31 dezembro 2008

Largo da Boa-Hora

Trinta e um de Dezembro. Estou sentado no meu banco neste Largo feio, lúgubre e sem vivalma. Estou só, não vejo ninguém, está vento e frio.
Entranha-se-me a desolação que me rodeia, mas desato a rir numa gargalhada íntima que me percorre, não por contentamento mas sim por desafio, conquista, prazer, pela minha forma de sentir este frio, este vazio, esta desolação.
O que passo neste transe é o prémio de ser um optimista inveterado, um indomável alegre, um entusiasta militante de todas as causas, um arauto de boas novas e dos bons dias, mesmo sabendo do nefasto que por aí vai e dos dilúvios que se abatem.
Vivo a clamar a vitória do bem sobre o mal, do possível sobre o improvável, a certeza de tudo se compor, o ajuste do desajustado, o reencontro do desencontrado, o retorno do que partiu, a colagem do quebrado, o reerguer do caído.
Espalho, pois, à minha volta, esperanças que dou como certezas, garanto quimeras como factos já vistos, sou, permanentemente, o marinheiro que, na gávea da Nau Catrineta, é constante arauto da “terra à vista”.
Perante cada adversidade, imediata e automaticamente relativizo a sua importância no cômputo geral de toda a vida; no mesmo reflexo contabilizo os danos e prejuízos causados, concluindo não serem letais nem incomportáveis - o perdido é recuperável ou, se o não for, recordo que já houve um antes sem ele que lhe tira a preciosidade - e, por último, empenho-me exclusiva, prioritária e obcecadamente em encontrar a melhor solução, a alternativa, o que faça a vida andar, apesar de tudo.
A relativização dos factos negativos, o desprezo pelos danos aliado à urgência de reparação e prosseguimento, são as dominantes da minha atitude.
Subjacente está uma certeza que é meu guião: a vida, também por culpa própria, tem necessariamente momentos maus, episódios perversos, sofrimento, erros, infelicidades, azares, imbecilidades, imperfeições. Toda esta panóplia de tristeza, amargura, culpa e frustração é inevitável, mas temos de a suportar, enfrentar e resolver, como coisas naturais que são.
Sou como o marinheiro que sabe que a travessia atlântica vai ter borrasca, vaga grossa, alterosa, danosa. Quando a tormenta chegar - e chegará - há que firmar o leme, cerrar a vontade, aproar e passar a vaga, olhando sempre para o mar vindouro, e não gastando mais do que um ápice a concluir que o navio sofreu mas passou, meteu água e perdeu apresto e palamenta mas aguentou-se, adornou perigosamente mas endireitou-se e, portanto, segue a sua rota, na certeza de que haverá calmaria e bonança.
Na navegação que é a minha vida concentro-me no Farol que ilumina a rota que elegi, sigo na esteira da sua luz, o que nos separa é para ser vencido, com maior ou menor dificuldade, angústia, medo ou dor, o que importa é flutuar, navegar e alcançar a fonte dessa luz que marca o porto de abrigo onde ancoraremos em paz, sãos e salvos.
Que se dane o apresto e palamenta perdidos, a carga arrancada, as redes roubadas, o peixe varrido, o desmantelado e todo o mais fruto da fúria do mar. Chegaremos ao Porto de Abrigo.
Não existem naufrágios anunciados, não existem monstros marinhos que nos arrastem para as profundezas, não existem fins do mar que nos lancem em precipícios de trevas, não existem marinheiros marcados como tributo ao desafio de navegar.
Não, a tragédia consome aqueles que fundeiam na tormenta, julgando-se a salvo porque amarrados em inércia e desalento, ou os escondidos atrás de molhes imaginados pelo medo e auto-comiseração, bem como os que desistem de navegar e manobram em fuga dando o costado do navio ás vagas, e ainda os terrificados que abandonam o navio, tomando a balsa só para si e condenando a tripulação a afogamento certo, não esquecendo aqueles que soçobram porque se limitam a carpir e a pedir socorro.
São estes os que o mar reclama e cobra, não os que ousam navegar pela luz do Farol que firmaram.
Navegar é preciso.
Mas, como todo o homem de mar, tenho medo. Sei que há uma vaga que me pode afundar, afogar e perder o meu navio e tripulação.
Essa vaga existe e vagueia pelos oceanos. A minha esperança e fé é que a insuperável nunca se cruze com a minha proa.
É por isso que me rio e gargalho, neste banco e Largo. Desafio o frio, a solidão, a desolação, sei que amanhãs de Sol, companhia e alegria virão, hoje é só mais uma vaga, e esta, convenhamos, das pequenas.
Deste meu banco que é ponte do meu navio antevejo as navegações do ano novo que vai entrar. Tudo vai acontecer: dias de calmaria exasperante em que não andaremos, dias de brisa moderada que nos darão bom e tranquilo aviamento, e as inevitáveis borrascas e tormentas. Estas esperam-me, tanto como eu as espero.
Mas uma coisa é certa: vejo a luz do meu Farol, confio no meu navio, sou marinheiro, tenho a tripulação escolhida, pelo que, se não me cruzar com a intransponível, para o ano aqui estarei neste meu banco, ponte do meu navio, a recordar a travessia de 2009 e, mais uma vez, a rir-me do Adamastor e suas patifarias.
Companha, saudades, são horas de soltar amarras, vamos à faina, todos com coragem e confiança, cada qual com sua embarcação e tripulação, rumo ao Farol de cada um, cuja luz já se vê.

ATM

30 dezembro 2008

História de uma dedicatória

Dizia assim: “Para a Maria, que bem sabe o que significa este livro para nós dois, do António”

Esta outra história semi-contada na dedicatória sempre me pareceu ter mais intriga que o livro.

Cem anos passados, a tinta deixou no papel gasto o traço de uma relação que escondeu para si a trama toda, criando um segredo da forma mais tradicional: pondo-nos de fora.

Somos excluídos com pouca subtileza, abrindo o equívoco e deixando-nos a imaginar o que eles sabem e nós não. Trazendo até netos e bisnetos a centenária Maria a receber com cumplicidade o testemunho de um segredo a dois.

O que poderia ter significado este livro para ela?

Não o texto, que é uma novela banal, de fraco enredo e fim feliz.

Então o quê?

Que guardou então esta dedicatória até aos nossos dias?

O segredo, interrogo-o com prazer novo e idêntico mistério cada vez que abro o livro.

Os vinte anos vibrantes da Avó Maria, esses rejuvenescem por milagre quando, com ela, de cada uma dessas vezes, o abro.

JCN

29 dezembro 2008

Lanterna Vermelha


Diário de Amália, 28 de Dezembro

Começo amanhã o meu primeiro dia de trabalho no estabelecimento da Dra. Clara. Vou chamar-lhe Fábrica da Ilusão porque, no fundo, é disto que se trata - um estabelecimento fabril em laboração quase contínua onde se manufacturam delírios e enganos. É isto que os clientes procuram, como se em vez de quadros ou fotografias nas paredes se pretendesse um forro a espelhos enganadores que reflectissem algo diferente da figura que se põe em frente. A ilusão da aventura, do não compromisso, do amanhã que não existe, do anonimato, da transgressão, da pergunta que não sai.

Despedi-me da empresa de representações onde fui chefe de departamento nos últimos 10 anos e, confesso, tive vergonha e preguiça de revelar a nova actividade, porque há explicações que abrem fossos entre os elementos de uma comunicação. O único que sabe é o Fábio, com quem passei estes últimos dias. Contei-lhe tudo numa manhã limpa e clara, o que me pareceu ser um bom indício para a minha própria necessidade de transparência. Senti que ele, com a sua generosidade de carácter, seria o único com quem poderia partilhar este manto pesado que uso voluntariamente.

Estávamos os dois deitados, e o sol entrava devagarinho pela abertura estreita dos cortinados, incidindo na cabeceira da cama através de um fio de luz revelador de uma finíssima poeira em suspensão. O Fábio enrolava-me uma madeixa de cabelo enquanto fumava um cigarro matinal, impregnando o quarto com um cheiro forte. Quando lhe disse do meu propósito, seguindo com os olhos uma pluma elegante de fumo, senti uma ligeiríssima paragem naquele momento de ternura, uma fracção de hesitação, como se a terra tivesse cessado momentaneamente os seus movimentos habituais.

- Porque vais?

- Porque quero mais. Ou se calhar quero diferente. Ou talvez queira apenas o choque da contradição, a brusquidão do contraste, o fascínio dos opostos. A minha cicatriz contra uns olhos verdes rasgados e lindos que hipnotizam um cliente, a minha perna defeituosa ao lado de uma figura esbelta e tentadora que entontece de entusiasmo. Realidade versus ilusão, porque foi esse o meu argumento para ser admitida. Foi esse o meu trunfo, a carta que atirei para a mesa qual jogador que está disposto a tudo – a ganhar ou a morrer, porque o empate é coisa vã, inútil, fraca e desnecessária. O empate, neste tipo de jogos, é a ignorância da História.

Nestes últimos dias circulei um pouco a pé pelas redondezas de minha casa, preparando-me mentalmente para este novo trabalho que inicia uma mudança radical na minha vida. Ainda há restos de Natal nos caixotes de lixo, nas montras, nos passeios, nos rostos das pessoas, no sorriso das crianças que agarram um jogo novo, na provocação dos adolescentes que usam uma roupa moderna com uma juventude insultuosa.

Virei ligeiramente a cara ao vento e senti que a cidade ainda cheirava a fantasia, a alegria, a generosidade, a redenção. Rodei ao de leve para o sentido oposto e o odor que me atingiu era o da miséria, da tristeza, da mágoa, da solidão. Repeti o exercício e, de todas as vezes, tive a mesma sensação: dois aromas diferentes e antagónicos, como se a minha face fosse o lugar geométrico do encontro e da mudança, o espaço onde realidade e ilusão se juntam, se confrontam, se digladiam, reconhecendo existências mútuas.

