Um casal de quem sou próximo há muitos anos enfrenta uma crise séria no seu casamento. À sua volta, e borboletando com a melhor das intenções, alguns amigos afadigam-se em conselhos sábios, frases reconfortantes, sugestões díspares. Este par tem, como todos, um histórico de felicidade e do seu inverso, de luta, de cumplicidade, de monólogos persistentes e fracturantes, de pequenos nadas, talvez, que engrossarão o caudal de desestabilização de que se reveste, por vezes, uma relação duradoira.
Alguém, a quem a vida mandou dar uma cambalhota brutal, queixa-se, no meio de um sem número de confortos, de maçadas, coisas irritantes e incómodas, necessidade de soluções para problemas para os quais não estava desperta, porque alguém, que Deus já lá tem, tomava conta dessas ocorrências. Há quem reaja mal a estes queixumes, achando, talvez, que quem tem vidas confortáveis tem menos direito ao lamento.
Outros, no anonimato das ruas e das casas, matam os sonhos que já não sabem se têm e embarcam em aventuras cujo combustível, que se mascara de felicidade aparente, é o medo de uma solidão aterradora. As vidas são indeterminadas, imprevistas, difíceis. O comando da nossa nau pertence-nos cada vez menos, e cada um de nós olha para si ou para os que estão próximos e vê o desemprego, o expediente, a reserva, o sufoco, a frustração, o desânimo. Em momentos de incerteza e insegurança há menos lugar para o devaneio, que é considerado um luxo impensável nos dias de hoje.
Outros, ainda, olham para a soma dos seus dias e vêem um desalinhamento permanente dos astros, um conluio cósmico, um azar persistente, uma injustiça gritante. Nenhum de nós merece, de facto, o que de mal lhe acontece, porque a vida se quer fagueira, confortável, com aquela adrenalina que é boa, como quem tem o colesterol dentro dos intervalos de segurança. O desemprego é injusto, a escassez imoral, as dificuldades esmagam, o futuro afigura-se sombrio. Mais do que para a frente olharmos para trás, mais do que crescimento dizemos crise.
Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou,
também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Reza assim o Evangelho de hoje, dia da Solenidade de Pentecostes. Ressaltam-me do texto ideias como a das portas da casa que estavam fechadas, o medo, talvez o anoitecer. Mas ressalta, também, o seu inverso: a noção de Jesus no meio dos discípulos, a saudação da paz, a identificação pelas mãos e pelos lados, sinal, não de dor e sofrimento, mas de entrega sem limites.
Viram então aparecer uma espécie de línguas de fogo,
que se iam dividindo,
e poisou uma sobre cada um deles.
Todos ficaram cheios do Espírito Santo
e começaram a falar outras línguas,
conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem.
Um jornalista leria este excerto da primeira leitura e reproduziria factualmente o que aconteceu: gente com dotes poliglóticos surpreendentes, manifestações sem explicação científica evidente. Felizmente não procuramos o facto, mas a metáfora. E é por isso que confiamos no Espírito Santo, que rezamos para sentir a língua de fogo que tudo renova, para sermos bafejados pelo discernimento que identifica o caminho certo e pela força de que necessitamos para o trilhar.
Olho para os quatro casos que referi no início (quatro casos reais, com pessoas igualmente reais) e que são, aparentemente, desligados uns dos outros. Em todos - nos protagonistas e em quem é parte envolvida - vejo portas fechadas, medos, dias que anoitecem. É então que me vem a certeza da necessidade de uma linguagem nova: a linguagem da tolerância e da compreensão, da fé e da esperança, do amor e do perdão.
Adeus, até ao meu regresso...
JdB