30 novembro 2008

Imagens dos dias que correm


O Natal em que acredito - e em que acreditam os cristão, penso eu - não é representado pela maior árvore de Natal da Europa; não é um Pai Natal num trenó puxado por renas e ajoujado de presentes embrulhados em papel de fantasia; não é ilustrado por imagens lindas e bucólicas de paisagens com neve; não são ruas apinhadas, onde gente apressada dispende dinheiro para satisfazer expectativas.
O Natal em que acredito é o do quadro acima (Gerard van Honthorst, 1590-1656). O Menino Jesus, a Sagrada Família, uma manjedoura. Não preciso de mais para me lembrar do que é verdadeiramente importante. Esta parte está feita no meu íntimo, já só falta tudo o resto.
Bom Advento, neste dia em que também nos podíamos desejar um Bom Ano Novo. Que esta caminhada traga força e discernimento a quem deles precisa, ânimo a quem não o tem, esperança a quem desistiu, iluminação a quem vive numa sombra.

JdB

O Primeiro Domingo do Advento e o sentido da vida

Hoje é o primeiro Domingo do Advento, e eu não me esqueço da minha condição de católico.
Em Setembro de 2003, o meu chefe à altura, e que me dava o gosto de ser meu amigo, morria após uma doença que o levaria em meia dúzia de meses. Nesse Natal eu escrevia à viúva uma carta de que anexo parte.
O post de hoje é dedicado a todos aqueles que celebrarão o nascimento de Jesus marcados pela dor, pela ausência, pela saudade, pela tristeza, pela angústia. Nesta época do ano os risos soam mais alegres, mais espontâneos, mais volumosos. Mas, estou certo, as lágrimas terão um sabor mais amargo, e os rostos tristes revelarão uma escuridão interior. E é esse Natal que quero lembrar agora, porque é o Natal dos que sofrem.

***

Penso que será óbvio, para todos nós, que o Natal é uma época de sentimentos extremos. Fui ganhando a consciência da realidade à medida que ia perdendo a inocência da juventude, e quando me comecei a aperceber que por trás do brilho das luzes e da voragem generosa ou comercial dos presentes se escondiam existências desgostosas e percursos sombrios. A vida ensinou-me que a dúvida que tanto me assaltou –
porque será que alguém está triste nesta época que se quer de alegria? – tinha a resposta no olhar mais cuidado para dentro do nosso próximo. A leveza com que vivemos este período encadeia-nos o coração, impede-nos de perceber as mil e uma melancolias que invadem a alma de cada um dos que circulam perto de nós. O stress de ter tudo a horas tira-nos tempo para estender uma mão, oferecer uma palavra, partilhar um momento.
O Advento já começou – está mesmo prestes a terminar – e o Natal, essa grande festa dos Homens de boa vontade, está aí à porta. Desde há algumas semanas que me lembro de si, lhe imagino o estado de espírito, lhe adivinho a tristeza inevitável. O primeiro Natal vincado pela ausência é, seguramente, difícil. É uma parte do ano marcada pelas lembranças – demasiado marcada por quem nos faz falta. Reconheço tristemente que não consigo encontrar palavras ou pensamentos que apaguem de um modo eficaz essa sombra que se instala em nós.
No meu caso particular socorri-me dos amigos, da estafada declaração ‘a vida tem de continuar’ mas, também, de uma vela chamada esperança e que nunca se deve apagar. Nem sempre a esperança de uma vida melhor – ainda que seja um pensamento legítimo – mas a esperança de não perdermos o norte da nossa vida, essa espécie de farol que nos deve guiar nos momentos mais difíceis.
É por isso que não resisto à tentação do desafio, citando-lhe parte de um escrito (Viktor Frankl) que ouvi pela primeira vez quando partilhei uma acção de formação com o seu marido.

Precisamos de aprender e de ensinar às pessoas desesperadas que, em rigor, não interessa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós .
Quando um Homem descobre que o seu destino lhe reservou um sofrimento, tem também que ver neste sofrimento uma tarefa sua, única e original. Mesmo diante do sofrimento, a pessoa precisa de ganhar a consciência de que ela é única e exclusiva em todo o universo, dentro deste destino sofrido. Ninguém a pode substituir no destino, e ninguém pode substituir a pessoa no sofrimento. Mas na maneira como ela própria suporta este sofrimento está também a possibilidade de uma realização única e singular.
O sentido da vida modifica-se sempre, mas nunca deixa de existir. Podemos descobrir este sentido na vida de três formas diferentes: criando um trabalho ou praticando um acto; experimentando alguma coisa ou encontrando alguém; pela atitude que tomamos em relação ao sofrimento inevitável.
Nunca nos devemos esquecer que também podemos encontrar sentido na vida quando nos confrontamos com uma situação sem esperança, quando enfrentamos uma fatalidade que não pode ser mudada. O que interessa, então, é dar testemunho do potencial especificamente humano no que ele tem de mais elevado e que consiste em transformar uma tragédia pessoal num triunfo, em converter o nosso sofrimento numa conquista humana. Quando já não somos capazes de mudar uma situação - podemos pensar numa doença incurável - somos desafiados a mudarmo-nos a nós próprios.

***

Adeus, até ao meu regresso...

JdB

29 novembro 2008

Depois de Vós Duques, Nós Plebe


Em nome da nossa História e da independência do Reino, reservai quarto e correi a visitar o berço da paz. Ide, que não há como o passado para alegrar as hostes em terra lusa.

O Alto Alentejo, por inúmeras razões, foi a província predilecta da Coroa, onde permanecia temporadas, e o vasto património é disso testemunha, espelhando a cultura, a política, as artes e o correr da vida dos homens séculos fora. Vila Viçosa está na rota desse mundo maravilhoso de igrejas, palácios, castelos, casas fidalgas e propriedades agrícolas.

Estando na vila crescida sob o cunho da Restauração, encete a viagem na estátua equestre do monarca alentejano, prudente governador do Reino, homem culto e amante de música, construída em 1940, por Francisco Franco (de Sousa), trezentos anos após a expulsão dos castelhanos. Eleve o olhar na largueza do terreiro e dedique-se então à obra grandiosa da Renascença – o Paço Ducal – onde o 8.º Duque de Bragança conheceu o trono de Portugal. Era já o dia 3 de Dezembro de 1640 quando bradaram a El’Rei D. João IV. O Paço, idealizado pelo 4º Duque de Bragança, D. Jaime, em 1501, só ficou concluído cem anos depois, graças ao neto Teodósio II, que recobriu os 110m de fachada com mármore dos Montes Claros. O interior alberga um museu, a biblioteca da Casa de Bragança e um notável recheio dos séculos XVII e XVIII. Saindo, alcance a Porta dos Nós, símbolo da máxima de Bragança, mais um exemplar que perdura e eterniza a encantadora arte manuelina do século XVI. Daqui, enverede pela Tapada Real, onde outro mundo se desvenda: a diversão da Real Casa Portuguesa. Os jardins que escondem grutas, o couto de caça, os recintos para jogos, torneios e touradas, a que as senhoras assistiam… só do alto do mirante!

Rume à velha cidadela. Tope a formosura do casario, o asseio das ruelas, o ror de portas ogivais. O Castelo é pálida imagem do original erguido por D. Dinis, após as modificações em épocas várias. Primeira alcáçova real, merece atenção a Sala dos Duques. Entre na Igreja Matriz, peça uma graça a Nossa Senhora da Conceição e aprecie o manto sobre a imagem gótica. Foi a 25 de Março de 1646 que D. João IV, em louvor do restabelecimento da soberania portuguesa lhe ofereceu sua coroa e a elegeu Padroeira de Portugal. Ao lado, no cemitério, dê um raminho à bela Espanca, cujo nascimento se celebra precisamente a 8 de Dezembro, dia da Padroeira, que sai em procissão. Deixe a cidadela através dos torreões que a flanqueiam e palmilhe a alameda de laranjeiras. Desvie para as travessas e enterneça-se com a malha urbana rigorosamente conservada, caiada e riscada de amarelo, engalanada de flores e trepadeiras, uma tradição dos calipolenses. Tempos houve em que ia a prémio a rua mais florida da vila. Procure a Igreja de São Bartolomeu, outra obra empreitada por D. Teodósio II, em 1636. Rica é a talha do altar-mor, do artista autóctone Bartolomeu Gomes, magníficos os frescos da capela-mor e valiosos os azulejos azuis e brancos. Em mármore da região, destaca-se, frondosa, a fachada principal.

Resta honrar duas vilas-fortaleza da raia, pilares fundamentais da nossa defesa. No Alandroal, terra de homens de coragem que se evidenciaram a servir o País, é entrar, mirar as torres, o pano de muralha, a Igreja Matriz, a airosa torre do relógio, as casinhas e os seus quintais pejados de oliveiras velhas. E é sair e beber na Fonte da Praça, talhada em mármore, e respirar fundo, que os ares do Alandroal são abençoados – em tempo de pestes e doenças, os homens daqui sempre foram poupados. Siga por fim a Juromenha. Hectares de cultivo, gado e olival acompanhá-lo-ão até esse lugar emudecido. Do que lá vai, nem se adivinha. Torres sentinelas de vistas largas, dezassete. Lutas renhidas que o Guadiana espelhou, muro de pedra em que o inimigo esbarrou e gente que dava a vida. Esse é o passado da velha praça. Agora, goza-se-lhe a vista, o rio sereno de tons mutantes e a Olivença “sem pátria” no horizonte. Achegue-se ao cemitério, o melhor poiso para “beber” este rio e gravar na memória uma paisagem de Portugal.

DORMI
Pousada D. João IV: Ocupa o Convento das Chagas de Cristo contíguo ao Paço Ducal. Foi D. Jaime quem o fundou, com o intuito de recolher algumas das suas filhas do segundo casamento. Freiras da Regra Clarissa entraram em 1533, pela mão de D. Joana de Mendonça, viúva do 4º Duque. A Igreja é Panteão das Duquesas de Bragança. Convertido ao turismo, resultaram quartos temáticos baseados em lendas e 2 suites, num total de 36. Preservadas foram as antigas celas, retiros e oratórios das religiosas. Vêde em http://www.pousadas.pt/ ou alternai em http://www.sgregorio.com/.

TRAZEI
Tibornas: Os pastéis da terra, feitos de amêndoa, fios de ovos, pão trigo e açúcar, cobertos com doce de chila e fios de ovos. Sericá: Dizem que os árabes trouxeram a receita mas outros defendem que veio do Oriente na mão do copeiro que acompanhou D. Constantino de Bragança, 7º Vice-Rei da Índia, no regresso ao palácio de Estremoz, onde adiante se edificou o Convento dos Congregados. Se é verdade, a receita propagou-se porque há testemunhos que no Convento das Chagas de Cristo, em Vila Viçosa, as monjas faziam o Sericá. Parece pão-de-ló, cozido em forma de barro, mas a massa leva açúcar em ponto de pasta. Serve-se com ameixas em calda, o velho processo de conservar a fruta durante o inverno.

BEBEI
Das oito regiões vinícolas. Portalegre, Borba, Redondo, Évora, Reguengos, Granja-Amareleja, Vidigueira e Moura. Ida é a época em que a província seca dava “mau vinho”. O clima tórrido não permitia resultados sem defeito. Mas a tecnologia em forma de aço inoxidável garantiu tintos de qualidade a partir de uvas nativas, onde as castas Castelão Francês (vulgo Periquita), Trincadeira e Aragonez, apresentam excelente desempenho. Nos brancos, Arinto e Roupeiro, mesmo com o calor, mantêm viva a acidez natural. É a oriente, junto à fronteira, que colhem maiores elogios. Comprovai: Adega da Cartuxa (Évora), Quinta do Carmo (Estremoz) e Herdade do Esporão (Reguengos).