Amanhã receberei o primeiro cliente, e talvez seja um funcionário apagado de uma qualquer repartição periférica, protagonista triste de uma vida baça e mortiça. Encaminhá-lo-ei para os braços de uma mulher fogosa, entusiasmada, pronta a levá-lo ao céu da sua criatividade. A sensação que referi acima irá repetir-se seguramente: brisas de fantasia e certeza que me tocarão no rosto numa comunhão porventura impossível. Ao dizer:

- Boa noite, Sr. Ferreira, a Natália está à sua espera.

ou

- Até para a semana, Sr. Ferreira, prazer em vê-lo.

serei o porteiro que manipula o acesso ao devaneio ou ao verdadeiro. A mão do amanuense que me cumprimenta à chegada é a mesma com que me acenará à saída; é aquela mão que carimbará as certidões na penumbra de uma secção poeirenta e afagará um corpo que sorri para ele num deslumbre de volúpia. Mas o Sr. Ferreira irá reparar em mim - uma coxa portadora de uma cicatriz que lhe desfeia um olhar - e saberá que é aqui que tudo se joga: a fuga da realidade e o regresso a ela própria.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

28 dezembro 2008

A Festa da Sagrada Família

A Sagrada Família (Pompeo Batoni 1708 - 1787)


Família. Do latim família, «o conjunto dos escravos da casa, os escravos; a casa, todas as pessoas ligadas a qualquer grande personalidade; casa de família».

A Igreja celebra hoje a festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José e eu não esqueço a minha condição de Católico.
Fosse por preguiça, falta de criatividade, dificuldade do tema ou indecisão sobre a melhor aproximação ao assunto, o facto é que andei engasgado com os dedos pairando sobre um teclado desinspirador, nesta ingenuidade de quem acredita que o tempo de espera resolverá o drama da folha em branco.
Oscar Wilde afirmava-se de gostos simples, satisfazendo-se com o melhor. À nossa maneira – dos cristãos, digo – poderíamos dizer frase semelhante, aplicando o raciocínio à Sagrada Família.
Não tenho competência para falar da família de hoje em dia, naquilo em que se tornou, na mudança de paradigma, nas vantagens e desvantagens de novas formas. Sei que a vida mudou, as separações e os divórcios deixaram de ser um estigma que doía e envergonhava, e que as famílias reconstruídas estão longe de ser menos boas do que as originais, tantas e tantas vezes disfuncionais e coladas com o cuspo de dependências várias.
Não obstante todas as tendências, costumes, estudos, evidências, continuo a acreditar firmemente na família tradicional como espaço de partilha, de memória, de estabilidade, de troca de experiências, de transmissão de valores e de princípios. Mais ainda, acredito no valor e na importância da igreja doméstica, consubstanciada numa família que se revê no ideal cristão, que encontra na mensagem de Cristo um guia seguro para o caminho que deve seguir, e que constrói a sua casa sobre a rocha firme de valores que não se compadecem com modas.
O post de hoje é dedicado à minha família, em particular aos meus três filhos e a quem me ajudou na tarefa de os educar, transmitindo-lhes valores seguros de solidariedade, atenção ao próximo, respeito, honestidade, altruísmo, generosidade. Estou certo de que aquilo que são, o que me ensinam e o que passarão aos que vierem a seguir a eles foi possível pelo ambiente familiar em que cresceram. Não um ambiente de perfeição, mas de procura daquilo que é justo e recto. Nem sempre uma casa, mas sempre um espaço.
A Igreja celebra hoje a festa da Sagrada Família. Não nos podemos queixar de não ter um modelo.

JdB


27 dezembro 2008

meu amor vou-te deixar

Tão convincente és no abandono e nunca cumpres. Acabas sempre aqui. Sufocado de saudades, a roer ciúmes, atraiçoado pela voz maldita que reivindica o que é teu. Só teu. A posse é a conquista deste vai e vem.

Tão convincente eu no teu abandono que me vence. Na aceitação com que remato o desespero, na persistência que imprimo à esperança, na culpa sacudida docemente dos teus ombros, dos meus. Voamos outra vez.

Tão convincentes somos neste embalo que a nenhum ocorreu ainda – meu amor, para a alma, cada abandono é sem sentido e o nosso voo perde altura.


DaLheGas

26 dezembro 2008

naqueles tempos, em que os anos oitenta faziam já a curva que antecede a recta onde se anunciavam os anos noventa, andava a pensar, como sempre andava, nos inúmeros afazeres a que a sua intensa vida profissional o obrigava. não era, como na série, um 'veterinário de província', mas andava lá perto. dava assistência técnica, espécie de consultoria profissional, a dezenas e dezenas de pequenas explorações agropecuárias, um pouco por toda a zona centro do país.
a azáfama pré-natalícia ainda não era bem aquilo que é hoje, mas o facto de normalmente o natal o obrigar a deslocações familiares, tornava aqueles dias particularmente ocupados. mil e uma coisas para fazer, pé-na-tábua, trilhando as estradas nacionais, concelhias, locais, da região, metendo por atalhos pouco conhecidos, enfim tentando esticar o tempo, naquele jeito bem português de equilibrar o impossível.. e conseguir.
era já noite, como é próprio dos fins-de-dia de dezembro, na beira alta. ainda há pouco o sol brilhava e já havia caído uma muralha negra sobre as serras, as casas, as estradas, as gentes. ele gostava. sempre gostou do que é próprio. seja lá o que isso for sobre o que for. à antiga, de certa maneira.
era já noite, dizíamos, quando avistou os dois vultos na beira da estrada. ao passar por eles, olhou para o retrovisor e, enquanto o carro se afastava, fixou o olhar naqueles dois corpos, envoltos em capuchas, combatendo o frio e o escuro da noite como podiam. desapareceram, ao fim de uns segundos, como sempre desaparecem os estranhos que olhamos, nas estradas da vida. seguiu viagem, que era tarde.
uns minutos depois, lembrou-se de qualquer coisa. ou melhor, o seu cérebro parecia ter acordado, de uma forma estranha. enquanto conduzia, era como se aqueles dois vultos lá de trás se projectassem agora à sua frente - coisa estranha. reparou então que um era claramente de um adulto, mas que o outro era de uma pequena criança - como fora possível ter-lhe escapado? lá fora, as serras estavam cada vez mais pintadas de negro e o vento assobiava, como só nas serras sabe assobiar, tornando-se vivo.
parou o carro na berma da estrada. olhou para um lado e para outro. fez inversão de marcha.
poucos minutos depois, avistou, em sentido contrário, os dois vultos que continuavam a sua jornada, como podiam. devagar, o vulto adulto protegendo o vulto mais pequenino. jurava que era assim que os seus olhos viam.
abrandou, ao lado dos caminhantes. abriu a janela do lado oposto ao seu e disse:
- boa noite. a senhora quer que a leve a algum lado?
a senhora, uma mulher via agora claramente, abeirou-se do carro e respondeu, com o olhar titubeante que os humildes muitas vezes têm, estranha declinação da palavra respeito:
- boa noite, meu senhor. vamos lá para a frente, para a aldeia. se o senhor assim puder..
- sim, entrem, por favor.
descortinou os olhos de um pequenito, transido de frio e de medo. ficou triste, por um segundo, como poderia ele inspirar medo.. mas logo ali perguntou:
- na estrada, com este frio? e está tão escuro.
- tem que ser, meu senhor. muito obrigada. sabe, enquanto caminhávamos, o meu filho dizia qualquer coisa. quando me acerquei dele, o pobrezinho dizia: 'oh, meu Jesus, manda-nos um carro; oh, meu Jesus, mando-nos um carro'.. e Jesus mandou, meu senhor.
engoliu em seco. e, em silêncio, num silêncio brilhante, conduziu-os a uma aldeia próxima.
dias depois, contou esta história aos seus filhos e sobrinhos. ele que nem era propriamente uma pessoa religiosa, resolveu contar essa história. houve, desde esse dia, pelo menos duas pessoas que nunca esquecerem esse Natal. ou quatro, contando com um vulto adulto e outro mais pequenito. ou Cinco.
'o que fizeres ao mais pequenino dos teus irmãos, é a Mim que o farás.'
(dedicado a meu pai, que me contou, bem como às minhas irmãs e primos, esta história, numa véspera de Natal.)

gi

Quadros dos dias que correm

A persistência da memória (Salvador Dali, 1931)

Textos dos dias que correm

Dá Tempo à Tua Vocação

Nunca dês ouvidos àqueles que, no desejo de te servir, te aconselham a renunciar a uma das tuas aspirações. Tu bem sabes qual é a tua vocação, pois a sentes exercer pressão sobre ti. E, se a atraiçoas, é a ti que desfiguras. Mas fica sabendo que a tua verdade se fará lentamente, pois ela é nascimento de árvore e não descoberta de uma fórmula. O tempo é que desempenha o papel mais importante, porque se trata de te tornares outro e de subires uma montanha difícil. Porque o ser novo, que é unidade libertada no meio da confusão das coisas, não se te impõe como a solução de um enigma, mas como um apaziguamento dos litígios e uma cura dos ferimentos. E só virás a conhecer o seu poder, uma vez que ele se tiver realizado. Nada me pareceu tão útil ao homem como o silêncio e a lentidão. Por isso os tenho honrado sempre como deuses por demais esquecidos.

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"

25 dezembro 2008

Textos dos dias que correm...

(...)

Mas, naquele esforço supremo toda sua vida se fora. Não podia mais. E já se sentava, exausto, numa rocha, quando o menino lhe murmurou que não parasse, que marchasse ainda, o conduzisse à casa de seu pai. E Cristóvão, arquejando, começou a trepar o íngreme caminho da serra. Uma vaga claridade errava nos altos. E as rochas, os abetos, emergiam da treva densa, que os afogara. Uma frialdade trespassava o ar — e Cristóvão tiritava, com o seu pobre saião de estamenha encharcado, que ia pingando na terra mole. E mais baixo murmurava: «Ah! meu menino! meu menino!...»

