedra lançada ou voo que repousa. 
Em meu sorriso a minha entrega 
Que o meu olhar não ousa.



O disco marca o início, também, de uma mudança substantiva no fado: acompanhamento ao piano, incursão por músicas novas não tradicionais, poetas eruditos, discos conceptuais (por contraponto a gravações de temas soltos). Amália no Olympia é, de alguma forma, o fado como Portugal o conhecia nos últimos trinta anos. Busto inaugura um novo tempo, patente também numa nova linguagem poética. E é por isso, por causa destas mudanças em letras e músicas, que eu considero Busto o álbum de rompimento. O Com Que Voz (um disco fantástico, que torna a escolha mais desafiante) só surgiria oito anos depois.

JdB


12 julho 2020

15º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Mt 13,1-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele dia,
Jesus saiu de casa e foi sentar-Se à beira-mar.
Reuniu-se à sua volta tão grande multidão
que teve de subir para um barco e sentar-Se,
enquanto a multidão ficava na margem.
Disse muitas coisas em parábolas, nestes termos:
"Saiu o semeador a semear.
Quando semeava,
caíram algumas sementes ao longo do caminho:
vieram as aves e comeram-nas.
Outras caíram em sítios pedregosos,
onde não havia muita terra,
e logo nasceram porque a terra era pouco profunda;
mas depois de nascer o sol, queimaram-se e secaram,
por não terem raiz.
Outras caíram entre espinhos
e os espinhos cresceram e afogaram-nas.
Outras caíram em boa terra e deram fruto:
umas, cem; outras, sessenta; outras, trinta por um.
Quem tem ouvidos, oiça".

Os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
"Porque lhes falas em parábolas?"
Jesus respondeu-lhes:
"Porque a vós é dado conhecer os mistérios do reino dos Céus,
mas a eles não.
Pois àquele que tem dar-se-á e terá em abundância;
mas àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado.
É por isso que lhes falo em parábolas,
porque vêem sem ver e ouvem sem ouvir nem entender.
Neles se cumpre a profecia de Isaías que diz:
'Ouvindo ouvireis, mas sem compreender;
olhando olhareis, mas não vereis.
Porque o coração deste povo tornou-se duro:
endureceram os seus ouvidos e fecharam os seus olhos,
para não acontecer
que, vendo com os olhos e ouvindo com os ouvidos
e compreendendo com o coração,
se convertam e Eu os cure'.
Quanto a vós, felizes os vossos olhos porque vêem
e os vossos ouvidos porque ouvem!
Em verdade vos digo: muitos profetas e justos
desejaram ver o que vós vedes e não viram
e ouvir o que vós ouvis e não ouviram.
Vós, portanto, escutai o que significa a parábola do semeador:
Quando um homem ouve a palavra do reino
e não a compreende,
vem o Maligno e arrebata o que foi semeado no seu coração.
Este é o que recebeu a semente ao longo do caminho.
Aquele que recebeu a semente em sítios pedregosos
é o que ouve a palavra e a acolhe de momento,
mas não tem raiz em si mesmo, porque é inconstante,
e, ao chegar a tribulação ou a perseguição por causa da palavra,
sucumbe logo.
Aquele que recebeu a semente entre espinhos
é o que ouve a palavra,
mas os cuidados deste mundo e a sedução da riqueza
sufocam a palavra, que assim não dá fruto.
E aquele que recebeu a palavra em boa terra
é o que ouve a palavra e a compreende.
Esse dá fruto,
produz ora cem, ora sessenta, ora trinta por um".

10 julho 2020

Das surpresas à porta de um prédio

Aqui há umas semanas fui a um prédio específico. A senhora da limpeza segurou-me a porta, perguntou-me para que andar eu ia e expliquei-lhe o enquadramento. Em 10 minutos soube que tinha sido vítima de violência doméstica, que a filha preferia viver num quarto com os dois filhos a ir viver para aquela moradia (onde tudo se passara) tal o trauma das memórias. Um minuto depois do drama estava a mostrar-me o telefone para eu ver a mãe dela, uma senhora com 91 anos, a cantar uma modinha qualquer. Entre cumprimentá-la e saber toda a sua a vida (a mãe era muito feliz embora fosse quase cega, disse-me) foram 11 minutos.