DaLheGas

28 novembro 2008

Lanterna Vermelha


A entrada do estabelecimento fazia-se por um beco escuro e discreto, atravessando um arco. Uma placa de mármore antigo relembrava que naquele local, e em tempos idos, se juntavam os homens bons do concelho, assumindo a responsabilidade das decisões que salvavam ou condenavam as populações da barbárie invasora. A placa perdera um pouco da sua dignidade, rodeada por cartazes que anunciavam concertos rock em fotografias de gente estranha e poses bizarras e grafittis coloridos, nos quais a Cátia revelava ao mundo o seu amor incondicional pelo Rúben. As juras eternas já não se faziam no recato do lar à luz de umas velas, mas num muro comido pelas heras e pintado de verde alface.
Alguns metros acima, um partido político de menor dimensão exibia a sua presença humilde através de uma bandeira esfiapada que esvoaçava triste ao som de um vento brando. Aquele rectângulo de pano era sinal da pouca importância no espectro político, ou prova do estado de um país em que a fazenda se arrastava pelas mesmas ruas por onde circulava a amargura.
Mesmo ao lado do arco, uma Igreja mantinha as portas quase sempre fechadas, numa teimosia de resguardo e protecção. Os templos sagrados, onde a população ia pedir e agradecer, tinham deixado de ser espaços de repouso do espírito para se tornarem em locais de vandalismo e furto. O terço da tarde poderia ser facilmente interrompido pela carteira que se rouba ao fiel ajoelhado; o S. José com um olho torto que encimava o altar lateral arriscava-se à impunidade da cobiça de gente sem respeito pelos activos eclesiais. A luz mortiça que repousava as almas sofridas tornava-se ideal para quem, meliante e desonesto, agradecia que a prece em voz alta disfarçasse o som dos seus passos furtivos.
Do lado de lá de um prédio baixo com janelas estreitas de guilhotina verde-escura e cortinados de renda bordada à mão, um terreiro relativamente amplo e abandonado via o seu futuro condicionado em sede de autarquia. Os meses passavam, e os eleitos juntavam-se numa sala onde os consensos se geravam em torno de trivialidades – a necessidade de café quente às horas de expediente. Por enquanto servia de zona de estacionamento, já que a volumetria disponível inviabilizava o nascimento de um centro de lojas, o que seria mais uma machadada no comércio tradicional, remetendo-o à condição confrangedora de moribundo abandonado à sua sorte.
Ao contrário do que se poderia pensar, dada a relativa modéstia daquela zona habitacional, o parque automóvel ali arrumado, quase sempre na sombra e discrição de noites caladas, era farto e potente, como se aquele espaço fosse o equivalente em rico ao bairro dos actores. Carros possantes, novos, com as matrículas a evidenciarem a juventude das viaturas, longe ainda das inspecções obrigatórias que vasculhavam as entranhas das máquinas, denunciando poluições indesejadas e desalinhamento dos pneus.
Por volta das seis da tarde – ou um pouco mais tarde, pela hora de jantar ou logo a seguir – o movimento aumentava. Um olhar distraído não veria mais do que gestores, advogados, profissionais liberais em termos fiscais e de costumes, numa estranha mistura com pessoas que revelavam actividades ligadas à construção civil e, nalguns casos, ao sempre fascinante mundo do futebol. Tudo aquilo era uma espécie de ONU do universo social, onde a roupa da Rua dos Fanqueiros convivia com a que tinha vindo de Paris ou Milão – com um toque de feira de Carcavelos, num esplendor de contrafacção. Os aromas misturavam-se e confundiam-se numa profusão de perfumes que exalava algo entre o enjoativo e o fascinante, o indefinido e o fantástico, o sândalo e o floral.

(Continua)

MTS

Músicas dos tempos que correm



Hoje era dia de gi publicar o seu post. Razões ponderosas não o permitem, mas onde está, está bem. Fica a Cesária Évora, a cantar petit pays, je t'aime beaucoup. E não está sozinha, seguramente.

JdB

27 novembro 2008


New York Review Books Classics, 2007

O alcatrão brilha à luz dos candeeiros de rua. Não mexe uma folha. E nem podia, porque não sobra uma folha nas árvores. Uma nuvem embacia-lhe o horizonte a cada batida do coração. Não sei se do dele ou de outro coração qualquer. A noite traz a primeira neve do ano e o homem enterra a cabeça na gola do casaco. Os poucos sons a cortar o silêncio são as solas das botas que esmagam a neve na calçada e um ou outro carro que desaparece, engolido pela escuridão. É como se não existisse mais ninguém no mundo. Nenhum outro lugar no mundo. Talvez mundo nenhum. Apenas dois pares de semáforos com agenda própria e duas alas de árvores nuas ao longo de um caminho para lado nenhum. Deve ser isto, a paz. Um buraco no tempo. Um floco de neve que entra pela gola. Uma gota de água gelada que se consome entre as omoplatas. Os passos são agora mais lentos. Vagarosos. Se pudesse, ele ficava ali. A mão esquerda procura o livro no bolso fundo. “A Time to Keep Silence”. Ainda o tem. A neve cai agora com mais força e ele acelera a passada. A caminhada é minha, o livro é para ti.

Mónica Bello

26 novembro 2008

Largo da Boa-Hora

Como sempre, estou no meu banco.
Hoje cismo e divago sobre o que se passará nos andares e nas águas furtadas destes prédios pombalinos.
Explico. A quadrícula pombalina é geometricamente perfeita. Efectivamente, além do mais, todos os prédios são absolutamente idênticos: rés-do-chão em loja, quatro andares e um quinto piso recuado em águas furtadas.
Esta identidade não é só arquitectónica, é também de condição.
De condição, porque muitos dos prédios pertencem a instituições centenárias cujo conhecimento, e até razão de ser, obscureceram: mutualistas, associações, caixas de previdência; outros são de herdeiros de “…” ou de octogenários, ambos de entendimento, zelo e paradeiro incertos, e os demais coisas de promotores imobiliários, cuja única acção é a paciência de deixar correr.
Com estes proprietários, ausentes e desinteressados, os prédios estão todos em liberdade, em auto-gestão, consentindo por isso, generosamente, que no seu seio se albergue um mundo que não teria outra oportunidade de ser e perdurar.
Ora, é esse mundo fantástico e feérico que se acolhe e refugia nesses prédios da Baixa que constitui o objecto do meu cisma.
Ouso então explorar esse mundo, e reencontremo-nos na linha abaixo para contar o que mais ficou dessa minha ousadia.
Nos andares encontrei um mundo que pensara já acabado.
Escritórios, armazéns e manufacturas, em que tudo é absolutamente obsoleto: a actividade, o ambiente, o mobiliário, a decoração, os equipamentos, as operativas, os funcionários e os patrões, os clientes e os fornecedores. Tudo vive num mundo e para um mundo que já acabou há décadas.
Existe ordem, eficiência, trabalho, mas do mesmo modo que há quarenta ou mais anos.
Aí, o tempo pára sempre, diariamente, à porta de cada patim da entrada e, por isso, aquelas colmeias seguem vivendo, com orgulhosa indiferença ao que lá fora possa ter mudado, permanecendo fiéis ao que sempre foram e provavelmente sempre serão. Esta indiferença, alheamento ao actual, ao moderno, não é preguiça ou ignorância - é recusa. É recusa estóica em desfazer, desconstruir um mundo em que todos cabem, em que todos se aguentam, auto-sustentam.
É um contentamento com o que se tem no modo como se é, para não sofrer o sacrificar de pessoas, sentimentos, amigos, hábitos, coisas, que seriam consumidos se o tempo passasse alguma vez a porta de entrada.
São pura determinação em considerar cada “casa” como uma família, em que todos e o seu legado têm de ter o seu lugar e perdurar, e em que pouco importa o que poderia ser alcançado se o preço fosse a aniquilação e destruição. Não é uma questão de tradição, é uma questão de manutenção de um presente humanizado que não se quer mudar. Que se dane o lucro, a notoriedade, a liderança e o mercado. Viva antes o (querer) saber que amanhã será, de certeza, outro dia igual ao de hoje, e isso vai bastando.
Às dezoito horas fecham-se as portas, correm-se ferrolhos e fechaduras e outro dia nascerá, pelas nove horas da manhã.
Nas águas furtadas encontrei um mundo que nunca devia ter começado.
As águas furtadas são, dolorosamente, habitadas por espectros eremitas.
Velhice, isolamento, solidão, dor, pobreza, vulnerabilidade e incapacidade.
Teimosos em manterem-se vivos, encarcerados na decrépita assoalhada isolada sob a única lâmpada que alumia o seu ser extenuado da vida, em tristeza perpétua, com lágrimas de saudade, impotência, desesperança, que vertem no caldo do muito pouco que é a janta.
Vivem na quietude e no imobilismo próprios do limbo onde pairam, esforçam-se, e retomam os movimentos e acções humanas como formalidades indispensáveis para alimentar os sinais vitais da vida que carregam.
Tal é o isolamento, que as palavras proferidas em monólogo nem eco produzem, porque fogem e se perdem pelos rasgos das ausências, pelas frestas das janelas, ou pelos buracos do telhado que respondem aos suspiros e pensamentos com rajadas de vento e bátegas de água.
A ninguém importam, já nem a si próprios.
Cumprem o calvário da decadência funcional, mantendo todavia a dignidade e altivez dos vencidos da vida, mas não da alma.
Ostentam o título nobiliárquico de resistirem, de sobreviverem, de estarem e serem, em desafio à ordem das coisas que há muito ditou a sua consumação.
Todos os dias, em desafio à desgraça, olham o Sol e penduram nos beirais a roupa lavada, a corar, em sinal, em protesto de vida que afirmam provocatoriamente, sem porém saberem bem para quê.
Todavia, na verdade, apesar do heroísmo da resistência, são consumidos pela incompreensão, incredulidade sobre o que lhes sucedeu, sobre como e porquê deste destino de vida. A memória não lhes serve para recordar e confortar, mas para os confundir na tentativa de compreender o que se passou.
Têm medo de mais e maior abandono, temem que até o nada que têm lhes falte. O medo de perder o nada é o pior dos medos, é o pavor.
Desconfiança, desconfiança de tudo e de todos, até da morte, que julgam não querer levar a sua velhice, que a confunde com os já ceifados, e por isso vai esquecendo as águas furtadas da Baixa.
Levanto-me, perdi o ânimo.
Não há maior cego do que aquele que não quer ver.
Não há mais comovido do que aquele que não sabe o que há-de fazer…

ATM

25 novembro 2008

Músicas dos tempos que correm



Ontem tive o privilégio de assistir a um concerto de Katia Guerreiro no Tivoli, durante o qual apresentou o seu novo disco Fado, já disponível no mercado. Não vou tecer comentários ao espectáculo, porque tenho a sorte de não ser especialista de nada, muito menos de música. (Quase) tudo para mim se resume ao gosto ou não gosto. E gostei muito, porque a Katia Guerreiro é a voz feminina do fado que mais aprecio actualmente.
Há quem, como eu, goste de fado desde sempre. Há quem tenha aprendido a gostar, há quem esteja disposto a tentar - o que já não é mau. Este post de hoje é dedicado, por isso, aos que se incluem na última categoria, em particular a quem, como eu, corria satisfeito e inocente nos recreios da Escola Alemã no final da década de 60 e que reencontrei há algumas semanas.
Pela segunda vez em poucos dias, este Adeus, até ao meu regresso publica fado. É bom sinal...