Cada vez mais escarpado, entre rochas, se empinava o caminho da serra. E Cristóvão todo curvado, com os seus cabelos caídos sobe a face e pingando, arquejava a cada passo. Subiria ele jamais até a morada do menino? E uma grande dor batia-lhe o coração, no terror de cair sem força, e a criancinha ficar ali, naquele ermo rude, entre as feras, sob a tormenta. A cada instante tinha de arrimar a mão a uma rocha, desfalecido, de se pender à ramagem de um abeto. E a claridade crescia; já, no alto dos montes, ele via palidamente alvejar a neve.

— Oh meu menino, onde é a casa de teu pai?

— Mais longe, Cristóvão, mais longe...

E aquele bom gigante, agasalhando os pés do menino na dobra da pele de cabra, que o vento desmanchava, seguia com longos gemidos no caminho infindável, que mais apertava entre rochas, eriçadas de silvas enormes. Por fim, mal podia passar: as pontas das rochas rasgavam-lhe os braços, os longos espinhos atravessados, levavam-lhe a pele rude da face. E seguia! Já das feridas lhe pingava o sangue, e os olhos embaciados mal distinguiam o caminho, que parecia oscilar todo como abalado num tremor de terra. Uma luz, no entanto, mais viva, cor-de-rosa, já subia por trás das linhas dos cerros.

Mas Cristóvão parou, sem poder mais. Com o menino agarrado nos braços, ficou encostado a uma pedra, arquejando.

— Onde é a casa de teu pai?

— Muito longe, Cristóvão, mais longe...

Então o bom gigante fez um prodigiosos esforço, e a cada passo, meio desfalecido, os olhos turvos, a cada instante lançando a mão para se arrimar, tropeçando, com grossas gotas de suor que se misturavam a grossa gotas de sangue, rompeu a caminhar, sempre para cima, sempre para cima. Os seus pés iam ao acaso, no desfalecimento que o tomava. Uma grande frialdade invadia todos os seus membros. Já se sentia tão fraco como a criança que levava aos ombros. E parou, sem poder, no topo do monte. Era o fim: um grande Sol nascia, banhava toda a Terra em luz. Cristóvão pousou o menino no chão, e caiu ao lado, estendendo as mãos. Ia morrer. Mas sentiu as suas grossas mãos presas nas do menino — e a terra faltou-lhe debaixo dos pés. Então entreabriu os olhos, e no esplendor incomparável reconheceu Jesus, Nosso Senhor, pequenino, como quando nasceu no curral, que docemente, através da manhã clara, o ia levando para o Céu.

(S. Cristovão, Eça de Queiroz, Últimas Páginas)

Christmas play



Vou passar devagarinho à sala do lado, fechar a porta e os olhos e deixar correr estes pouco mais de sete minutos do Concerto de Natal de Corelli - dirigido e interpretado por Roy Goodman e o Brandenburg Consort. Replaying.

Mónica Bello

24 dezembro 2008

Largo da Boa-Hora

Este banco é coisa pública. Pelo que já vos descrevi, ele é pouco frequentado e hoje, dia 24 de Dezembro, ainda menos o será. Penso nos poucos que ficarão em breves momentos de contemplação e naqueles que aí se refugiarão, talvez por muitas horas desta tão longa noite.
Os primeiros serão aqueles que chegarão pelo meio, final da tarde e, desolados como este Largo, contemplarão as suas vidas, em apeadeiro na linha que irão percorrer até à estação de destino à qual não querem chegar. Sabem, todavia, que têm de ir, que terão de estar presentes numa morada que não é lar, numa relação que não é amor, numa convivência que não é afecto, numa presença que não é companhia, numa festa que não é alegria, numa celebração que sentem culto de coisa alguma.
Sentados, anteciparão a mentira e a farsa que irão representar. Antevêem os rituais, as palavras, as expressões, os votos, os gestos, os actos que, conforme o guião, irão cumprir e consumar, na esperança e ânsia de que finalmente caia o pano de cena e a noite chegue ao fim com o recolher ao leito onde, no isolamento e silêncio, ressurgirá a verdade da ruptura, do afastamento, da exclusão, devolvendo-lhes a dignidade da autenticidade.
Para esses o meu banco hoje é camarim, onde, amarga e envergonhadamente, se caracterizarão, se travestirão, de amantes, pais, filhos, tios, amigos, vizinhos, felizes a viverem o Natal, num espectáculo que se não for arruinado por uma pateada que surja por um erro de casting de algum dos actores, pode até terminar num aplauso comedido de agrado.
Sentam-se, pois, pessoas, e levantam-se actores de comédias trágicas a caminho do palco, e assim partem, deixando o camarim vago para quem dele precisar.
Quando vejo cada um deles partir em passo resoluto, e determinados a cumprir, aplaudo-os e acarinho-os, porque são actores, não são hipócritas, falsos ou fingidores, não são malévolos.
São pessoas cujas encruzilhadas da vida, os encontros e desencontros, os amores e desamores, as esperanças e realidades, os sonhos e os acontecidos, as fantasias e os factos, as tornaram desenraizadas, deslocalizadas, desfocadas, destacadas das vidas que construíram e das pessoas com quem as construíram, estando agora num limbo, num território de ninguém, sem pátria, Não pertencem a lugar algum ou a pessoa que seja. São marinheiros sem navio, navio sem porto.
Não têm maldade, o que não conseguem é ser lúcidos, compreenderem-se, esclarecerem-se, iluminarem-se e, consequentemente, reunir a coragem, determinação e tenacidade para quebrarem as amarras e embarcarem numa nova vida, que seja ela qual for, custe o que custar e doa a quem doer, lhes devolva a identidade da existência, a conformidade entre o ser e o parecer, a verdade, a genuinidade; em suma, a paz e o bem.
Essa nova vida para uns será uma vida alternativa, diversa, oposta, discrepante da vida velha que os consumiu, mas para outros será um regresso à vida original que foi estilhaçada, será o refundar dessa vida, firmando os alicerces e reconstruindo o que possa ter desabado, expurgando tudo e todos os que minem esse edifício.
Qualquer dos caminhos para essa nova vida exige muito, em especial descoberta, verdade, esperança, acção, coragem e renúncia.
São estes dons, virtudes, graças, que eu peço para todos os que usam o meu banco como camarim.
Este Natal será Feliz para os meus actores se, por ventura e inspiração, eles, neste que agora passa, se comprometerem a que no próximo Natal seguirão directos, sem precisar de parar em apeadeiros de refúgio e de adiamento, para os destinos que finalmente escolheram ou finalmente aceitaram, como vidas novas.
Acreditem: essa firme decisão será suficiente para um ânimo e vivência desta noite totalmente diferente da esperada, seja ela um nostálgico e carinhoso adeus ao que se vai deixar, seja ela uma esperançosa saudação de aurora ao que se vai reencontrar.
Saudados os meus actores, detenho agora os meus sentimentos naqueles que, como disse no início, antevejo que passarão pesadas horas no meu banco, nesta noite longa do dia 24 de Dezembro.
Esses chegarão pelo princípio da noite e ficarão por tempo indefinido, como indefinidas são as suas vidas.
Eles são os abandonados ou os que se abandonaram. Eles são os que não resistiram, os vencidos, inclusive por si próprios.
São espectros, são sombras de seres humanos que pairam em memórias, são imagens porque a vida se lhes esvai.
São mendigos, drogados, alcoólicos, desesperados, pobres.
São os destruídos, os destroçados.
Escolhem o meu banco pela mesma razão que escolhem qualquer coisa ou lugar, ou seja por razão nenhuma, já que não há mais razão na sua razão.
Não esperam nada, porque para eles o tempo acabou, o que resta é ir restando, ir cabendo em cada dia que vai passando, e ao qual dão tanto desprezo como dele sempre recebem.
Para eles não há Natal, mas, quando deitados no meu banco, embrulhados nos seus cartões, frios, sujos, com fome, repelentes, eles são o Natal, e o meu banco um altar em que repousam.
Eles são uma anunciação, viva, real, presente, que actualiza e contemporiza o nascimento do Menino Jesus, desafiando cada um de nós a confrontar-se com a evidência que foi isto que nós fizemos da criança que nasceu há 2000 anos.
Eles são o isto em que esse Jesus, menino adorado, se converteu pela desumanidade da humanidade.
O meu banco tem sobre si a realidade do que fizemos àquele menino que nasceu em Belém há 2000 anos.
Tenhamos a coragem de olhar e ver. Tenhamos a hombridade de reconhecer que não é possível que o presépio se tenha convertido nisto.
Como é que, colectiva e individualmente, contribuímos, ou pelo menos não conseguimos evitar, o isto.
O que se terá passado, para sermos agora confrontados com esta realidade, que é a do meu Largo da Boa-Hora, mas podia falar de África, da fome generalizada, das guerras, das injustiças, do desemprego, da constante dor humana infligida por (des)humanos que grassa em malfadada e eterna barbárie que perpetuamos.
Voltarei a escrever sobre este assunto, mas a primeira explicação para o presépio deste Natal, ser o mendigo acoitado no meu banco, é a que colectivamente não cumprimos o mandamento novo de Jesus: “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”.
Se o critério primeiro da obra do Homem fosse o Amor ao próximo, não tínhamos sistemas políticos, económicos e sociais que consentissem, em parte alguma, sequer no mais pequeno foco, as marginalização, pobreza, degradação, exclusão... bestialização de irmãos.
Individualmente falhamos nas virtudes da fraternidade, igualdade e caridade (é por demais óbvio).
Mas igualmente caímos todos na soberba de pensar que o percurso que conduz a ser um desterrado da vida humana só acontece aos outros, porque cada um de nós jamais admite que nos pode suceder exactamente o mesmo, seja por desgraças da vida, seja por sermos igualmente vencidos por nós próprios, quando trilhamos caminhos de perigo.
Que os meus espectros sirvam como permanente consciencialização do desamor da nossa sociedade e da soberba de cada um de nós.
Descansem pois no meu banco, que no presépio que faz o Natal ninguém ousa mexer.