Esta semana voltei ao mesmo prédio. Calhou-me a mim segurar a porta para uma senhora bastante idosa poder sair. Agradeceu a gentileza e a educação, queixou-se da falta de cavalheirismo que por aí grassa, em particular, referiu ela, nas passadeiras. E disse-me: sabe, já por várias vezes fui vítima de tentativas de atropelamento. No outro dia foi um carro e uma trotinete...  Recuei uns centímetro para ver melhor a senhora. Não é todos os dias que nos confrontamos com uma octogenária que é repetida vítimas de tentativas de atropelamento. Que segredos guardará ela? 

Um prédio em Lisboa, duas pequenas conversas. Em 10 minutos podemos saber tudo sobre a vida de um desconhecido. Não vejo o dia de lá voltar...

JdB

09 julho 2020

Poemas dos dias que correm

Ainda que Mal

Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
me salvo e me dano: amor.

Carlos Drummond de Andrade, in 'As Impurezas do Branco'

***

Poema da Necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar António,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Sentimento do Mundo'

08 julho 2020

Texto e música dos dias que correm

David Bowie e o domingo: Voltar a ler e ouvir em tempo de pandemia

Durante o bloqueio causado pelo coronavírus, recebi um “e-mail” no qual uma estudante me escrevia do isolamento a que foi obrigada, acolhido como «privação da felicidade». Preencheu esse vazio de sentido com a leitura de “A peste”, de Albert Camus, e escutou algumas músicas sobre a quarentena. Na leitura assinala aquilo com que a realidade a confrontou, motivando-a a voltar a pensar nas razões por que vive. «As minhas convicções são sólidas e fundadas na verdade, ou ilusórias», interrogava-se. «Pergunto-me se Deus entra nos meus desejos, e se alguma vez me dei conta dele, e porque é que só agora o penso.» Esboça um pensamento sobre a religião e o ambiente à volta.

No longo elenco de discos escutados pela jovem comparecem Amy Winehouse e Bob Marley, lê poesia de Jim Morrison. Há a tristeza dominical de “Blue sunday”, dos Doors, a inquietação de “Sunday morning”, dos Velvet Underground, o isolamento nos Sonic Youth, a marginalização em John Lennon, o surrealismo religioso de Kayne West. Uma macedónia de sentimentos contrastantes que a perturbam.

Procuro compreender o seu ponto de vista e buscar nos seus livros e discos um ponto de contacto. O romance de Camus narra a desencarnação das relações socais, a frágil recordação de um rosto amado que desgasta as personagens numa cidade fechada e vergada pela peste. Protagonistas que fazem o seu dever, obrigados a fazer o bem sem heroísmos. É a alienação presente em David Bowie, vem-me à mente a sua discografia enquanto tento decifrar os textos indicados na mensagem.

Tenho uma dor semelhante à jovem estudante, também eu perdi o gosto da festa. Em tempo de pandemia, a santa missa celebrada sem o povo fez-me experimentar um pão de vida diferente, uma experiência difícil de descrever. Um pároco obrigado a estar longe fisicamente dos fiéis é uma contradição. Tentei, ainda assim, não fugir de uma realidade desconhecida e de vislumbrar uma Presença naquele deserto de relações.

À música de David Bowie cabe a tarefa de oferecer uma chave de leitura do tempo presente e apontar um horizonte de esperança à estudante. Em Bowie encontrei sempre uma resposta. As suas canções poderão reavivar a recordação dos domingos vividos em família e na igreja. Bowie, com efeito, escreve sobre o domingo, um tempo em que tudo se recria e se destrói. No seu pensamento, o domingo é entendido de maneira ambivalente. Ele que rezou o Pai-nosso no palco do estádio Wembley, em Londres, no concerto de 1992 em honra do líder dos Queen, Freddie Mercury. Sobre essa ocasião, declarou: «Rezar naquele palco o Pai-nosso pareceu-me um gesto natural. Uma invocação para me reencontrar a mim próprio».

As suas canções têm uma estrutura semelhante à oração clássica, e como tal – declarou Bowie – podem ser consideradas. Não é ousadia achega-las aos salmos de lamentação, porque o apelo dolente a Deus é audível nos textos de Bowie. Uma canção sobre todas é “Word on a wing”, na qual canta sobre o encontro com o Senhor e sobre a necessidade de não mudar, apesar de Deus ter penetrado intensamente na sua vida: «Senhor, ajoelho-me e ofereço-te a minha palavra sobre uma asa. Estou a tentar muito encaixar no teu esquema das coisas».