JdB

PS: já vi imagens mais interessantes, mas é o que há...

História de um desencontro

O futuro talvez não o merecesse.

Não é fácil a realidade estar à altura das expectativas que temos para ela.

Na abundância das intenções, faltavam-lhe acontecimentos.

No seu caso, as coisas simplesmente não se proporcionavam.

Outras vezes era o instinto só, a poupar a acção, economizando o risco.

A verdade é que um ou outro drama alheio lhe confirmava às vezes, cedo ou tarde, as intuições.

E, depois do prognóstico negro, o “eu não tinha dito?” permitia então um moderado sucesso alternativo.

Os fundamentos sólidos da fama de prudente ganham-se, com frequência, nestes desencontros com a vida.

As circunstâncias do que tem de ser e vai acontecendo foram, de qualquer maneira, cumprindo o seu destino.

Quase sempre facilitando muito a vida aos outros.

Mas isso já tem a ver com a sorte.

JCN

24 novembro 2008

Abraço

Em Portugal, o abraço deixou de ser uma manifestação corrente de afectividade.
Quem já tem uns aninhos, lembrar-se-á certamente que os pais abraçavam os filhos quando estes passavam um exame difícil, que os amigos abraçavam-se efusivamente quando se encontravam ao fim de algum tempo de ausência, que, como tão melancolicamente recordou há dias o autor deste blogue, os namorados ansiavam pelo “slow” na pista de dança para poderem entrelaçar os seus corpos ansiosos, que os jogadores de futebol festejavam os golos com abraços.
Hoje os pais festejam a passagem no exame com a frieza de um presente caro, os amigos despedem-se presencialmente dizendo(!!) “um abraço”, que fica por dar, os namorados preferem trocar cuspos e os jogadores de futebol optaram pelo ósculo no parceiro para manifestar a sua alegria, sem que por um momento seja questionada a sua heterosexualidade.
Porque é que deixámos de nos abraçar? Foi por termos entrado na União Europeia e considerarmos que um europeu que se preze tem que saber controlar a sua espontaneidade afectiva? Foi porque nos tornámos mais frios como povo? Foi porque passámos a ter vergonha de tocar corpos alheios, mesmo daqueles que nos são mais próximos? Foi porque cresceu em nós um pudor associado aos excessos da revolução sexual?
No entanto, quando estamos necessitados é mesmo o abraço que avança. Perante um desgosto sério ou uma alegria descontrolada, não há cá beijocas ou apertos de mão que nos valham. Então, só o abraço é retemperador. Esquecemo-nos que não devemos, esquecemo-nos de todos os respeitos humanos e abraçamo-nos como loucos.
É inquestionável o valor terapêutico de um abraço. No acto, por breve que seja, acontece a transferência de uma carga positiva, de consolo ou felicidade. Não há manifestação maior de amor, de amizade e de afecto. É um gesto despojado, pelo qual entregamos ao outro tudo o que temos de bom.
Mas atenção, eu estou a falar de abraços não de encostos de ombros e palmadinhas nas costas, tão comuns nalgumas sociedades europeias e árabes. O abraço tem que encaixar. E é a medida desse encaixe que nos dá a plenitude.
Claro que há pessoas que são mais facilmente abraçáveis do que outras. O abraço não é só sentimento. Tem também uma importante vertente física, que implica uma necessária compatibilidade. Por vezes entramos pela esquerda e chocamos com a cabeça de um parceiro habituado a investir por esse mesmo lado. Por vezes temos “timings” de aperto diferentes. Por vezes não concordamos sobre a distância a que temos que estar para que o abraço encaixe como deve ser. De facto, embora deva ser por natureza espontâneo, por vezes, o abraço tem que ser trabalhado. Principalmente entre casais que pretendam utilizá-lo como parte de um património afectivo comum. Por isso, vá lá, corram para a vossa cara-metade e experimentem. Se não for inteiramente satisfatório, tentem de novo até o ser.
Despeço-me com um forte abraço de todos os que tiveram paciência de chegar ao fim destas linhas. E em jeito de ilustração deixo-vos o filme que segue.

J. Buggs

23 novembro 2008

Cartas à minha madrinha

Doce e amável madrinha do meu coração,

Espero que esta a encontre de saúde, que nós por cá todos bem.
O motivo que me impele ao roubo do seu precioso tempo é diferente do habitual. Não lhe escrevo sobre fusões, sonhos ou gentes locais. Hoje escrevo-lhe sobre a Igreja.
(não, querida madrinha, não me tornei anti-clerical, nem ateu, nem aderi a essas seitas que prometem o céu imediato e a cura de doenças graves a troco de dízimas)
Retomo o fio à meada dizendo que tenho de dar razão quando garantem que a igreja está desfasada do seu tempo. Esta mania de começar o Advento quatro domingos antes do Natal parece-me deveras absurda, quando o comércio decretou o surgimento do Pai Natal e das luzes das avenidas por alturas da mudança da hora. Enfim…
Lembra-se, madrinha, de um seu convidado dos serões de 5ª feira que fazia questão em partilhar com o mundo a sua (dele, é óbvio) cruzada contras as coisinhas da religião? Brandia uma voz possante e volumosa e zurzia o padre da aldeia, a gestão dos dinheiros eclesiais, a falta de modernidade, a defesa de valores caducos? Lembra-se?
Não creio que ele fosse mentiroso.
(não, querida madrinha, não ensandeci. Escorropiche o seu chá e deixe-me continuar)
Há padres em qualquer parte do mundo que fraquejam – uns arrepender-se-ão e outros não, porque isso faz parte da natureza humana; estou certo de que os euros que circulam nas mãos do clero nem sempre serão usados de forma financeiramente perfeita, porque há imperfeições em todo o lado e porque a caridade não está indexada ao barril de crude; os valores que a Igreja defende são caducos, porque o ideal cristão não é o do sucesso, da aparência, da necessidade de revelar sinais exteriores de riqueza, do egoísmo pouco solidário, do consumismo desenfreado. E essa é a modernidade.
Sabe madrinha, tive mil e uma razões para voltar as costas aos bancos da igreja, dizer adeusinho e bater com a porta. Estou certo de que a maioria das pessoas não notaria a minha ausência a não ser lá em Cima, cuja preocupação maior é a ovelha que se perde, não as outras 99 que estão localizadas. Ao contrário de muita gente, a religião foi ponto de partida e ponto de chegada. Já lá estava, por assim dizer, quando as voltas da minha vida me fizeram abrir os olhos. A bem dizer, estava em frente a um altar quando me embateu um tijolo nas ventas.
(e perdoe-me, madrinha, esta liberdade de linguagem).
É uma metáfora, como bem perceberá, mas quero explicar que vivi os dramas que me bateram à porta do lado de dentro da igreja, como praticante, para usar uma expressão corriqueira. Ao contrário, também, de outros, sempre soube que as ondas que varreram a minha vida eram obra das leis naturais do mundo, não dos desígnios de um qualquer altíssimo que zurzia vidas pacatas sem razão nem entendimento.
Já lá vão sete anos desde esse embate. Os padres continuam a fraquejar porque têm uma dimensão humana. Mas, estou certo, o que caracteriza o homem é a ascensão depois da queda. Os dinheiros que as diversas estruturas da igreja gerem nem sempre terão um destino perfeito, podendo-se questionar o destino que lhes é dado. No entanto, parece-me indiscutível que a Igreja Católica (e outras, seguramente) está na linha da frente do apoio aos desfavorecidos, aos marginalizados, aos pobres, aos desalojados, aos excluídos. Os valores de que falamos não fazem parte do léxico em voga, porque mencionamos a entrega, a caridade, o altruísmo, o serviço, o amor ao próximo.
Apesar de tudo isso – ou se calhar por causa de tudo isso – sinto-me bem dentro da Igreja que escolheram para mim e cuja escolha validei na altura certa. Não me preocupa nem indigna a imperfeição, porque é também a roupa que envergo diariamente. Todas as semanas oiço qualquer coisa que me desafia a ser melhor, a ser diferente. A maior parte das vezes disfarço e olho para o lado, nesta injustiça de não reconhecer a imensidão de ensinamentos que poderiam fazer de mim um homem um ser mais completo. Que Deus me dê força e discernimento fazendo de mim um homem privilegiado, porque mais não peço.
Perguntar-me-á, curiosa, os verdadeiros motivos desta missiva algo errática sobre um assunto tão do domínio do nosso íntimo. Olhe, madrinha, porque hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de católico.
Ofereça-me os seus braços ao amplexo, a sua face ao ósculo, o seu coração ao afecto. E deixe-me repetir o amor ilimitado que lhe devoto, afilhado fraco e pouco agradecido.

JdB

22 novembro 2008

Amores de Perdição

Não há bairro que as não tenha. Airosas ou atabalhoadas, as tascas são a segunda casa do genuíno alfacinha. A boa vida das gentes.

Aqui na capital, onde cada vez se come pior, se é mais enganado e desarmado perante a coragem para tanta trapacice culinária, é difícil encontrar casas que vivam mais pela vocação e menos para o negócio. Falo dos restaurantes vulgares que proliferam por toda a Lisboa, exímios no croquete que sabe a tudo menos a carne, que se nos cola à dentadura, embrulha na goela, e não há meio de ir para baixo se não ao empurrão de qualquer coisa líquida de paladar acentuado... é uma bofetada que, caramba, não merece quem vem, de boa vontade, com fastio ou apetite, comer. É o come e cala. O paga e siga, andor, há mais quem queira. Amanhã torna a vir, e tudo se repete com o rissol de camarão, em massa grossa como parede mestra, recheio minado a caules de salsa e cascas do bicho, enchumbado em óleo, e é se quer... “Olhe que é fresquinho.” O “fresquinho” mata qualquer um, cala o atrevido, embrulha o esquisito e regala as donzelas.

Falando nelas, antigamente, Deus as livrasse de entrarem nas tabernas que ganhavam famas. A tasca estava para os homens como o lugar para as mulheres. E que faziam afinal estes homens que não queriam lá as suas damas? Jogavam, gastavam o sustento, bebiam até cair, nas alegrias, nas tristezas, nas horas mortas, nas horas vagas, sem ninguém a atazanar. E conseguiam fazer exactamente o mesmo que elas, penduradas às janelas. Teciam a vida alheia, mandavam brasa, opinião, levantavam falsos testemunhos, arranjavam confusão, intrigalhada da pior. Com muito saber, muita categoria, sim, que dali nada saía. Era a diferença. Ouviam em casa para contar nesse “escritório”. Ouviam no “escritório” para satisfazer o túmulo, o poço sem fundo de homens que eram, com letra grande, aquele H que jamais suscita engano, nem ao mais ignorante magano.

Hoje gosta-se da tasquinha. De uma tasquinha asseada. Gabarolas na ementa, no jarro de tinto, na factura generosa. É tudo bom. Tasca que é tasca deve ter comida simples mas apurada, vinho avulso de uma qualquer região – Aveiras no topo dos fornecedores, para azar dos alfacinhas – pão de lenha, sem manteiga, e azeitona, que tanto calha de ser verde como preta. Quem manda na tasca é a tasca. É o dono, é a mulher do dono, é a filha, é o rapaz, anafado e velado na camisola Ronaldo, que leva a tarde a empanturrar-se de Bollycaos e declina todo o petisco da mãe. Aqui não há patrão e as regras não se discutem, assim como os lucros, que nem dão azo a comentários, muito menos a invejas. Aqui entra de tudo, não há discriminação, selecção de freguesia. Quem quer fica, quem não quer vai andando. Numa tasca o jogo é limpo. Prognósticos ou reclamações só no fim da patuscada, longe da porta ou entre dentes.