ATM

23 dezembro 2008

Como um anjo...



Encontrei-te.
No frio que senti ao sair de casa
No vento agreste que me fazia chorar
Nas nuvens altas e negras que escondiam o Céu
No sol que teimava em rasgar de laranja a noite escura
Nas gaivotas que planavam em silêncio indiferente
Nos barcos que oscilavam ao ritmo das marés
No horizonte entrecortado de mastros
Na cara dos desconhecidos cuja história só imagino
No sorriso dos que conheço e a quem devolvo um aceno
Na solidão de um caminho feito de sonhos
Na lágrima dos dias que passaram e já não voltam
Na esperança dos dias que virão alegres
Na saudade, na sempre saudade
Na certeza de que me vês
Na confiança do teu sopro
Encontrei-te.
Como um anjo que passa e que permanece.

[I close my eyes
And my twilight images go by
All too soon
Like an angel passing through my room]

História de Natal II

A terra não pedia muito.
Leve e escura, dava em muitos dobros
o que se lhe espetava
e bastavam-lhe
dois dedos de falatório ao fim da tarde
para se ver paga.
Pelas sete horas, Inverno ou Verão,
descia a caminheira das pereiras
e ia junto à chã do poço
contar à horta as coisas do dia e da vida.

«- Logo temos consoada... Mais uma.
Fez-se depressa o ano.»

A chuva caía miúda e a noite vinha aí.

«- Fez-se depressa o ano ...»

O bom ouvidor faz a conversa corrida
e iam por aí fora
sobre coisas de muito e de pouco,
sem pesar nem medir,
que é aí que está o gosto.
De quando em vez paravam de remar
e seguiam o embalo, fazendo caminho.
O vento cheirava a preparos de ceia.
Sentado no muro de pedra solta,
aconchegou a samarra e cuspiu longe.
Para a horta a conversa era um regalo
e a ele, no fim de contas, não lhe custava nada.

«- Parece que foi ontem.»

Que sim, que parecia.

«- Santas noites, até amanhã.»
«- Adeus, saudades ao Deus Menino.»
«- Serão presentes.»

Ele a virar a curva da eira e o Menino a chegar.

«- O João ?»
«- Ainda agora abalou. Mandou saudades.»
«- É sempre assim ...»

JCN

22 dezembro 2008

Zimbabué


Ao longo destas últimas quatro semanas tenho escrito quase sempre sobre o Natal – o Natal dos que sofrem, dos doentes, dos que sentem as ausências, dos que são privados de sacramentos que os confortariam, mas, também, do Natal dos alegres, dos felizes e despreocupados, dos que circulam na sunny side of the street.
Hoje, de uma forma mais prosaica, dirigi-me aos meus companheiros de blogue e aos que nos lêem, assim como à Parede 7 (quem sabe do que estou a falar sabe do que estou a falar – passe a frase fortemente la paliciana), de quem guardo saudades e o apoio fundamental numa altura difícil da minha vida.
Para acabar esta onda de Boas Festas, queria lembrar-me do Zimbabué e dos amigos portugueses que lá deixei. Lembro-os a todos com a nostalgia de quem chegou há quase quatro meses e não se importava de voltar para a semana para cumprir um calendário forte de contratos com casas de karaoke.
Quem acompanha este blogue sabe da generosidade com que todos me receberam em suas casas ou nas suas vidas, a simpatia com que me integraram e resolveram problemas logísticos, técnicos, informáticos, negociais, turísticos.
Fica, pois, um abraço especial ao JdC, à Manuela, à Teresa e à Nichola, à Bela, à Cristina e ao Sérgio, à Ana e ao Alberto, à Sílvia e ao Toni.
Um Santo Natal para todos e um Bom Ano de 2009.

Adeus, até ao meu regresso...

Parede 7

Madonna del Magnificat - ( Sandro Botticelli 1480-1481)

A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na humildade da sua serva. De hoje em diante, me chamarão bem-aventurada todas as gerações. O Todo-poderoso fez em mim maravilhas. Santo é o seu nome. A sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem. Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias. Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua descendência, para sempre.

[do Evangelho de hoje]

Para os meus queridos Amigos da Parede 7, com quem partilhei tantas e tantas vezes este Magnificat, aqui ficam os votos de um Santo Natal e de um Bom Ano de 2009. Que as crises que atacam alguns elementos sejam factor de crescimento e de confiança nas capacidades de cada um.

JdB

Mensagem do editor aos quase sete mil e quinhentos visitantes

The Madonna of the Cherubim (Andrea Mantegna 1485)

Confesso a minha vaidade infantil, como já tive oportunidade de referir. Olho para este blogue, que nasceu em Julho, e gosto do que vejo. Diverti-me a fazê-lo enquanto estava no Zimbabué e divirto-me a lê-lo, no remanso da minha vida em Portugal. O que ele é hoje resulta da vontade dos bloguistas que o fazem andar para a frente.

Fruto da sorte ou da sensibilidade de cada um, o facto é que ninguém escreve sobre actualidades: o desaire do governo, a crise no CDS, a pobreza da liderança no PSD, o drama dos escândalos financeiros. Escrevem, parece-me, sobre coisas que lhes vão na alma. Afigura-se-me bem mais interessante, mas quem sou eu...

Aos meus colegas bloguistas desejo um Santo Natal e um Ano de 2009 cheio de inspiração e realizações. Obrigado por terem aceite o meu desafio / convite e perfumarem este espaço com a qualidade da sua escrita.

Desejo o mesmo aos que nos lêem diariamente ou com irregularidade, que deixam um comentário crítico ou simpático ou nos fazem chegar uma palavra de ânimo e de agrado.

Boas Festas para todos!

JdB

21 dezembro 2008

Pensamentos dos dias que correm

Prendas ou presentes de Natal. Na caixa do correio estão dois envelopes. Um dizia: “você acabou de receber um automóvel, venha buscar”. O outro dizia: “você acaba de receber a missão de estar atento às pessoas que sofrem em sua casa e de ir ver quem tem necessidades no seu trabalho”. Verdadeiramente, só o segundo envelope traz um presente de Natal! O primeiro cartão acrescentava: “sinta-se orgulhoso”. O segundo dizia: “não tenha medo, a força está dentro de si”.

Vasco P. Magalhães, sj

(Nota: pensamento roubado hoje aqui)

O 4º Domingo do Advento e a pergunta

Henry Ossawa Tanner. The Annunciation, 1898.


Maria disse então:
«Eis a escrava do Senhor;
faça-se em mim segundo a tua palavra».

[do Evangelho de hoje]


Hoje celebra-se o 4º Domingo do Advento, e eu não esqueço a minha condição de Católico.
Grande parte dos natais da minha vida – diria mesmo a esmagadora maioria – foi celebrada em ambiente de festa e tranquilidade. Era a inocência da juventude, a boa vida da adolescência, os princípios da paternidade, a festa alargada às famílias que se ganhavam por via do casamento. Mesmo que o despesismo fosse contido devido a limitações financeiras, não havia dramas a ensombrar a quadra. Havia sorrisos, alegria, boa disposição, generosidade com todos aqueles que estavam mais próximos de nós.
Talvez os meus pensamentos, nesse tempo de simplicidade, fossem muito marcados e dirigidos para o mundo chegado e familiar, o que não deixa de ser correcto. Digamos que a amplitude do meu olhar se esgotava, de alguma forma, naqueles que faziam parte do meu círculo mais próximo.
O post de hoje é dedicado a todos os que percorrem este mês de Dezembro (como eu percorri tantos) sem que a nuvem do desgosto, da angústia, da perda e do sofrimento ensombrem os seus caminhos. Gente a quem a vida (fruto da sabedoria, da sorte e das circunstâncias) sorriu sempre, calcetando uma estrada fagueira - ainda que esforçada -, sem obstáculos, sem tropeções. Mas gente, também, que pautou a sua vida pela correcção dos processos, pela honestidade, pela dignidade, pelo respeito.
A minha própria história e o homem em que me tornei, com todas as virtudes e defeitos, fazem olhar-me para trás e imaginar a frase que devia ter dito e que agora lanço àqueles a quem dedico este texto:
- O que faço com tanta felicidade?


JdB

20 dezembro 2008

Palheta na calçada


Lisboa, dia de semana e quem sabe é Primavera.
Um rancho de homens remodelou o pavimento.
Podia ser hoje. A calçada portuguesa veio para ficar.

Chega pra lá.
Dá o mascoto e acerta a linha.
Traz das pretas. Põe o molde.
Ando quilhado cu'a patroa.
Atão?
É sempre gente lá em casa.
Hoje não tá a render. Ontem foi à'viar.
Tás com a cabeça noutro lado...
Mas qual gente?
É vizinhas, é a cachopa da padeira, é o velho coxo da guerra, é um sai e entra.
Deixá lá, num quer tar só. Dá lumes. Bota areia.
A minha, é gatos e canzoada. Tudo pra casa. Diz que tem peninha. É cada chuto no gato.
Anda Pacheco!
É meia. Vamos ó tacho?
Sempre co'a pressa. De comer e de receber.
Atão. Melhor, só se for beber e aquilo qu'a gente sabe...
Atenção às beiras, bem calcadas. Dá c'u maço. Vais dando e vais varrendo, p'adiantar.
Inda vais ter saudades minhas.
A flausina?
Não me dá troco. Deve estar servida. Fica tão linda a vender bilhetes. Ficava mais linda comigo ao pé.
Isto tá bera. O calor.
Tá lindo o barquinho.
Barquinho?! É o reclame da cidade, rapaz. Aprende. A Caravela.
Iiiisso, veio a escorregar na tábua lá da província. Qué q'há-de saber?
Inté se borra no carro eléctrico.
Tira a estaca, estica a linha. Traz três brancas, só três.
Acabando, vamos à ginja.
Pro causa da ginja dormi na Estação.
Gastaste-o? É bem feita. Bebesses auga.
"É mais fácil c'uma mão dez estrelas agarrar, fazer o sol esfriar, reduzir o mundo a grude, mas ginja com tal virtude é difícil de encontrar."
Ora viste? Lá goela tens tu. Passa à ponta, troca c'u Quim e ele que venha alinhar o mastro.
Deslarga. Tá na hora.