Em “Sunday” há um combate corpo a corpo com Deus. Bowie está à deriva enquanto procura uma luz e invoca o Senhor do domingo, dia de festa em que seria preciso ressurgir em vez de morrer. A passagem necessária pela paixão e morte não é aceite. Essa morte do desejo que se lê entre as linhas da carta da estudante do secundário. O domingo e Deus estão presentes no texto de “Julie”, em que há nuvens escuras no céu e um amor não correspondido. O sentido de culpa segue-o em “Can’t help thinking about me”, onde emerge a nostalgia dos domingos em que se ia à igreja, esse dia em que cessava todo o medo: «Lembras-te quando íamos à igreja ao domingo? Ficava acordado toda a noite, aterrorizado pelo pensamento da escola na segunda-feira. Quero ser de novo criança e sentir-me seguro». “The pretty things are going to hell” torna-se motivo para interrogar-se sobre o que é eterno e o que é condenado. Quem descobrir, em quem acreditar e a quem dar ouvidos num dia de domingo? Talvez seja esta a experiência dos jovens de hoje, por vezes perdidos, mas sedentos de verdade. Não morre a esperança de encontrar o amor de domingo em “Rubber band”, essa mesma paixão que nasce ao domingo em “Love you till tuesday”.

Segundo David Bowie, nasce-se ou morre-se no dia de domingo. Quem sabe de que maneira a estudante e os seus amigos viverão os próximos domingos… saberão habitar esta nova realidade, ou tornar-se-ão paranoicos? Terão famílias capazes de os fazer sentir-se amados? Haverá comunidades cristãs capazes de saciar a sua fome de verdade?

Vem em meu auxílio uma outra canção de David Bowie, “A better future”. Anoto alguns versos na resposta à jovem liceal. Uma oração atormentada de Bowie ao Senhor por um amanhã melhor: «Por favor [Deus], não despedaces este mundo. Por favor, leva este medo sob o qual estamos. Peço um futuro melhor, ou poderei deixar de te querer. Peço-te, assegura-te que teremos amanhã. Toda esta dor, toda esta tristeza, quero um futuro melhor. Ou poderei deixar de precisar de ti». Faixa colocada na “playlist” e enviada como oração contra o pavor que paralisa, juntamente com versos do Salmo 72: «Ele libertará o pobre que grita e o miserável que não encontra ajuda, terá piedade do fraco e do pobre, e salvará a vida das suas misérias».



Massimo Granieri
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 06.07.2020

06 julho 2020

Carta a um anjo

Nasceste hoje, mas há vinte e seis anos.

Ontem almocei com amigos. A meio telefona-me alguém que me diz: não sei se sabe que morreu fulana. Fulana era rapariga da minha idade, família de amigos próximos, mãe de gente que nos é próxima. Havia um certo anúncio desta morte, mas, mesmo assim...

A meio da tarde telefono a um amigo para lhe dar os parabéns. Começo com a frase trivial: então a família, está toda de saúde? Esperaria ouvir possíveis diagnósticos de covid ou maçadas de confinamento, coisas tão em voga hoje em dia. De lá veio a história impactante de uma filha com um problema de saúde potencialmente muito grave. 

Nada disto é uma surpresa, que a vida ensinou-me que a distância que vai de uma família feliz a uma família destroçada é um fio de cabelo. Em mim ressoa ainda a conversa sobre os desígnios de Deus, sobre se é do Céu que nos chegam acontecimentos semelhantes de dramas e sofrimento. Cada vez mais acredito que não pode ser; que seria impossível ser.

Eu sei que é um lugar-comum falar na fragilidade da vida, na necessidade de não perdermos de vista o essencial para nos agarrarmos a um acessório que tem um brilho imediato mas fugaz, temporário, sem persistência. A vida já nos ensinou tudo; por vezes teimamos em desvalorizar os sinais que nos dizem que todos os dias deveriam ser dias de empenho intenso, não em manifestações histriónicas de gente contentinha, mas na arrumação da vida, na perseguição das coisas importantes, no olhar fixado num horizonte de paz e concórdia. Afinal, nas armadilhas do destino, uma frase proferida pode ser a última frase que alguém nos ouve. Que frase queremos dizer; que frase gostaríamos de ouvir?

O tempo que nos resta, que resta aos que nos estão próximos é uma incógnita que nenhuma fórmula resolvente decifra. Na certeza dessa variável há uma dimensão simultânea de sabedoria e sobressalto que nos impele a sermos mais atentos, mais profundos, mais conscientes. A sermos melhores, no fundo. A ganhar o céu no quotidiano, nas pequenas coisas, nos gestos simples. Os dois telefonemas de hoje são um alerta. Ou mais um alerta.

Olha por nós, e por aqueles de nós que passam tempos menos fagueiros.     

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu


J (em nome de todos os que te lembram) 

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