E nesta cidade de oitos e oitentas, com cada vez mais restaurantes de luxo e cozinha de autor, andam as tascas desanuviadas. Ao contrário dos congéneres ricos, que tanto se nos dá onde fiquem, a tasca tem que ter enquadramento. Tasca é coisa de rebuliço, é do povo morador, é do munícipe. Há-de ter balcão que ampare os cotovelos de quem não se dá sentado. Há-de estar num largo, na mais linda artéria da freguesia, há-de ter vista para muitos lados e portas escancaradas, há-de ter próxima a paragem, a passadeira, as escadinhas. Há-de ter varandas por cima, roupa a secar, e no mínimo, uma velha a coscuvilhar. Se é ribeirinha, tem de ver o rio ou sentir-lhe o cheiro. Lisboa tem muitas tabernas, algumas famosas, outras só do bairro, para o bairro, com as suas horas de ponta, imperdíveis. Ao fim da tarde, desagua tudo ali. Tratam-se por tu, viram-se crescer, sabem quem morreu, quem não paga a renda e em Junho marcham juntos na Avenida. Sem o saberem, são uma família.

Era uma sexta estrelada ali na Praça da Armada. Os magalas da Marinha, em serviço no fim-de-semana, até se roíam de inveja. Só que os grumetes não podem largar a porta, nem que ao fundo vejam nítida a sua aldeia. No Beirão, entra-se e tanto se pode estar na Beira, como em Trás-os-Montes, como em qualquer bairro de Lisboa. O tecto baixo não perdoa e dissemina as pronúncias portuguesas. O avô diz come o caldo, o neto diz que antes prefere a chicha. Tás com a mosca? Tu-és-mes-mo-da-ha… Venham os carapaus, o arroz solto à moda de Bragança e o tal de Aveiras, tinto. O Sporting diz adeus à Taça. Agarra-te à cabeça, agarra. O balcão à cunha. Entra um tipo de roupão. Turco, raso, sem cor. Um boné verde e vermelho, as quinas de Portugal na testa. Os chinelos de fazenda, herdou-os – tem os calcanhares de fora. Vem ao tabaco. Isso pensava ele. Que magnético balcão… Atracou. Perdido por cem... olha o Júlio! No Beirão, as janelas dão à Praça, à calçada inclinada, à buganvília do 31 da Armada, ao chafariz, ao parquinho dos miúdos, dos graúdos, altas noitadas, grandes futeboladas debaixo dos jacarandás.

Já ia no segundo, quando o “puto” meteu a cabeça. Paaiii. Pra casa Ruben! Dá mais um pires e outra imperial. Paaiii. Arregalou os olhos e a sua versão em estado puro deu sebo às canelas. Apertou o cinto ao roupão, atravessou a sala e certificou-se. O miúdo já se tinha esgueirado. Voltou ao encosto, esvaziou devagar o prato e o copo, pagou, acendeu um cigarro e despediu-se directo ao Beco dos Contrabandistas. Ninguém estranhou a farpela. Que diabo, um homem pode muito bem estar em casa e ter necessidade de vir à rua. E porque raio há-de um homem vestir as calças só para ir ao tabaco? Seguem-lhe os passos o Avô e o neto já comido, a mascar a pastilha prometida. Já vais?! Tou agarrado com este… e hoje tá bera! Quem dita o horário são os fregueses. Saem uns, entram outros. De fora, dali, mães que metem o nariz a ver quem está enquanto fervem à conta dos seus Marcos, dos seus Rubens. O teu homem saiu agora. Eu sei. Oh… se sabem.

DaLheGas

21 novembro 2008

uma canção de amor



lembras-te?

lembras-te do dia em que fintei a segurança, naquele jeito gingão e latino que herdei, talvez, da bisavó brasileira, para ir aos bastidores, no final do primeiro espectáculo teu que vi, para te apertar a mão, enquanto tu e a tua banda despiam, literalmente, os fatos que haviam envergado, durante a vossa actuação? fumavas um cigarro, ficaste admirado, mas deixaste-me entrar no teu camarim, templo - ou lá o que era..

lembras-te de um dia de meu aniversário, em que, findo o jantar familiar, numa tasquinha do nosso bairro alto, arrastei a família para o teatro são luiz, só para te ver e lhes mostrar porque razão falava tantas vezes de ti? cantava o grande carlos do carmo, quando entrámos; depois a ana moura; pouco mais tarde entraste tu, de mãos nos bolsos e esse ar displicente com que te defendes do que cantas. homenageavam o 'zé da guiné', figura mítica do bairro alto dos anos 80, que lutava contra a pobreza, a doença e o esquecimento - miserável trindade..

lembras-te de quando comprei bilhetes para dois dias consecutivos do teu espectáculo, outra vez no belíssimo teatro são luiz, porque, para mim, uma vez nunca foi medida para nada, quanto mais quando a vontade é desmedida?

lembras-te de, momentos antes de um espectáculo teu, na aula magna, nos termos cruzado, algures por aquelas bandas - tu empunhando um cabide com o fato com que irias actuar; eu, caminhando e falando de ti a uma querida amiga - e de me teres cumprimentado com um "boa noite"? as pessoas, outros passantes de ocasião, repararam e comentaram. quem seria eu, para merecer a tua saudação?

lembras-te da "pequena" actuação, em directo e com direito a uma pequena conversa com o público, para uma rádio de província, algures numa vila dos arredores de lisboa? eu sentado, por lá, com uma companhia circunstancial, sem perceber que "o fado do adeus" que cantavas era já também o meu próprio fado, anúncio de tempestades por vir?

lembras-te das viagens de quase 300 km para cada lado, em que eu, sózinho e perdido nos meus pensamentos de chumbo, levava os teus discos (tinhas 3 editados, por esses dias) e ouvia-os inteirinhos, compulsivamente, enquanto me ardia o coração?

lembras-te de cantares, num certo verão incendiado, nas ruínas do convento do carmo, para uma plateia que, por cima desse ar de agosto, olhava directamente as estrelas? e de eu pensar para comigo que há momentos perfeitos, que nunca mais esqueceremos?

lembras-te de eu, enquanto jantava com um par de muito queridos amigos, algures por alfama, ter começado uma discussão (quase séria, quase a sério) com o empregado de mesa que teimava em desvalorizar-te, quando comparado com a, para ele incomparável, "senhora dona amália", e de eu, ofendido, retorquir com voz grossa - para deleite dos meus amigos que assistiam estupefactos a uma cena improvável?

lembras-te, camané?

eu lembro-me.

gi

20 novembro 2008

Livros dos tempos que correm


Da badana
Na Barcelona turbulenta dos anos 20, um jovem escritor obcecado com um amor impossível recebe de um misterioso editor a proposta para escrever um livro como nunca existiu a troco de uma fortuna e, talvez, muito mais.
Com deslumbrante estilo e impecável precisão narrativa, o autor de A Sombra do Vento transporta-nos de novo para a Barcelona do Cemitério dos Livros Esquecidos, para nos oferecer uma aventura de intriga, romance e tragédia, através de um labirinto de segredos onde o fascínio pelos livros, a paixão e a amizade se conjugam num relato magistral.

Da contracapa
«Um escritor nunca esquece a primeira vez em que aceita umas moedas ou um elogio a troco de uma história. Nunca esquece a primeira vez em que sente no sangue o doce veneno da vaidade e acredita que, se conseguir que ninguém descubra a sua falta de talento, o sonho da literatura será capaz de lhe dar um tecto, um prato de comida quente ao fim do dia e aquilo por que mais anseia: ver o seu nome impresso num miserável pedaço de papel que certamente lhe sobreviverá. Um escritor está condenado a recordar esse momento pois nessa altura já está perdido e a sua alma tem preço.»

Colecções

Nascer do sol ao largo
(para não fugir aos bons caminhos e à nostalgia que ultimamente têm aterrado por aqui)

Há quem goste de coleccionar selos, provavelmente a colecção mais maçadora (acho eu, neta de um avô que se entretinha manhãs e tardes em volta de selos – mas não uns selos quaisquer, apenas os do país dele -, desprezando os exemplares mais exóticos do resto do mundo). Há quem prefira coleccionar moedas. Carteiras de fósforos. Sapatos, como a Imelda. Cartazes de cinema. Bonecas. Dedais em miniatura. Porta-chaves. Chávenas de café, desde que sejam azuis. Ferros de engomar. Borboletas. E conheci um coleccionador de borboletas, que também se deliciava a procurar aumentar uma colecção de válvulas de telefonias antigas.

As colecções, definitivamente, não me fascinam (ao contrário de alguns coleccionadores que acabam por se revelar personagens curiosos).

Nem sequer me fascinam as colecções de livros (também não sei porque é que só falo aqui de livros, mas calhou. Desculparão os que gostarem de outros temas, que lerão com maior gosto os outros convidados deste blog). Mas também tenho de confessar que neste capítulo faço excepções. Não resisto, sobretudo, a três colecções: os guias de campo da norte-americana National Audubon Society, o meio milhar (!) de pequenos livros de referência da colecção Découvertes, da editora francesa Gallimard, e uma colecção que não é uma colecção - a revista trimestral Granta, da editora inglesa Penguin. Não têm capa dura, não são especialmente volumosos nem ficam bem nem mal na estante. Solitários, nem se repara neles. Os franceses cabem no bolso, os outros quase. A Granta leio de fio a pavio. Os outros nem por isso. Espreito, de vez em quando. Gosto de saber que estão ali, à mão, sempre que me apetecer ou precisar deles.

Experimentem.