DaLheGas

19 dezembro 2008

o estranho caso do 'senhor joão' (ou um Natal Português)

era uma vez um cineasta português, verdadeiramente excêntrico, veramente iconoclasta, corajosamente fiel à sua muito particular paleta de remédios para a alma (a dele e a dos outros).

ao longo da segunda metade da sua vida cinematográfica, quando o humilde reconhecimento que esta terrinha possibilita começou enfim a aparecer (ainda que a partir das margens; em sentido contrário, o frenesim proto-censório ia-se fazendo notar..), emergiu dos confins da cultura clássica, espécie de quintessência das artes antigas após processamento pelos mecanismos da modernidade, a figura do grande demiurgo dos pobrezinhos, impotente e inoperante - esse joão de deus que joão césar monteiro tornou, mais do que seu alter-ego, representação no arame de uma certa portugalidade 'feia, pobre e nem sequer má'. bebendo no anátema lançado sobre a pátria por escritores novencentistas e depois confirmado por alguns ditos modernistas, estranhamente (ou nem tanto) de acordo: aqui, somos todos pequeninos, de mãos-nos-bolsos, assobiando para o ar modinhas ultrapassadas, num esforço chão de passarmos despercebidos e, 'en passant', aproveitando para dar umas bicadinhas no parceiro do lado, não vá este enganar-se e mandar o anátema às malvas, com todo o rol de sucessos e alegrias que daí, perigosa e potencialmente, poderão advir, perturbando sobremaneira a ancestral ordem do sossego.

joão de deus - vulgo 'o senhor joão' - é herdeiro de sísifo (nunca chega a lado nenhum), herdeiro óbvio e vampiresco de nosferatu (a sua 'pathos' negra vem desse lado: tudo se trinca, tudo se prova, mas nada se transforma, nada nos consola, para sempre destinados ao sono nas profundezas do que está algures, mas não está verdadeiramente em sítio algum), herdeiro ainda do nosso queirosiano joão da ega, na sua paleta 'nonchalante' de atitudes inconsequentes. um diletante 'au point' e 'chic a valer', na bolsa de valores daqueles desterrados e derrotados do mundo que nem sequer chegaram a entrar em campo. desistentes por definição, por medo congénito, incontornável, de qualquer possibilidade de 'isto ser diferente' (que sempre contemplaria uma canseira de responsabilidades, as quais importa descartar bem cedo, para bem longe).

no bar que o acaso fez cruzar com os nossos passos, um outro 'senhor joão' beberricava o seu cafézinho-com-água-das-pedras de sábado. lançando semi-interrogações e nada subtis comentários aos co-discípulos de botequim, cumpria programa quase religioso: a via-sacra do benfica, os gatunos que mandam em nós, esta gentinha que mal se governa e não se deixa governar, naquele registo de tio-avô que, se fosse Inglês, seria excêntrico e mordaz, mas que, nascido por estas bandas, não passa de um exemplar em mau de um terceiro figurante de um filme série Z, saído do arquivo-morto do neo-realismo italiano mais serôdio.

até os 'senhores joões' que nos calham em sorte, respeitosamente ('o teu respeitinho é muito bonito, é o mais lindo de todos', cantava o outro, no amanhecer ébrio da revolução), são uma pálida representação do 'senhor joão' a que, finamente, joão césar monteiro deu vida nos écrans cá da província.

estava eu nestas profundas cogitações, quando me apercebi de que, algures na minha vida civil, meia-dúzia de personagens (substantivo masculino, eu sei, mas desta feita quase todas femininas, que querem? os linguistas que me desculpem..) desataram a chamar-me 'senhor joão, para aqui'; 'senhor joão, para ali'; 'oh, senhor joão, veja lá'. num país de falsos doutores, há uma terrível falta de senhores. portanto, tudo devidamente sopesado, tinha razões para sorrir em frente, seguir em frente. o problema, diacho!, o problema, dizia, eram precisamente as minhas cogitações. será que afinal também eu não passo de um sósia, num pálido tom sépia, dos 'senhores joões' à beira-mar plantados?

- 'quem da pátria foge, de si mesmo escapa?' - diga-me lá, senhor joão césar monteiro.
e ele responde:
- 'tão pequeno país, para tão grande iconoclasta, rapaz. não se podendo esticar o país, encolhe-se o rapaz. perdão, o iconoclasta.'
- 'senhor joão', 'senhor joão' , conte-nos lá.. e daquela vez que torrou o dinheiro do mecenas, que lhe havia encomendado uma obra, num inter-rail tardio e talvez lúbrico por essa europa fora. lembra-se? quando regressou, filmou a correr umas coisas e foi, ainda a correr, mostrar aos santinhos-padroeiros o resultado. parece que não gostaram. e o estimado amigo, logo ali, retorquiu: 'queriam o quê, por quatrocentos contitos? que vos desse ópera?!'
- pois é, 'senhor joão', assim não vamos lá.

bebamos o cafézinho-mai'la-água-das-pedras desta sexta-feira, enquanto esquadrinhamos os jornalecos gratuitos, cotejamos as novidades, comentamos com o parceiro do lado os detalhes mais pícaros.

- 'comédia é o que acontece aos outros; tragédia é o que nos acontece a nós', não é 'senhor joão'?
- e tragicomédia, 'senhor joão' , é o que nos acontece a todos.
- feliz natal, 'senhor joão'.
- obrigado, 'senhor joão'. e o nosso sporting, joga logo? vou para casa, que é uma pressinha.

eu tenho um sonho: viver num país a sério, mesmo chamando-me joão. um país em que não exista 18% de 'risco de pobreza' (dos jornais), quando outros 18% já lá estão. e que se preocupe, a sério, com a pobreza espiritual, porque 'ela não mata, mas dificulta'.

'queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma'

e de ti, e de ti, e de ti, e de mim, e de todos.

é isso, senhor cesariny. é isso.

Feliz Natal.

[este texto foi construído a partir do livro 'joão césar monteiro' (edições cinemateca portuguesa), da memória viva dos seus filmes em mim, da poesia de mário cesariny, do quotidiano da grande cidade que todos os dias me enfia um gancho de direita na face e um directo de esquerda no peito, dos tempos em que me deslumbrava nas grandes salas de cinema de lisboa, de vestígios do neo-realismo italiano, da leitura dos jornais díários, dos episódios observados nos cafés de bairro que frequento de dia e nalgumas noites. e de tudo aquilo que em mim existe de tudo o que existe. e de tudo aquilo que nem sonho que existe (mas existe).]

18 dezembro 2008

Lanterna Vermelha


(Continuação de posts anteriores com o mesmo nome)

Clara seleccionou, pessoalmente e uma a uma, todas as raparigas – investigou-lhes o passado, as doenças, os defeitos físicos, as possíveis taras, as preferências, as disponibilidades, as motivações. Recrutou gente com escolaridade básica, com licenciaturas ou mestrados; desafiou russas, polacas, brasileiras, portuguesas, chinesas. Não por uma questão de caridade ou vontade de diminuir o número de desempregados, mas porque conhecia bem o mercado – cada homem tem o seu fetiche, seja um sotaque beirão com a resistência das serranas, um loira russa e alta com um ar de nobreza infeliz, uma brasileira desinibida com um gingar provocante ou uma oriental com um porte felino e um caminhar sem gravidade.
Deu-lhes formação – na forma de falar, de reagir, de cativar o cliente, de lhe perceber as manhas ou as taras, de o fidelizar para uma próxima visita. Volte, Sr. Doutor. Aqui encontra o que não tem em casa. Sinta a minha alma a palpitar por si – e agarrava-lhe a mão e assentava-a sobre o coração, para que ele percebesse um peito firme a cobrir um coração saltitante. E o senhor doutor voltava, porque se perdia por aquele afecto e por aquele seio que sorria para ele; o engenheiro voltava porque a russa gemia na sua língua natal enquanto se entregava nos braços e nos afagos de um homem habituado a testar a resistência dos materiais; o manageiro do ponta-de-lança voltava, porque a beirã lhe lembrava a serra e lhe citava Aquilino, mencionando a terra ingrata onde a urze a custo crescia. E ele sorria, só de pensar no fraseado, porque não conhecia o Aquilino, a não ser aquele negro que tinha sido irradiado do futebol por se dopar de uma forma óbvia; e o mestre-de-obras voltava, porque a chinesa - uma felina do oriente em cima de um monte de banha - o atormentava com um pino, uma acrobacia.
Clara queria controlar tudo, porque visualizava o futuro: as entradas e saídas, o cash-flow, o consumo de bebidas, os problemas. A casa começaria a ganhar fama e a ter mais clientela a quem se exigia uma jóia pesada, porque a sociedade de hoje já não se dividia pelos nomes, mas pela conta bancária. A empresária acabaria por ter de contratar mais pessoal e usaria dos mesmos métodos e critérios: entrevista, inspecção médica e física, história de vida, habilitações académicas, hábitos e gostos. Mais ucranianas, francesas, algumas africanas – aqueles corpos grandes e bem torneados eram a perdição de muitos que tinham vindo do continente negro ou de outros que mantinham hábitos colonialistas – e duas ou três nórdicas, porque se acreditava que elas sabiam mais coisas do que as outras, eram proprietárias de um saber que não se partilhava, que estava na genética de quem descendia dos Vikings e era de um loiro genuíno e erótico.
Clara circularia, receberia os clientes com uma palavra de quase amizade, a indagar se estava tudo bem, se a brasileira era do agrado, se a portuguesa mantinha o Aquilino, se a chinesa continuava ágil, se a russa evidenciava o ar de uma nobreza que acabara em simultâneo com o fuzilamento bárbaro e bolchevique dos Romanov. As exigências de qualidade subiriam ao mesmo ritmo que as jóias de entrada. A empresária já imaginava licenciadas, pós-graduadas, doutoradas, criaturas com dissertações filosóficas publicadas nas revistas da especialidade.
Por último, escolhida a força humana que estaria em contacto com o cliente – sendo que o conceito cliente assumia uma dimensão verdadeiramente corporal – Clara entendeu dar igual relevância a quem estaria na recepção, verdadeiro cartão-de-visita da sua casa. Hesitou entre a necessidade do respeito físico que um homem geralmente impõe e a sensibilidade de uma mulher. O processo de selecção esgotou-se na primeira candidatura, após este diálogo elucidativo e conciso:
- Queres dizer-me, Amália, porque motivo havia de te contratar? Desculpa a franqueza, mas tens uma cicatriz que te desfeia ligeiramente um olho e coxeias claramente de uma das pernas… Esta casa pretende ser um oásis de fantasia e beleza, pelo que poderemos ter uma contradição. Dá-me um bom motivo e juro que te contrato.
- Eu sou a realidade.
- Como?
- Sim, a realidade. Quando os seus clientes entrarem neste espaço de ilusão, a última coisa que verão sou eu – a realidade. Quando saírem, depois de regularizadas as contas, e ainda inundados de uma satisfação sem dimensão, eu serei o contraponto, porque a realidade também pode ser uma cicatriz, o coxear de uma perna. Eu, Amália, despertá-los-ei para o choque da vida porque o aconchego de uma mulher desconhecida – ainda que deslumbrante - num quarto de cores sensuais dura 1 hora, e o dia tem mais 23.
- Estás contratada. Começas 2ª feira.

(continua)

MTS

Um murro no estômago


Mediastorm.org, patrocinado pelo jornal “Washington Post”, é um dos sites preferidos pela geração de 80 – os que têm agora entre 20 a 30 anos. Talvez menos, até. Um site criado para desenvolver e incentivar o jornalismo multimédia, premiado com um Emmy e dois Webby Awards, entre outros, que se dedica à divulgação e produção de documentários, sobretudo na área social. “Condition: Critical, Voices from the War in Eastern Congo” é um projecto Mediastorm produzido para a ONG Médecins Sans Frontières. Um murro no estômago, desses que têm o condão de voltar a pôr o mundo em perspectiva – para além do nosso próprio umbigo.

“Condition: Critical”, como lhe chamam abreviadamente, dá-nos a pior imagem de África. O inferno que se instalou no Congo é exemplo das piores notícias que costumam chegar daquele continente. Mas apesar de todo o horror, de toda a selvajaria, de toda a demência e desolação - em que as imagens de um Jesus crucificado só parecem dramatizar ainda mais a ausência de salvação para os que conseguem sobreviver -, ainda é possível encontrar uma semente de vontade entre as centenas de milhar de refugiados da região de Kivu - mulheres e homens bons, disponíveis para voltar a casa e reconstruir a vida.

“De que é que um gajo ainda se queixa?”, perguntam-me aqui ao lado.

Mónica Bello

17 dezembro 2008

Largo da Boa-Hora

Natal, leio os magníficos escritos que aqui vão ficando, sob o eco de tantos mais. Perdoem-me, mas acho-os injustos, apenas porque incompletos. Reajo, pois, a essa injustiça.
Consumismo, materialismo, despesismo, endividamento, tudo verdade.
Mas, talvez não seja descabido reflectir um pouco mais sobre o porquê de ser assim, e o que de muito virtuoso está subjacente a este Natal. É o que tento.
Em primeiro lugar, este Natal foi desapropriado dos Católicos e convertido numa festa da comunidade em geral. É hoje uma festa universal, talvez a única, por isso uma inevitável descaracterização da sua mensagem original e essencial.
Evidentemente que a primeira consequência é relegar-se para segundo plano o facto primordial de se comemorar o nascimento de Cristo – nem mais, nem menos. Talvez Deus fique feliz por esta generalização alienada, talvez não (quem sou eu, aqui no meu banco).
Por outro lado, este Natal é a imposição da realidade à utopia, é o possível, é “o que se consegue arranjar”.
Não é exigível que se consagre uma ínfima parte do ano a uma vivência humanista, solidária, caridosa, virtuosa, idealista e de valores quando o tempo maior desse ano é vivido numa sociedade organizada, estruturada, apta e em funcionamento, precisamente em padrões e modelos de inspiração, acção e interacção divergentes, ou pelo menos não tão coincidentes com o idealismo de um Natal sonhado, acertadamente aliás.
Revolucione-se cada Homem e com isso a Humanidade, exerça-se a comunidade em obediência aos valores que se exigem ao Natal, estruture-se em conformidade a sociedade política, cultural, económica e civil, e então a quadra de Natal idealizada será possível, mas sê-lo-á, então, como um prolongamento natural, como uma imanência da normalidade, e não como uma hiato de ruptura, um intervalo de alternativa.
Sejamos lúcidos: o Ano pode mudar o Natal, mas o Natal não pode anular o Ano.
O que cada um de nós conseguir de mais humanista em cada um destes Natais, que surgem espartilhados na realidade do Ano em que acontecem, é uma importantíssima vitória do bem sobre o mal, do ideal sobre o material, da esperança sobre o desânimo.
Não peçamos, porém, o impossível, a utopia, sobretudo em menosprezo sobre o possível que é o este Natal.
Não nos martirizemos pelos nossos sonhos e ideais.
A natureza das coisas limita e condiciona o Natal, impedindo-o de ser aquilo que todos gostaríamos que fosse. É, pois, como “ente” restringido, oprimido, que o temos de valorar e julgar.
Escolho a defesa, a sustentação do ser, porque o dever ser já está muito bem entregue a cronistas de excelência, aos quais peço apenas que não ataquem tanto este Natal, e não é porque não tenham razão quanto à essência, mas porque é injusto e paradoxal. Na verdade, acirram-se as críticas, precisamente na época do ano em que a maioria faz e dá de facto o seu melhor, para que um momento do tempo do mundo seja mais perfeito. Exponha-se a desumanidade dos 364 dias comuns do ano, e dê-se o Natal como exemplo de que é possível fazer mais e melhor, como sucede, mas não o inverso, que é evidenciar a insuficiência, a imperfeição, a inutilidade daquele que é precisamente o dia mais humano da humanidade, o dia deste Natal
Presentes, úteis ou inúteis, excessivamente dispendiosos para os orçamentos disponíveis, vários e para muitas pessoas, listas, sacos, embrulhos, laços, correrias, azáfama, cansaço, exaustão, busca, invenção. Tudo verdade, tudo retrato exacto deste Natal.
Mas e daí? Subjacente a essa frenética actividade, a esse gasto exagerado, estão ânimos e sentimentos de grande e rica humanidade. Amor e generosidade, sacrifício e altruísmo.
Sim, aquela compra que foi demasiado cara e que até tem o seu quê de dispensabilidade, e cuja concretização importa o consumir dos vencimentos vindouros e a renúncia a coisas próprias, é ditada por amor, por vontade de fazer feliz quem a vai receber.
É, no limite, um erro de amor, um excesso por dádiva, uma extravagância por carinho, é querer realizar a felicidade de quem recebe, é ser feliz a dar o seu muito, o seu máximo possível, é realizar sonhos e fantasias de quem se ama.
Perdoem-me, mas já sonhei e comprei presentes para outros de preços demasiados para as minhas posses, mas cuja concretização me proporcionou felicidade, euforia, alegria, o que quiserem de bem-estar e bem-ser. Lembro a conquista da compra, a satisfação no caminho para o esconderijo, a brincadeira do disfarçar, o jogo do despiste das intenções, a ânsia para que o tempo passasse até ser dada, a emoção na entrega, e o deleite nos olhos de quem a recebeu.
Momentos mágicos inesquecíveis e que deram muito sentido aos actos porque corporizaram, cada um, sentimentos de amor, afeição ou ternura.
E falando somente de extremos, de igual modo já partilhei presentes menores, alguns trocados no ambiente do trabalho em que, pelo menos, tiveram o mérito de eu ter pensado no outro e o outro em mim, e por resultante um olhar de simpatia, desprovido, mesmo que momentaneamente, de azedume ou indiferença. Esses nadas fizeram acontecer humanidade, por isso valeram a pena.
Ocorrem-me as sucessivas reuniões de família, de amigos e de profissionais associadas à quadra. Quase nunca parto para elas de boa vontade, mas volto sempre gratificado, sinto sempre que aconteceu algo em mim de bom, de positivo, que foi enriquecedor, que o espírito de família, fraternidade, nuns casos, de amizade noutros, ou de simples convivência nos demais, miraculosamente impulsionou a minha parte positiva em detrimento da negativa, me aproximou mais e melhor de valores que prossigo e que tantas e tantas vezes me escapam. Nunca saí defraudado, ou arrependido.
Da mesa farta, ressalta-me sempre o enorme esforço de quem tudo fez e preparou, da mobilização geral de meios e recursos de todos para todos. Não sendo um gastrónomo, o que toca e emociona é o esforço, o empenho, a coragem de fazer tudo para que tudo seja bom, suficiente, excessivo, para que não falte nada. Muito sacrifício e amor estão envolvidos nesta preparação e dádiva, por isso sinto-me sempre grato.
Claro, neste Natal ressaltam as crianças, que por não saberem metafísica, e não terem tempo a perder com minudências, querem a festa plena do amor, do carinho, da atenção e dos presentes. Tudo consomem até o cansaço as vencer, e seguir e participar nesse percurso das crianças é viver um mundo de encantamento e maravilha que nos devolve à pureza dos sentimentos e das emoções, numa libertação que é dádiva e bálsamo para corações que a vida vai empedernindo.
Os ausentes trazem-nos a dor compungente da saudade, da falta. É uma dor que dói mesmo, abala, comove, solta a lágrima que não se consegue ou quer guardar, passam os ausentes pelo nosso coração, um a um, a um tempo de estada que não ensombra ou estraga a festa, antes a enriquece, porque se convertem em memórias vivas, presentes, visíveis, que se sentem. Evocações que neste Natal acontecem, com intensidade, mas com uma suavidade que as torna até meigas.
Ergo-me do meu banco, pedindo que todos tenham, pelo menos, este Feliz Natal.