Mónica Bello



19 novembro 2008

Largo da Boa-Hora

A caminho do meu banco, pela Rua Augusta, pela Rua do Ouro, cruzei-me com muitos que, como eu, cumpriam o seu dia nesta etapa da hora de almoço.
Ruas aquelas, majestosas, ricas de oportunidades e diversidades, plenas de gente, todavia ingloriamente calcorreadas em passos apressados por semblantes rígidos, em alheamento, indiferença, todos aparentando estarem a cumprir uma qualquer missão marcial.
Desse encontro, duas impressões me marcaram - uma provinda do colectivo e a outra dos indivíduos.
Do colectivo, impressiona-me que a concertação de tanta gente, tanto movimento, tanto acontecer gere todavia um silêncio dominante que se entranha imediatamente, que se percebe como coisa bizarra, que não devia suceder mas sucede. Espanta, assusta e entristece. Era suposto acontecer comunidade, mas não acontece, tão só ajuntamento, coincidência de estada, de mudos, de silenciosos, de afastados, de avessos ou indiferentes uns aos outros.
Feche-se o semáforo, fique o trânsito suspenso e não ouviremos nada, nenhum som da onda humana em movimento, nem um burburinho.
Entrar nestas rotas de movimento não é ser mais uma gota de água num rio vivo, fervilhante, que corre com turbulência e efervescência; entrar, é ser gota de água que escorre solitariamente pela vidraça em dia de chuva.
Dos indivíduos impressiona-me a atitude, o olhar, o fácies daqueles por quem vou passando.
Reina a invisibilidade, são cruzamentos entre névoas, entre nadas que se intersectam por segundos, num acaso inconsequente.
Em cada passagem pelo outro, os olhares, os gestos, os movimentos, transmitem a obstinada mensagem: ignoro-te, prescindo de ti.
Não há olhares que se fixem em partilha, por segundos, de condição humana; não há sorrisos que se formem e sejam protestos de simpatia, de solidariedade; não há variações de passo, de posição, de movimento, que confirmem o reconhecimento do seu semelhante, do seu igual, que o procurem adivinhar e ler, ainda que pela simples curiosidade e interesse sobre o como vamos
Não os vejo a passear, mas tão só a passar. Cumprem-se itinerários de e em isolamento, e não percursos de divagação, distracção, revelação de presença, desfrute do outros, busca de comunicação, de interacção com o mundo envolvente.
Não se iludam, não se trata de pressa, de urgência no circular. A pressa não é a causa, mas sim o efeito, o efeito do desgosto do caminho. A indiferença pelo que vai passando é que estuga a passada e mantém o olhar fixo no chão, no espaço do passo seguinte.
Porque será assim? (é certo que não cuido da espécie dos arrogantes e outras derivas)
Não sei, mas temo que seja pela desistência do próximo, descrença que naquele desconhecido com quem se cruza possa haver uma dádiva e uma recíproca necessidade de afecto que alimente ou restaure a alegria do momento que passa.
Temo que cada um se esgote em si mesmo, desacreditando no outro, desacreditando que mesmo um desconhecido pode, numa simples e inocente simpatia, sem passado nem futuro, ajudar no presente, fazendo-nos sentir notados, vivos, importantes, seres que contam para os outros, e para quem os outros contam.
Em reciprocidade ou retaliação, se preferirem, recusa-se sentir os outros, dar-lhes reparo, simpatizar com eles, gerar contentamento pelo simples ânimo de os fazer sentir que se lhes quer dar a nossa atenção, o nosso olhar, o nosso sorriso.
“Ver e ser visto” é indispensável para não ser trucidado pelo comboio que vai passar, mas é também condição insuprível para não sermos esmagados pela solidão existencial que é igualmente mortífera.
Suspeito pois que proliferam e dominam os caminhantes desiludidos, com tamanha desilusão que aligeiraram a bagagem, deixando a alma guardada em algum lugar, como inerte inútil que não importa carregar na jornada.
Desequipados da alma, são espectros em movimento e não seres humanos em relação e comunicação.
Também sinto que para muitos, demasiados, se adensa e acumula o cansaço deste seu viver, o qual, insidiosamente, como larva de insecto, vai construindo o opaco casulo que aprisiona, paralisa e torna as suas vítimas em cegos, surdos e mudos sociais. Autistas da humanidade.
Restaurar a humanidade na Rua do Ouro, ou em qualquer outra, é o que proponho.
Não sou nem demasiado lírico nem demasiado ingénuo para propor que se retome a saudação, a palavra espontânea, os bons dias, a companhia. Nada disso.
Busco que cada um, a partir do humilde reconhecimento e interiorização da sua própria fragilidade e dependência do outro, acredite que se tomar a iniciativa de dar expressão humana a si próprio, de transparecer os seus sentimentos, de deixar fluir o seu ânimo, receberá do outro fraternidade e solidariedade, expressas na mágica sinalética da comunicação humana.
É imensa a capacidade que o aparentemente pouco pode fazer sobre o muito, quando falamos de sentimentos e estados de alma. Nunca se despreze o pouco, quer quando se dá, quer quando se recebe.
Por mim, levanto-me deste banco e começo a caminhar, determinado a dar e pedir um sinal de fraternidade àquele que passar e para o qual vou olhar com vontade de o ver e de que ele me veja realmente.
Acredito, e por isso talvez um dia volte a haver burburinho na Rua do Ouro.

ATM

18 novembro 2008

História da primeira vez

Mesmo na varanda, o dia esperava para passar.

A sala velava a obscuridade dos cortinados corridos, coando pela cor em tempos definida um tom constante e vago e duas linhas finas de luz e de poeira.

Regressado ao maple, recostou os olhos no ponto brilhante onde uma das linhas encontrava o chão.

Passou da nódoa redonda no tapete puído ao quadro de sempre por cima do aparador.

Reparou que a figura ao fundo do lado da árvore maior tinha na mão um peixe.

Trincou de lado o indicador e vagueou o olhar até voltar ao peixe, cada vez mais nítido depois de anos e anos de ausência.

A hesitação, embora tranquila, deslocou-se da novidade impossível à tentação inerte do corpo feito pesado.

E do maple para lá.

Franziu a miopia, poupando as pernas.

O pequeno peixe rebrilhava, desviado agora para o centro do quadro, num protagonismo crescente que não podia ser.

E da mancha pincelada inicial definia-se, já não um peixe que parecia, mas claro e evidente robalo de três quilos que a mão do pescador, esse sim esboçado apenas, segurava em esforço.

O bicho pulava do fundo magenta forte, em riscos de sombra, avolumando o desenho por escamas e luz branca.

Era também novo o magenta ao fundo?

E o traço a vermelhão limpo que a mulher sobre o ribeiro nunca vestira?

Carregou um pouco mais no amarelo nápoles e segurou o céu num ponto de fuga firme e perfeito azul-cobalto.

Logo ele que não tinha grande jeito para pintar.

JCN

17 novembro 2008

Post em jeito de resposta

Desde que o Adeus, até ao meu regresso... existe que volta e meia surge um comentário - normalmente simpático - que um dos visitantes entende deixar. Qualquer "dono" de blogue se alegra com estes cartões de visita que gente anónima, amiga, conhecida deposita numa caixinha adequada para o efeito. Fruto de circunstâncias várias, na maioria das vezes não respondo - menos ainda o fazem os bloguistas actuais, pouco familiarizados com estas novas tecnologias. Não se infira, de modo algum, desrespeito ou desconsideração por quem se aprochega e deixa palavrinhas de incentivo, de amabilidade, de leitura gostosa, mas apenas, e tão só, alguma falta de tempo e de concentração.
Agradeço a todos os que aparecem e deixam evidências da sua visita. Estou certo de que os meus colegas de escrita se irmanam nestas palavras de apreço. Não desistam, por isso, e continuem a aparecer. Um dia, quando menos se esperar, as respostas aparecem.

JdB

SAUDADE

Adoramos ter coisas só nossas e sentimentos que mais ninguém consegue partilhar. Faz-nos sentir especiais, únicos, e até misteriosos. Vem isto a propósito da palavra saudade que aprendemos e ensinamos não ter tradução em mais nenhuma língua viva. Pura ilusão! Saudade tem tradução em todas as línguas presentes ou pretéritas e terá certamente tradução nas línguas que vierem a formar-se no futuro. Talvez as palavras traduzidas possam não ter o rigor da palavra original, mas conseguem seguramente representar o sentimento subjacente. A saudade é aliás um dos sentimentos mais intemporais e universais experimentados pelo homem.

Quando Ronald Biggs, o assaltante do comboio correio de Sua Majestade, que vivia num exílio dourado no Brasil a gozar o fruto do roubo, resolveu voltar para Inglaterra e passar os seus últimos anos de vida numa prisão, fê-lo porque estava derramadinho de saudades da sua terra e não queria morrer sem voltar a pisar solo pátrio.

Quando Vasili Mitrokhin, desertor do KGB, teve que enfrentar a vida em Inglaterra e os passeios nas pindéricas florestas britânicas, confessava para quem o queria (e podia) ouvir que morria de saudades das florestas russas. E acabou por morrer, coitado, dizem de tristeza e de saudades.

Quando o filho de Napoleão viu confirmada a sua prisão domiciliária no palácio de Schonbrun, entristeceu, definhou e morreu. O boletim de óbito indicava ter sido a neurastenia a causa da morte. Mas é evidente que foi a saudade.

Da saga escandinava à poesia trovadoresca, do folclore búlgaro à música sertaneja brasileira, da tradição africana à poesia persa, não deve existir manifestação cultural que não tenha a saudade como elemento central. Como o amor, a saudade é um sentimento unificador, que irmana o aborígena australiano ao yuppy nova-iorquino. Ao contrário do amor, é no entanto um sentimento negativo. Uma saudade como deve ser provoca dores físicas e pode mesmo levar à morte como se viu nalguns dos exemplos atrás referidos. Mas mesmo antes da morte, a vida deixa de existir quando só resta a saudade.

Curioso é que se podem ter saudades de lugares e situações que nunca vivemos. Eu por exemplo tenho saudades do Rio de Janeiro dos anos 60, da Paris do princípio do século XX, da Viena imperial do século XIX, do oeste americano do tempo dos cowboys, do Portugal do tempo dos Descobrimentos, da Europa feudal e dos tempos do início da Cristandade.

E poderão perguntar-me porque raio é que escrevi este texto. Naturalmente porque tenho saudades, muitas saudades.

J. Buggs

16 novembro 2008

Imagens dos tempos que correm


Pôr-do-sol em África a 120 km por hora

Músicas dos tempos que correm



Um renque colorido de lâmpadas no tecto; posters e recortes de revistas a enfeitar paredes brancas; uma nódoa persistente de óleo no chão que a vontade não venceu; meia dúzia de cadeiras displicentes espalhadas pelo local; uma música que sai de um gira-discos porque alguém puxou um braço de agulha para trás e o assentou sobre um vinil que roda a 33 rpm – ou 45, conforme. Chego-me a ti e pergunto-te se queres dançar. Os meus olhos fogem-te de nervos e ansiedade mas estou certo (há no amor o dom de uma certeza, sabes? Foi uma escritora que o disse, e quem escreve assim não mente, apenas pinta o mundo com as letras com que o vê) de que irás sorrir-me de volta, naquela cumplicidade inocente e ainda incompreensível. Claro que sim, respondeste, como quem se questiona se haverá mais alguma coisa a fazer que tenha sentido nos minutos mais próximos. Nós os dois numa garagem, como se mais nada houvesse, como se tudo se esgotasse numa rapariga que cantava we were so close, there was no room. Um cabelo comprido castanho, apartado ao meio e tombado sobre uns ombros largos; duas almas juntas na promessa de um beijo; olhos fechados, cegos para a finitude das coisas; respirações compassadas de quem vive por igual; uma música que pára porque alguém levanta um braço de agulha de um vinil que roda a 33 rpm – ou 45, conforme. Dançámos tão juntos que me deixaste marcas na alma. E é também por isso que te voltarei a convidar para dançar, nesta ou noutra garagem, com outras luzes coloridas, outras cadeiras displicentes, outra nódoa persistente que a vontade não venceu.

A parábola dos talentos

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de católico…

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola:«Um homem, ao partir de viagem, chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens.A um entregou cinco talentos, a outro dois e a outro um, conforme a capacidade de cada qual; e depois partiu.

É assim que começa o Evangelho deste 16 de Novembro que fala da parábola dos talentos. Como tantas e tantas coisas na minha vida de crente, só muito tarde interiorizei a verdadeira dimensão deste texto, a sua excepcional actualidade permanente: o desafio constante a que ponhamos a render aquilo que somos e possuímos, as nossas capacidades inatas.

Estou no domínio do lugar-comum, mas tenho para mim que nada do que temos é verdadeiramente nosso – sejam os bens materiais, sejam os tais talentos com que nascemos. Tudo nos é dado para que os ponhamos ao serviço do próximo, do bem que é de todos, dos mais desfavorecidos, dos que mais sofrem entre os que sofrem, daqueles que partilham vidas connosco.

Não falo do despojamento ilimitado a que, no entender de alguns raciocínios tendenciosos, nos convida a Bíblia. Nada nem ninguém nos solicita a que prescindamos de tudo o que é material em favor de terceiros. O verdadeiro desafio é outro: é ir mais além, ser mais alto, olhar de forma diferente, não nos quedarmos numa apatia burguesa e comodista suportada num raciocínio de que temos vidas difíceis, dias ocupados. O verdadeiro desafio está em olhar para os nossos sucessos ou possibilidades, para as aptidões que temos e pensar: o que faço eu com isto? Que sentido dou à minha vida? Como ajudo os que precisam?

Ao longo do Evangelho de hoje somos confrontados com três servos que fizeram usos diferentes dos talentos que receberam. Olho para a minha vida e fujo da tentação de achar que sou igual ao primeiro ou igual ao último. Provavelmente estarei, como a maioria, entre ambas as realidades. Vou tentando lembrar-me, sabendo que nem sempre consigo, da frase de Edmund Burke, citada até à exaustão mas que é sempre actual:

Ninguém comete erro maior do que não fazer nada, só porque pode fazer pouco.

JdB

15 novembro 2008

Ainda te lembras?

Desafiou-se a alma ao desapego, contando aliviar-se, coitada. De querer eternas as pessoas, imóveis as coisas e os lugares. A ilusão do sempre, a desilusão do fim... Mas nestas paragens, regala-se. Não há desapego com nexo, nem coisa que pese, e o que a comove, da alvorada à noitinha, é poder gozar todos os apegos. É um ror de tantas lembranças, de expressões esquecidas, de um povo igual ao que a criou… e lides bonitas, vivas, terras milagrosas, águas que ainda correm, gente de empenhos e jeitos só seus. Regala-se, refaz-se, aqui, a alma.

Já vai longa a nossa história. Tu tens séculos para contar e eu décadas. Quando me acolheste era ainda uma menina. Vinha de outro hemisfério, de paisagens cheias de sonhos. Tomaste-lhe tu o lugar. Eras a terra prometida. A saída. O horizonte onde os dias haveriam de medrar. Que o passado, por amor à vida, passado era.

Em ti cresci o maior bocado de que tenho memória. E aprendi que embora aos homens fossem destinadas diferentes sortes, tu te davas de igual modo a todos eles. Nunca tiveste reservas, era essa a tua lei. Talvez por isso depressa me apaixonei.

Foram anos e anos de repimpados banquetes, de apetitosas orgias debaixo desse teu céu. Nos invernos mais gelados, em infinitas Primaveras, a cada tórrido verão, que invariavelmente acabavas em cores de palha e com milhares, milhares de folhas pelo chão. Ainda havia essa Estação...

Ensinaste-me o teu cantar e os seus passinhos de dança. Que pujança! Mostraste a que cheiram as ervas daninhas, o valor de uma colheita, o sabor em que terminam as tuas vinhas. No som de várias enxadas a guiar os ribeirinhos, o rigor de cada trabalho, e a alegria dos domingos.

Eras uma vila airosa, onde todos se falavam. Na ponte, no rio, no largo, no chafariz, até na feira, ainda que aos gritos apregoasse uma tendeira, era esse o teu cariz. Não há pronúncia mais bela em todo o Vale do Lima e onde a língua portuguesa, mesmo em dorida expressão, teime entoar uma canção.

Hoje trazes novidades. Foste à cidade beber? Para mim ainda és a mesma, sempre, sempre o hás-de ser. A brisa fresca, a verdura insinuante, os campos até ao rio, montanhas até ao céu, a saia de florinhas, bordada a muros de pedra. Para mim, és sempre a mesma, desde aquele primeiro dia em que me deitaste a mão.

Já não tenho aquela força de te correr dia a fio, de subir a cada galha, de aguentar a geada, de amassar uma fornada. Resta-me, vila, olhar-te serenamente. Dizer para dentro de mim “ai soubesse as pândegas que já vivemos, esta gente...”. Agora é que sou fidalga. Repouso pelos relvados, à sombra dos castanheiros, em vez do Vira, ouço Fados.

Não estou diferente, senhora. Estou cansada, quero mimos. E quem melhor do que tu, meu vale, para me curares a saudade e cuidares dos meus meninos? Mostra-lhes o que me ensinaste, sem que eu tenha de falar. Sopra-lhes tu aos ouvidos, reflecte nos seus peitos o que tens para lhes dar.

Deus te guarde, Deus os guarde. Que de ti se enamorem. Eles e todos os outros. Esses que por aqui vêm, sedentos de paraísos, procurando uma razão que lhes perfaça os sentidos. Isso para ti é fácil, não sabes tu outra coisa. Dá-lhes mais uma malguinha, serve-lhes o prato cheio, deixa-os debaixo da ramada encostados a um esteio. Uma coisa te garanto. Regressam agradecidos, esquecidos de todo o pranto.

DaLheGas

14 novembro 2008

the untitled words

flores colhidas com os lábios. uma canção impossívelmente romântica, a rasgar a noite. poesia escrita a fogo e pele. um estremecimento qualquer. palavras inventadas, a sair do forno. uma semântica livre. liberdade sem perguntas. um abraço inesperado. um disco perdido. um bilhete para a alegria. uma canção eléctrica, a ferver, no meio da madrugada. a pergunta certa. não ter medo. entender que, às vezes, desaparecemos, mas que voltamos sempre. carácter. bondade inabalável.
noites longas, largas, lentas, lânguidas, lábeis. a aurora numa cidade nova. café. filmes, como no meu tempo. o sporting. dignidade nos gestos. pele. a praia no inverno. a praia no verão, quando a tarde finda. conduzir no alentejo, de janelas abertas e coração aceso. jantares sem relógio. design, em sentido lato. simplicidade. conversar conversar conversar. laços de ternura. as memórias do meu país afectivo. sentido de família. espírito livre. gentileza em terra hostil. fósforos metafóricos. sol, sul, sal. amanhãs que teimam em cantar. brilho nos olhos dos outros. o conforto dos estranhos. amanheceres interiores. todos os/as avós do mundo. rostos desconhecidos que nos comovem. amor em estado puro. sensibilidade e bom-senso. absoluta fome de absoluto. coisas anacrónicas. palavras como crepitar, feérico, embriaguez, transbordante. roçar o ridículo para ousar o sublime. reconhecer os mestres. ter memória. a gratidão. heróis improváveis. amores impossíveis. generosidade desinteressada. pessoas que perguntam 'como estás?' e esperam pela resposta. valores. a estética da ética. a ética da estética. viver o melhor possível. livros que nos rasgam em mil. livros que nos reconstroem. filigranas subtis. a beleza de certas lágrimas. mudar a nossa rua. uma mão estendida. acreditar sempre. ler prosa e senti-la como poesia. ser justo. delicadeza avulsa. os detalhes. viagens cá dentro. horizontes em branco. esculpir palavras.

gi

13 novembro 2008

Nota do Editor aos cinco mil

Escrevo este post no momento em que o contador revela que o Adeus, até ao meu regresso atingiu as cinco mil visitas, representando a média de quarenta por dia. Sinto um orgulho infantil igual ao de inúmeras crianças que, por esse país fora, se babam com uma festa da professora primária nos cabelos revoltos. Está muito bonito, Nelson. Muito bem. Continua que vais a doutor… E o menino baba-se, rebola a língua no céu-da-boca, adorna o “f” com um colchete e acaba aos 14 anos agarrado a uma máquina de fazer sapatos.
Este blogue nasceu em meados de Julho para revelar ao meu mundo a minha estadia no Zimbabué. Algum tempo depois de regressar entendi que era altura de o emancipar e deixá-lo seguir o caminho do desaparecimento consciente, mas duas vozes se ouviram no local onde trabalho normalmente. Uma, vinda dos meus fundos, gemia não vás! Não vás! A outra, saída do disco rígido, balbuciava não me deixes! Não me deixes! Qual o pai que não ouve estas duas vozes que clamam no mesmo sentido?
Aqui estou, nesta nova fase da minha paternidade que já leva quase duas semanas. A minha alma satisfaz-se por ver esta fraternidade bloguista que vai fazendo o seu caminho, que vai deixando um pouco de si, que se aprimora e enfeita este fundo verde (que já foi apodado de triste) com o décor da sua sensibilidade. Não poderia estar mais bem acompanhado, e agradeço ao destino e às circunstâncias próprias da vida o ter-me cruzado com este sexteto maravilha.
Não vos demoro, porque é altura de descer no blogue e procurar outras paragens, seguindo crónicas que desaustinam qualquer mortal cristalizado no sofá; recuem dois dias para ler histórias de bosques com folhas e livros despenteados pelos cantos; sentem-se ontem no Largo da Boa-Hora, onde pela nossa frente se passeiam pessoas, prédios em ruínas e as nossas próprias reflexões sobre as coisas do mundo. Voltem amanhã, e depois, e depois…
Despede-se o editor, orgulhoso, tal e qual o Nelson que sente um frémito percorrer-lhe o corpo ao contacto daquele elogio com aroma de sândalo.

Adeus, até ao meu regresso…

Nota: Para que não haja confusões com outros bloguistas cujas iniciais se assemelham, passarei a assinar JdB, a pedido de amigo chegado.

Bons caminhos

Há dias assim. Semanas assim. Apetece meter umas roupas no saco e bater a porta. Pormo-nos a caminho sem calendário, nem paragens previstas. Ou data de regresso marcada. Acontece-me quando não apetece fechar o livro que tenho entre mãos. Esperar pelo dia seguinte para continuar caminho.

Vou nas primeiras páginas ainda de “O meu país inventado” de Isabel Allende. Sou novata na autora. Este é o segundo livro de Allende que leio, a conselho de amigo, depois de “Inês da minha alma” – não se pode ler tudo, nem tudo o que gostaríamos. Comecei no Chile de quinhentos, dos conquistadores, aterrei agora no Chile do século 20. Já percebi que vou gostar tanto do segundo como do primeiro. Ambos me tentam – como tantos outros - a voltar à estrada. Às rectas sem fim da Patagónia, ou às picadas de terra cor de tijolo do Príncipe, ou às auto-estradas do Dakota do Norte, ou aos estreitos caminhos de cimento de uma pequena ilha de pescadores ao largo de Hong Kong.

Uma das minhas estradas preferidas é a chilena nº 255 - os 210 quilómetros de alcatrão que vão de "Paso de la Frontera", na fronteira com a Argentina, até à cidade de Punta Arenas. Aberta às ventanias, segue a margem Norte do estreito de Magalhães, acompanhada por rebanhos de ovelhas pastando ao longe, passando pelas carcaças do “Ambassador” e do “Amadeo” encalhados numa pequena praia de seixos rolados, assombrada numa curva larga pela central de petróleo e gás natural da Empresa Nacional de Petróleo, num lugar que dá pelo nome, nem de propósito, de Posesión. Há quem chame à Patagónia o fim do mundo. Outros, o princípio do mundo. Ao longo desta estrada, desenrola-se uma das paisagens mais desoladas do mundo, certamente. E um belo esconderijo de histórias, de personagens, de boas e más aventuras. O que me leva aos livros de outro escritor chileno, Francisco Coloane (1910-2002), que descreve como ninguém os homens, o mar e as paisagens deste Sul do mundo. Vale a pena entregarmos viagens em mãos assim. De Coloane a Allende.

Hoje, por sinal, estou na estrada. Curta - só até Leiria. Sem saco e com regresso marcado. Mas sempre é melhor do que mais um dia a uma secretária.

Acessórios de leitura

Um filme
“Trailer” do filme “Diários de Che Guevara”. Vale a pena ver ou rever esta viagem de dois amigos, de mota, ao longo de oito meses e 14 mil quilómetros, pela América do Sul. Chile e Patagónia incluídos.




Uma palestra
Isabel Allende sobre a escrita e as mulheres.