ATM

16 dezembro 2008

Poemas dos dias que correm


A SOLIDÃO E SUA PORTA

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sòzinho na batalha

e arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é solvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

(poema de Carlos Pena Filho, roubado aqui)

História de Natal

A Julinha colou o chifre solto à vaca e aconchegou o musgo debaixo da burra. Depois pôs ainda na manjedoura duas (com sua licença) porcas e quatro ovelhas.

O artilheiro mais o caçador e o romano ficaram no horizonte junto ao moinho e o moleiro, que era mais alto, foi adorar.

O Menino pediu que lhe endireitassem a estrela por cima da gruta. São José parecia um pouco ausente e a Nossa Senhora ainda estava no caixote cheia de palha do burro.

“ Venite adoremus “.

O Alfredo ligou o mercadorias, que passou, cheio de incenso e mirra, com o Melchior na locomotiva, preto da fuligem .

Pairava sobre Belém um perfume de rabanadas.

Na cozinha, a massa levedada das filhoses esperava a vez de ser moldada no joelho familiar, para cair depois no azeite quente, e dele sair polvilhada em canela e açúcar.

A Tia Doroteia orientava as mais novas nos coscorões, para que untassem bem a tábua com azeite, antes de estenderem a massa e ia mexendo sempre o enorme tacho de cobre onde o vinho verde tinto fervia, ganhando o seu perfume a canela, mel, gemas doces e vinho do Porto.

Ao Tio Valentim cumpria manter entretidos e afastados da cozinha os mais pequenos, e ia com eles discorrendo sobre as elevadas lições dos Livros Santos:

“-Transformar vinho em água é coisa de circo. Fazer da água vinho, isso sim, é que sempre foi obra de Deus. Santo Aiberto, meninos, tornou em vinho a água do Conde de Arnouil. A oração de Marta converteu em vinho a água dos seus hóspedes. E quem é capaz de imaginar a Santa Zita a ir buscar vinho ao odre para o transformar em água antes de o dar ao forasteiro, ou ao próprio Cristo, em Canaã, a fazer do vinho água? E podia falar-vos de Santo Odilão, de São Pedro, o Eremita, de São Vasto, que foi bispo de Arrais e Cambraia, de São Victor de Plancy … Estávamos aqui toda a noite, não era padre Venâncio? “

O padre fazia-se desatento e protestava baixinho, pouco convencido e só por dever de ofício, enquanto, pela oitava vez, provava o arroz doce trazido em pires fumegante pela Deolinda, directamente do tacho para o seu juízo.

“-E agora senhor abade?”

“-Mais raspa de limão, minha filha, põe-lhe mais raspa de limão.”

À perua tinham já tirado o osso do centro e enchiam-na agora com o precioso recheio de frango, fiambre, foie-gras, natas e trufas, para depois a cobrir de toucinho entremeado e a levar ao forno debaixo de folhas de papel pardo engorduradas de manteiga, por duas horas e meia, que era para comer só depois da meia-noite.

O bacalhau em postas bem altas e de molho desde manhã, esperava com as tenras couves e os outros matadores - as batatas, cebolas, ovos e cenouras - o momento da cozedura, que se queria à última da hora.

A Julinha deu os últimos retoques no castelo de Herodes, que tinha, no lago de papel de prata, dois grandes cisnes brancos e um cacilheiro de plástico.

Podia lá haver sítio mais santo!

Do outro lado da serra, esfarrapado um saco inteiro de algodão em rama, o Alfredo fazia a despesa da neve.

A Tia Vitória e o Tio José anunciaram-se com um sonoro “Santo Natal e Boas Festas!” Agora já estavam todos.

O doce de aletria e os bolinhos de jerimu juntaram-se na mesa enorme aos cestos de nozes e passas de uva e figo, de pinhões, amêndoas e avelãs.

Os sonhos iam caindo e alourando, um a um, no lume muito brando, enquanto ao lado alguém preparava a calda com água açucarada, pau de canela e cascas de limão e laranja.

À meia-noite, o Menino Jesus nasceu, respirou fundo e ficou todo consolado.

JCN

15 dezembro 2008

África

Todos os continentes têm os seus encantos, mas nenhum como a África inculca nas pessoas que com ele contactam sentimentos tão fortes. Talvez por ter sido ali que tudo começou para a raça humana (até que alguém se lembre de contestar os actuais dogmas científicos e descubra que, afinal, o Homem nasceu na Brandoa). Nenhum outro continente suscita um sentimento de pertença tão espontâneo por parte dos seus habitantes. Em todas as regiões da África sub-saariana as pessoas são primeiro africanas e só depois cidadãos dos países inventados pelo colonizador europeu. África é Mãe como nenhum outro continente é, sequer, tia.
África foi o primeiro continente a ser tocado e o último a ser penetrado na aventura global que começou em Sagres há quase 600 anos. Daí o mistério que ainda hoje perdura no inconsciente europeu, e daí o fascínio que também os europeus e seus descendentes sentem por África.
Fiel incondicional do culto africano, não posso deixar de me indignar com o que se passa actualmente em África. Nunca as riquezas que os países africanos possuem foram tão valorizadas e nunca a miséria, o conflito e a doença foram tão generalizados, pelo menos desde o início da colonização efectiva do continente. Os diagnósticos de catástrofe existem às centenas, elaborados pelas mais prestigiadas instituições internacionais. As propostas de terapia também. Mas ninguém lhes liga. É que para reverter a situação seria necessário combater a corrupção, promover Governos representativos e legítimos, construir o respeito pela lei e garantir todos aqueles direitos inalienáveis à pessoa humana que, em África, pura e simplesmente não existem. E tudo isto é actualmente impensável. É impensável porque as elites africanas recusam obstinadamente que tal aconteça e porque nisso têm o confortável apoio dos seus poderosos amigos de momento. Amigos nunca faltam. A troco de vantagens predatórias ou de alinhamentos estratégicos, europeus, americanos, russos, chineses, e até os novos “emergentes” estão dispostos, se não a colaborar activamente no desastre, pelo menos a calar qualquer crítica ao actual estado de coisas. Com os índices de desenvolvimento humano mais baixos do planeta, os países africanos estão condenados à pobreza e ao subdesenvolvimento, sem que seja possível vislumbrar uma solução alternativa.
Diz-se que os problemas de África têm que ser solucionados pelos africanos. Pura demagogia! Não têm, nem podem. Mas claro que os africanos podem e devem dar uma ajuda. Para começar têm que reinventar o Homem africano.
Permitam-me uns parênteses. Os processos de descolonização surgiram fundamentalmente da inopinada consciência dos europeus de que não eram superiores aos africanos. Tinha sido essa confortável convicção que, até à segunda guerra mundial, lhes tinha permitido dominar e explorar sem que de tal decorresse qualquer problema ético ou moral. Era, até então, inquestionável pelo mais humanista dos pensadores que os europeus eram superiores aos africanos. Eram superiores do ponto de vista civilizacional, do ponto de vista económico e até do ponto de vista moral. De repente, ninguém sabe muito bem como, tudo começou a ser questionado. Foi um pouco como o que aconteceu com a escravatura, instituição incontestada até ao século XVIII e que num ápice virou aberração imoral.
Retomando o fio à meada, o ponto que eu quero aqui fazer é que, enquanto os europeus se viam envoltos em preconceitos morais e em consequência disso descolonizavam, o poder em África era transferido para elites sem quaisquer preconceitos dessa natureza e que tinham dos seus concidadãos a mesma imagem dos antigos colonizadores. O clique de evolução civilizacional que a certa altura deu nos europeus não aconteceu ainda nas elites africanas e, enquanto não acontecer, enquanto ao Homem africano não for reconhecida a humanidade que é intrínseca a qualquer ser humano, nada de bom pode acontecer em África.