Antes que me esqueça

O “clip” publicitário ao turismo moçambicano estreou mesmo esta semana em Londres, no World Travel Market. Uma pequena parte já pode ser vista em http://www.stellamendonca.com/paradise.html

Mónica Bello

12 novembro 2008

Largo da Boa-Hora

Sento-me no meu banco, como de costume, mas hoje não me inspira a alma deste Largo, mas sim a ressaca da tragédia que se abateu sobre um homem, identificável por todos e que respeito, primeiro no seu descalabro, e agora profundamente na sua dor.
Em cerca de um ano, esse homem passou do topo profissional na carreira escolhida, da saúde, do casamento e da paternidade feliz para a destituição conturbada, a doença grave, o divórcio e a morte de um filho.
Tudo pela ordem enunciada, numa sequência de lances contundentes, graves e profundos, sendo o derradeiro absoluto.
Quando procuro uma imagem para o sucedido ocorre-me a de um homem impiedosamente terraplanado por uma brutal máquina que na passagem o cilindrou, esmagou e triturou como pedras de macadame.
Desses destroços, será que sobreviverá alma que o reunifique, reconstrua e reerga, devolvendo-o à condição de Homem, portanto com dimensão de felicidade?
Não sei. Esse futuro individual é matéria de intimidade que não partilho, nem partilharei, até pela singela razão de que, para além da comum condição humana, nada mais nos une, ou sequer relaciona vagamente.
Ora esse itinerário dramático faz-me meditar, perguntar-me se cada um de nós tem interiorizado um critério de constatação de felicidade que seja compatível com a sorte humana e, se o tiver, se realmente vive em conformidade com esse. Se no seu dia-a-dia o conclui com autenticidade, actualidade, exteriorizando-o no exercício quotidiano da vida.
O meu ponto de partida é que lidamos, inevitável e inexoravelmente, com o efémero, com a violência e bestialidade da natureza e da ordem das coisas, com a total imprevisibilidade do próximo momento e com a absoluta discricionariedade e arbitrariedade dos desígnios.
Perante estes pressupostos, e para abreviar a vossa leitura, arrisco-me a enunciar que o critério da aferição da felicidade, mais consentâneo com o risco da vida, não será somente o que valora “o mais obtido”, mas também aquele que privilegia “o menos sofrido”. O que importará mais não será, pois, tanto a graça vivida mas a desgraça evitada, a alegria sentida mas o desgosto omisso, a glória atingida mas a humilhação não sofrida, valendo estes confrontos de contrários para os demais sentimentos.
Nesta lógica, haverá dimensão de felicidade quando não se sentir dor, angústia, tormento, doença, medo, escuridão, desespero, solidão, abandono e tudo o mais que, sucedendo, infernaliza, desespera e destrói.
Num brevíssimo enunciado, diria que o estado de não sofrimento é um estado de felicidade; “não estar a sofrer é estar feliz”.
Como se deduz, pretendo enaltecer o avesso da vida, isto é, medir não só pelo “que se tem”, mas também, e sobretudo, pelo “que não se tem”, sendo esta a parcela essencial.
Quantas e quantas vezes dei comigo a dizer que se não fora aquela aflição tudo na minha vida estaria bem. Quantas vezes um só facto doloroso tomou posse de mim e consumiu todo o mais existente, e em que eu tive a real consciência, - até um sentir físico - que se removesse esse mal - como se extirpa um abcesso - então tudo estaria bem comigo, com o mundo, pois antes era afinal feliz.
Quantos eclipses do sol não passámos já cada um de nós, por dores, angústias, que lançaram trevas sobre as nossas vidas, e durante os quais, concluímos, então e só então, que éramos vidas suficientemente felizes, não fora esse eclipse.
Do meu ponto de vista quem, como eu, elege a ausência de dor como critério crítico de felicidade, tem medo da vida – não se confunda com cobardia – porque tem a lucidez de saber que num repente tudo se pode transformar maleficamente e desgraçar.
Mas essa eleição tem a consequência de se exteriorizar essa felicidade, manifestando-se num exercício quotidiano de alegria, boa disposição e sorriso. Quem interioriza realmente, como venho dizendo, tem luz, sol, ânimo e proveito.
Em cada momento sente-se e vibra-se com o privilégio de não estar a sofrer, porque conhecendo ou temendo o outro lado - o lado da dor - regozija-se genuinamente, e segue-se caminho.
Mas esta concepção importa ainda um ânimo exigente, precisamente o ministério de preservar o que se tem. Conservar, proteger, fortificar, acarinhar, amar, saborear, viver, o que se é e o que se tem constitui-se numa vocação, num modo de vida para os que acreditam – sabem – que o efémero ou a volta da roda da vida tudo pode consumir e destruir num ápice ilógico, irracional e brutal.
Ser assim é querer prolongar e salvaguardar a todo o custo o que temos e somos. Ser assim é entender que o presente é suficientemente perfeito, e que não há futuro possível que justifique o abandonar cada actual momento ao mero passar do tempo, desprezando a vida e desfrute que ela contém. O futuro é tempo que não vale o desprezo do presente, bocejando o aborrecimento do hoje pela quimera de um amanhã glorioso e pleníssimo.
O amor, ternura e afecto deste dia de hoje são os que importam realmente, os únicos que por estarem aqui e agora são reais, possíveis e autênticos, imperdíveis portanto, e que não consentem adiamentos, porque não é certo – longe disso – que o futuro exista.
Ao contrário, as brumas do tédio em que naveguemos neste dia são viveres adiados numa esperança de futuro quimérica, que erra porque despreza o momento, e cede vida, concedendo sermos apenas espaço onde o tempo passa por nós.
Tendo dito o que disse e estando já a levantar-me, assalta-me a dúvida se algum de vós - por defeito meu – ficou com a sensação de eu defender o “poucochinho”, a falta de sonhos, ambição, projectos, desafios ou coragem para viragens decisivas de rumo na vida, ou até rupturas.
Se os induzi nesses limites de tacanhez, peço desculpa. Na minha visão, toda a projecção do futuro tem pleno lugar e total importância, por mais ambiciosa e valente que seja, mas na condição de ligada ao presente, como a sombra se liga ao caminhante que pela manhã caminha para o poente da sua vida sob o sol a nascente.
Amanhãs sim, mas construídos no Amor ao hoje.
Sinto amargamente que escrevi para os que têm um hoje para sentir e viver, sentar-me-ei um destes dias para partilhar com aqueles para quem o presente já é vivido no limiar ou no aceso da dor e para os quais este texto só pode ser saudade ou inutilidade.
São horas, deixo o Largo da Boa-Hora e o meu banco, que agora é também daqueles que comigo se quiseram sentar.

ATM

11 novembro 2008

Ponto prévio e começo das histórias

Almada Negreiros escreveu algures qualquer coisa como que ninguém é estúpido senão por não saber estar onde está.

Por certo com presunção, acho que corro tal risco de forma particular nestes fóruns novos, que me continuam a deslumbrar. Para que vejam onde quero chegar, esclareço que ponho vírgulas, aspas e tiles nos SMS e me despeço por extenso com beijos e abraços.

É à luz deste registo necessário que compreenderão que, quebrando provavelmente respeitáveis conveniências blogosféricas, vos diga que este encerrar da primeira semana e do plantel (de onde raio terá saído esta extraordinária palavra?) me impõem um "muito obrigado" (ao anfitrião) e vários "prazer em conhecer" (a todos os outros).

Para lá da qualidade e profunda sensibilidade a que o J.B. nos foi habituando nos seus textos, antevejo-me com gosto com A.T.M. no banco do Largo da Boa Hora (a introdução é notável) e a seguir fiel as dicas de Mónica Bello (a julgar pela amostra, a coisa será surpreendente - ouviram a moçambicana Stella Mendonça a cantar Porgy and Bess?). Aguardarei com expectativa as cachimbadas opiómanas que g.i. nos promete, serei decerto apresentado à humanidade de várias Marias (Donas e meninas) por DaLheGas e antecipo com curiosidade as viagens do nosso confrade J. Buggs (súbdito de Sua Majestade?) pelo seu País.

E, posto isto, retomo as minhas histórias:

O começo das histórias

O apanhador da lua
sacudiu a chuva,
dobrou com cuidado a noite
e guardou o céu já gasto.

Aproveitou o alvor precoce,
sacou do orvalho ainda bom
com que esfregar a cara
e pôs o penduricalho de sempre
com um sol bordado
pendurado ao fundo.

Na abundância dos pormenores
contou pelos dedos
todas as histórias:

História para vos receber

“Pintei de bosque por dentro
o sitio dos meus dias.
Deixei inacabado o tecto em branco
(que não é cor nenhuma),
e vai bem com a madeira velha
nas portadas e pelo chão
(que também não).
Desarrumei para vos receber
este canto donde vos conto as cores.
Desarrumei-o
porque é assim que os bosques devem ser,
com pernadas fora do sitio
e folhas e livros despenteados pelos cantos.
A ideia é que entrem e se acomodem
ou cavem ou plantem
ou tentem o mais difícil
que é estar calados por dentro.
A ideia é que fiquem coisas novas à passagem,
que deixem marcas na erva
e escrevam o vosso nome a canivete
numa palavra qualquer que vos venha à cabeça.
Aproveitem as correntes de ar
para embalar o que pensam
e deixem depois o que pensarem
pendurado num galho, como se fosse fruta
porque há sempre quem venha mais atrás.
A ideia é essa ou outra que vos venha
e a regra é deixar, ao sair, a porta aberta.”

JCN

10 novembro 2008

A VIAGEM

Era grande a azáfama naquela casa. O pai ia partir e, como sempre em todas as viagens que fazia, os dias que precediam a partida eram agitados, com mil e uma coisas para tratar, contas a pagar, recomendações a dar, enfim, o habitual corrupio.
Desta vez, no entanto, a duração da jornada previa-se longa, tão longa que parentes e amigos tinham vindo para as despedidas e com a sua presença tinham feito alterar a constância das rotinas e provocado um significativo aumento dos níveis de ansiedade que surgem habitualmente em vésperas de uma viagem.
É justo referir que todos se dispuseram a ajudar. Tanto a mulher, como os três filhos adolescentes, desdobraram-se em disponibilidade. Corriam a executar tarefas de última hora, faziam sala com as visitas e conseguiam ainda dar umas escapadelazinhas para junto daquele que ia partir. Adiados tinham ficado os planos de fim-de-semana, as compras no “Continente”, as saídas com os amigos e os jogos de computador.
Sempre que viajava, o pai deixava sentimentos ambivalentes naqueles que ficavam. Era a mãe, que se sentia incompleta e desequilibrada com a ausência do homem com quem vinha partilhando quase tudo nos últimos 18 anos. Era o filho mais velho, cujo pragmatismo, por vezes um pouco incanitante, o impelia a considerar que “o que tem que ser, tem muita força” e a desvalorizar os sentimentos piegas que decorrem de uma separação. Era a filha do meio, que tinha saudades do pai ainda ele não tinha partido. Era, finalmente, o filho mais novo que conseguia resumir as viagens do pai a uma excelente oportunidade para receber presentes.
Esta viagem não era muito diferente das outras. Havia os que não queriam resolutamente que ele partisse e os que, conformados com a partida, apenas desejavam que a viagem lhe corresse o melhor possível.
A hora chegara. As visitas tinham regressado a suas casas no meio de desejos sentidos de felicidades e de angústias próprias da separação.
Junto daquele que partia tinham ficado apenas os mais próximos e um homem vestido de preto que se propunha fornecer-lhe as últimas tácticas para a viagem.
De entre beijos, abraços e mãos dadas, ouviu de todos o que sempre ouvira antes da partida: “Boa viagem meu querido”, “Boa viagem pai”. Fechou os olhos e foi-se.


J. Buggs

A maratona e o hectómetro

Carlos achava que a sua vida corria tão ao contrário que teria achado normal o registo à nascença como Solrac. Sempre achara estranhos alguns aspectos da sua deambulação pela Terra: características em novo que eram pertença de velhos, manias quase infantis quando já entrara no último terço estatístico da sua vida. Lembrava-se exactamente desta peculiaridade quando comentava a sua inscrição na colectividade do bairro, baptizada, numa década passada, com o nome ternurento de atletismo, meu amor. Entrara na flor desportiva da idade e dirigira-se ao balcão, onde o Zé Tó, de fato de treino reluzente de poliéster, suor e tenda de ciganos o recebera escorropichando uma bebida isotónica:
- Boa tarde, venho inscrever-me como maratonista.
- Companheiro atleta – deixa-me que te trate assim – esse não é o percurso dos grandes campeões. Pode começar-se pelo meio fundo e depois evoluir para a mãe de todas as corridas.
- Percebo, Zé Tó – deixa-me que te trate assim – mas eu sou um fundista, e correr menos de 42 km, mais metro menos metro, deixa-me agoniado, com tonturas várias e desorientações diversas. Todo eu estou preparado para ir ao fundo, passe a dualidade da frase.
Carlos envergararia a camisola do atletismo, meu amor conseguindo bons resultados perante o olhar perscrutante do Zé Tó, cujo fato de treino ganhava uma patine que amortecia uma luminosidade estranhamente própria. Depois, fruto de circunstância várias que não se compadecem com explicações científicas, começaria a sua caminhada no sentido inverso: corria cada vez menos tempo, não fruto da evolução do seu desempenho, mas consequência de distâncias menores. Quando deu por si, espantado e confuso, estavam a acenar-lhe – os companheiros e as suas entranhas - com a hipótese de especialização nos 100 metros.
- 100 metros, Zé Tó? Tanto treino, tanto exercício, tanta ciência, tanto sacrifício para terminar o gozo passados 10 segundos? Desculpa a repetição, mas eu estou preparado para ir ao fundo, não para conter a respiração. E como é que se corre, como se doseia o esforço, como se enrijece o músculo, como se prepara a mente, como se goza a vitória? Dez segundos?
- Companheiro atleta! Pois eu penso que haverá satisfação nesta vertente. Pois é mais rápida, pois é mais curta, pois exige um empenho diferente. Mas tem o seu gozo, tu verás. Experimenta. E lembras-te daquele anúncio que dizia para não negares à partida uma ciência que desconheces? Pois é isso…
Carlos sentou-se na bancada e viu os seus companheiros de colectividade a perfilarem-se no tartan para correrem um hectómetro. Fechou os olhos e deu por si concentrado na programação da corrida: o tempo aos 5.000 metros, o cansaço mental aos vinte quilómetros, a vontade de desistir passados dez e a energia recuperada para o momento de glória, porque chegar era já em si bastante. Quando abriu os olhos, tudo se tinha consumado na primeira eliminatória, abrindo espaço para uma segunda e para uma terceira, como se fosse uma nova corrida nova viagem da família que desafiava o destino no poço da morte. Dez segundos mais dez segundos mais dez segundos…
Agarrou numa camisola e escreveu Solrac. Levantou-se a contragosto, deu uma palmada amigável nas costas puídas e húmidas do Zé Tó e disse para consigo, abrindo um sorriso que não se percebia se era de tristeza, de ironia, de malícia ou conformação:
- Prepara, estar pronto, largar. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 10. Já está.

JB

09 novembro 2008

Um país de merda

O maluco deambulava pelas ruas a gritar: “Vivemos num país de merda!”

As pessoas passavam e sorriam. Quase todos se identificavam com aquele homem e em um ou outro momento das suas vidas tinham já tido vontade de gritar em plenos pulmões o mesmo que ele gritava.

Tropecei no pensamento. Será que em todos os países do mundo existe a mesma compreensão e simpatia por alguém que proclama a merdice do seu próprio país? A resposta é obviamente não. Em muitos países do mundo este homem seria olhado com desdém, com pena, eventualmente com caridade, mas nunca com simpatia e muito menos com compreensão.

O que faz então que um país seja ou não considerado um país de merda? Ocorreu-me uma definição: um país de merda é aquele país onde as pessoas não gostam, não querem, ou não podem viver. Uns gostam e querem, mas não podem. Outros podem, mas simplesmente não gostam, ou não querem.

Gostei do exercício e continuei. E quais serão os factores de aferição? Vieram-me vários à ideia: as condições económicas, a segurança, a liberdade, o clima. Porventura por esta ordem. Um país é tanto melhor quanto a sua população for próspera. Os países prósperos conseguem fixar as suas populações e atrair populações de outros países menos prósperos. Confere. Um país é tanto melhor quanto mais a sua população se sentir segura da criminalidade ou da guerra. As pessoas fogem de situações de conflito e são atraídas por países com baixos níveis de criminalidade. Confere. Um país é tanto melhor quanto melhores condições de liberdade der aos seus nacionais. A procura da liberdade é um instinto inato ao ser humano e um país que a ofereça torna-se uma Meca para os fugitivos das ditaduras. Confere. Um país é tanto melhor quanto melhores condições climatéricas tiver. Ninguém emigra voluntariamente para a Sibéria ou para o deserto do Sahara. Confere.

Contudo, pessoas existem que continuam a querer viver na Somália, país pobre, inseguro, com falta de liberdade e com um clima próprio para o cultivo de ananases. Pois é, a conclusão evidente é que há quem goste de viver em países de merda. A consciência objectiva de que um país não presta para nada não tira que com o mesmo não possam ser estabelecidas ligações afectivas, que levem inclusivamente alguns maduros a afirmar que não há sítio no mundo melhor do que a Somália.

Se calhar, o maluco que ouvi na rua estava só a fazer uma constatação, não um juízo de valor.


J. Buggs

08 novembro 2008

Maria gosta da pinga

Gosto das lojas do meu bairro porque lá se escarrapacha a minha cidade.
Gosto do Albino mulato que encontra a paz numa dúzia de minis e lembra a Angola-paraíso que deixou para trás. Pelo-me pela Cassilda voz de bagaço, que criou a neta, enterrou o filho drogado e assistiu às escaras do pai entrevado – tudo ao mesmo tempo. E pela menina Maria que nasceu onde mora em 1920, e vem comprar um rajá porque sente tonturas e precisa de açúcar. Joga-lhe o banco o merceeiro, manda-a serenar e encolhe os ombros, apontando à boca. A menina Maria de cara esvaiada, ignora a rodela que o gargalo pintou no beicinho encarquilhado. A menina Maria gosta da pinga, embirra com os euros, pergunta se “é fresco” e denuncia a caloteira que manda a filha, sabendo que à criança o Carlos jamais negaria a saca das carcaças que lhe hão-de matar o bicho.
No meu bairro ninguém fica só, porque há portas abertas e luzes acesas e bocas que falam. E a D. Maria Pia que Deus tem, pode vir à sua rua, mirar o Tejo, respirar Monsanto e ouvir a gente que por cá continua.

DaLheGas

07 novembro 2008

leitor amigo:


talvez seja desta neblina,

ou da falta de perspectiva,
ou dos meus olhos gastos,
ou dos dedos já trocados.

é qu'hoje preferia estar aí,

desse lado mais manso.
em vez desta fúria doce
(e quase sem descanso).

sei bem que me lês

por razões diletantes.
mas ambos sabemos
que me lês, também,
por outras razões mais:

umas.. bem urgentes,
outras.. bem importantes.

e outras tantas ainda..
das que (nos) doem demais.

--

a beleza é o ópio do esteta.
a escrita é um estetos(c)ópio.
comecemos, pois, amigo leitor.
bem-vindo.


(gi)

06 novembro 2008

Ontem foi feriado no Quénia


Confesso. Nunca gostei muito de blogs. Ou blogues. Provavelmente, porque não é fácil encontrar os mais interessantes. E passo a presunção, porque esta minha colaboração também não deverá cair no capítulo do interessante. Mas os blogs são isso mesmo, um sinal – se não mesmo a essência – destes tempos de democratização da informação e isso, só por si, já vale a pena. Quem quer bloga, quem não quer, fica como está.

Eu aqui estou, a convite do JB. Não me custou dizer que sim, embora um “não” me desse muito menos trabalho. É provável ­­– mais do que certo - que tenha sucumbido ao tema que deu o mote a este Adeus, Até ao Meu Regresso. Zimbabué. Só o eco das sílabas no céu-da-boca já me é irresistível. Atiram-me para esse grande continente de onde só nos chegam, na esmagadora maioria das vezes, as más notícias. Como disse um dia uma jornalista inglesa a propósito do Congo, de onde chegam, de novo, más notícias, o país “parece o céu” mas “vive-se no inferno”.

E contudo, África mantém-se um mistério. Regressa-se uma segunda vez, ou terceira, ou quarta e tudo mudou. Normalmente para pior. Poucas vezes para melhor. Na maioria das vezes, para uma outra versão de África que não é a que aparece nas televisões – um bom exemplo é o Zimbabué que JB foi descrevendo aqui ao longo de dois meses. Outro exemplo é a Viagem por África que Paul Theroux escreveu em 2002. Uma viagem do Cairo à Cidade do Cabo de comboio, canoa, alguns táxis, uma única ligação aérea, mas também de matatu (Quénia), chapa (Moçambique), candongueiro (Angola), kombi (Botswana), tanka tanka (Gâmbia), tro-tro (Gana), teksi (África do Sul), dala-dala (Tanzânia), ou tshova (Zimbabué), seja qual for a língua utilizada no continente para chamar aos táxis colectivos – sobrelotados, pouco seguros, perigosos mesmo, mas sempre viveiros de personagens, histórias de vida, de engenho e de sobrevivência.

Theroux regressa ao continente quatro décadas depois da primeira visita. Está lá tudo: amargura, desilusão, medo, raiva, surpresa. Mas está lá também essa imensa vastidão recheada de todas as possibilidades. Indomável. Alguém disse um dia a Alberto Moravia – que ele cita nas suas Promenades Africaines: “Se o avião cair, a floresta abrir-se-á para voltar a fechar-se. E é tudo.”

Tudo efémero. E tudo possível. “The world has changed”, dizia-me ontem um bom amigo às primeiras horas da madrugada. Obama é o próximo inquilino da Casa Branca. O Quénia declarou feriado nacional e anunciou dois dias de festa. África tem razões para continuar a sonhar com as boas notícias.

Para pensar
O site do autor de Viagem por África (Quetzal, 2002) – Dark Star Safari, no original. Onde apetece comprar livros de viagem ao quilo. Em http://www.paultheroux.com/

Para conhecer
O projecto de 30 milhões de euros da Fundação Greg Carr, filantropo norte-americano, para recuperar o brilho do Parque Nacional da Gorongosa. Onde apetece começar a fazer as malas. Em http://www.gorongosa.net/

Para sorrir
Dedicado ao engenho africano ou, citando o respectivo lema, Solving everyday problems with African ingenuity – esta semana, um abre-garrafas do Togo. Onde se parte à descoberta de coisas simples. Em http://www.afrigadget.com/

Para acompanhar todos os anteriores
A voz de Stella Mendonça, a soprano moçambicana que também canta no novo clip publicitário ao turismo em Moçambique (Mozambique – Land of Contrast), realizado no Parque Nacional do Limpopo, que vai estrear a 11 de Novembro no World Travel Market, em Londres. Onde Stella é acompanhada pela soprano Sonia Mocumbi, também moçambicana, e por 53 músicos da orquestra sinfónica francesa de Pontarlier. As fotografias da rodagem do filme podem ser vistas em http://www.stellamendonca.com/. Enquanto esperamos pelo vídeo.

Mónica Bello

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