J. Buggs

14 dezembro 2008

Natal - um outro olhar

É a terceira semana que falo de Natal. Tenho escrito com especial ênfase sobre a festa dos que são vítimas de doenças, afastamentos, desaparecimentos, saudades, angústias, rancores mal resolvidos, perdões que não saem. Tenho escrito, em suma, dos e para os que sofrem. Ontem, num texto magnífico – como é seu costume – DaLheGas escrevia sobre as casas vazias, dele(a), ou dos outros.
Quem aterrar neste blogue e pesquisar textos sobre a quadra natalícia ficará aterrado com o tom porventura depressivo e contrastante com as luzes que brilham nas árvores.
Há uns dias, o(a) nosso comentarista habitual a. (a quem agradeço, como aos outros, a mais-valia que têm acrescentado com os seus escritos) falava na hipocrisia da quadra, em resposta a um texto meu (mesmo que eu não tivesse sentido que o comentário se me dirigia).
Talvez a frase mais citada sobre a época em que vivemos seja a de que o Natal é quando um Homem quiser. Talvez seja mesmo mas, se não conseguirmos que seja Natal para os outros ao longo de todo o ano, como seria saudável e verdadeiramente cristão, que se aproveite esta temporada para ajudar quem sofre. É pouco? É, seguramente – mas ao menos fizemos qualquer coisa, e nesse qualquer coisa tocámos a vida do próximo.
Hoje a Igreja celebra o Domingo da alegria e, ao repensar a minha vida, os meus valores, os meus actos, as minhas falhas, dei por mim a reforçar a ideia – sobre a qual já escrevi – de que tudo o verdadeiramente importante na nossa caminhada é uma viagem de longo curso. Em versão olímpica, uma maratona.
O caminho do Bem pode ser árduo, difícil de trilhar, convidativo à desistência. Fazer as pazes com um amigo pode exigir humildade no reconhecimento das nossas falhas, ou demandar um perdão que o nosso orgulho terá dificuldade em aceitar; promover a pacificação numa família pode dar azo a sentirmos que perdemos importância e poder, porque a cedência das nossas prerrogativas não é confortável e porque, tantas vezes, a divisão entre outros pode embriagar-nos de satisfação. A curto prazo – imediato, mesmo – seguir o caminho recto pode ser uma maçada, um desconforto, um enervamento.
Mas, no limite, é com a nossa consciência que nos deitamos todos os dias e, mais cedo ou mais tarde, iremos ter a recompensa pela regulação da nossa vida. Mesmo que a tal recompensa venho numa forma diferente daquela a que estamos habituados. Mesmo que seja só, e apenas, a satisfação do dever cumprido, um passo mais que demos no caminho da Perfeição.
O Natal tem que ser quando um Homem quiser. Não para receber ou dar presentes que se compram à pressa num Centro Comercial, mas para tocar a vida do próximo, deixar vestígios (mais do que evidências) da nossa passagem pela estrada dos outros. Trocar olhares, mais do que embrulhos.
Tem razão, a., quando diz que o Natal é uma época hipócrita. Se é, os culpados somos nós, que não deixámos que fosse diferente, que não quisemos que fosse o princípio de todas as melhorias. Os culpados somos nós, que não fizemos nada porque achámos que seria pouco. Os culpados somos nós, quando deixámos que o ter vencesse o ser, quando nos esquecemos de que verdadeiramente rico não é o que tudo tem, mas aquele a quem nada falta.
Ser-se Bom é um percurso, não um destino. Porque não começar agora, e manter o desafio de o prolongar até ao Natal que vem?
Obrigado, mais uma vez, por lerem o que escrevi para mim próprio.

JdB

O 3º Domingo do Advento e a Acreditar


Hoje é o 3º Domingo do Advento, e eu não esqueço a minha condição de católico.
Vim ontem ao fim da tarde do Porto, onde se realizou a festa de Natal da Acreditar. Na véspera tinha estado em Ovar, na fábrica da Salvador Caetano, para receber uma carrinha Toyota Hiace, oferta do Grupo, e que facilitará algumas das nossas actividades.
No auditório da Universidade Católica, uma imensidão de crianças a quem damos apoio (dizem-me que mais de cem), acompanhadas de outros tantos irmãos e pais, todas pertencentes aos núcleos do Porto, Coimbra e Lisboa gozaram algumas horas de um espectáculo divertido e variado, para além do lanche e da entrega de presentes.
É, para todos, uma festa especial. Na imprevisibilidade da vida desta miudagem, para uns será mais uma festa, para outros poderá ser uma das últimas. A nós, Acreditar, resta-nos fazer o melhor possível com o entusiasmo e alegria de sempre, nesta esperança que todos temos de fechar um dia as portas, porque não haverá mais crianças a sofrer de cancro. Ninguém sabe quando, mas todos gostaríamos de estar cá para assistir.
O post de hoje é dedicado, por isso, a todas as crianças que passaram pela Acreditar, às que estão agora connosco e às que aparecerão no futuro, vítimas de uma vida nem sempre justa.
Fica também uma palavra aos voluntários e à estrutura profissional da Associação pelo trabalho magnífico de todos os dias, feito com competência e dedicação e, sabemos todos, tantas e tantas vezes com um nó na garganta.
Por último, um abraço aos Pais, para quem o Natal assume contornos de milagre ou de sufoco, que acreditam até ao fim no desfecho que os deixe voltar a sorrir.
Quem passou épocas festivas num luto ou numa luta sabe que este é um tempo de contrastes, de sensações díspares e tantas vezes antagónicas. Que consigam encontrar todos a força e o ânimo, a vontade de lutar e de aceitar, a resignação de quem não se revolta com a vida, o segundo olhar para encontrar um sentido para o seu sofrimento.

13 dezembro 2008


QUANDO ME SINTO SÓ PENSO NAS CASAS. NAS DOS OUTROS. OS QUE CONHEÇO E OS QUE NÃO CONHEÇO, MAS EXISTEM. PENSO NAS CASAS, SE CALHAR, TÃO VAZIAS COMO A MINHA.

VÊM À MEMÓRIA OS ANOS FÁCEIS E FELIZES EM QUE HAVIA MUITA GENTE. GENTE QUE FOI E DEIXOU DE SER. E A QUE ERA TUDO MAS SEM ELA ESTAREI SEMPRE INCOMPLETO.

ÀS VEZES FALTAM-ME AMARRAS, DAS QUE NÃO QUEBRAM. LÁ LEVO O BARCO, PROCURO. HÁ-DE HAVER UM PORTO, DITO SEGURO. HEI-DE ENCONTRAR POR ESTE MAR.

MAS AFINAL QUE PENSO EU? SERÁ NATAL? SERÁ. QUEM ESTÁ MAIS SÓ, QUEM ESTÁ? EM QUANTAS CASAS ESPREITA TAMBÉM A SOLIDÃO? QUANTOS PRECISAM DA MINHA MÃO?

É NATAL. QUEIRA-SE OU NÃO, DENTRO DE NÓS REMEXE-SE ESSA EMOÇÃO. SEJA SAUDADE, SEJA PARTILHA, ANSIEDADE OU ALEGRIA. TOCA O ALARME QUE ANUNCIA AQUELA NOITE, AQUELE DIA. QUEIRA-SE OU NÃO…

MAIS UM NATAL.

DaLheGas

11 dezembro 2008

Lanterna Vermelha


(Continuação dos posts de 28 de Novembro e de 4 de Dezembro)

Clara tinha 18 anos quando entrara para Direito, disposta a ser advogada. Aos 22 estava formada e rica, com a morte triste de uma madrinha emigrante na Venezuela que, idosa e reformada, lhe deixara o pecúlio de uma vida inteira dedicada aos supermercados e à saudade de uma afilhada em Portugal. Clara pôs o dinheiro a render com o espírito visionário que lhe corria nas veias, e estabeleceu-se como advogada num escritório em Lisboa, depois do sócio mais sénior se ter impressionado com um decote ousado e uma média final de 17.
Dedicou-se ao direito de família, lugar deixado vago por um especialista que fugira com uma cliente ninfomaníaca e histérica, produtora de gritos desalmados. Clara instalou-se no gabinete e sorriu, imaginando o que aqueles armários teriam visto e ouvido, o rubor que ganhariam as lombadas tristonhas dos Diários da República caso não fossem objectos inertes. Ali mesmo, ao início de um corredor, Clara começava a atapetar o caminho do seu sucesso.
Alguns anos depois era considerada a advogada das causas impossíveis. Tinha uma taxa de sucesso em 97,6% dos divórcios e uma postura positiva, confiante, optimista e saudavelmente agressiva. Uma infidelidade de um marido era, para ela, um processo de estagiários. Sugava o desgraçado até à medula, sacando-lhe pratas e mobílias de família, solares dos antepassados e quadros a óleo. Se a infidelidade era da esposa, a advogada sorria, entusiasmada com a luta. No fim, depois de reuniões incessantes e argumentos improváveis, o marido acabava por reconhecer que a traição alheia era culpa dele e penitenciava-se com o barco, a moradia em Sesimbra e aquele quadro do Pomar que tanto apaixonara a mulher. Suplicava ficar com as jóias da mamã e Clara acedia com magnanimidade, sacando-lhe, sem remorso de alma nem pestanejar de olhos, uma pensão obscena.
Passaram-se cinco anos e Clara cansou-se daquela vida. Os 2,4% de insucesso não a perturbavam, faziam-na sentir o gosto agridoce da derrota. Esperta, curiosa e conhecedora da alma humana, começou a perceber o que a sociedade queria, onde se geravam dependências simpáticas e vícios perigosos. Abria as páginas dos anúncios e percebia uma profusão de belezas esbeltas – algumas africanas de corpo forte, outras brancas como a farinha – que se disponibilizavam para serviços ao domicílio, falando inglês, manifestando liberdade para esta ou aquela fantasia. Ofereciam, além disso, atributos físicos e estacionamento próximo – a junção feliz do erotismo e do prático. Garantiam, ainda, uma discrição máxima, temperada por uma meiguice totalmente transparente nuns olhos verdes e num corpo de gazela estudante.
Pesquisou numa terra das redondezas e acabou por encontrar o local ideal: zona discreta, beco escuro e uma placa de mármore que relembrava que era ali que se reuniam os homens bons do concelho. Não tinha uma dúvida – por detrás de uma porta sem história iria abrir uma casa onde o sexo se fizesse pagar com notas altas, mas onde houvesse qualidade ao dispor. Não a qualidade argumentada com uma ligeireza pouco profissional, mas aquela que correspondia à satisfação integral do cliente, à antecipação dos seus desejos, à identificação absoluta das suas fantasias mais íntimas. Na sua casa, a qualidade seria uma obsessão, um factor diferenciador, não uma palavra vã e oca para impressionar os crédulos. Abriria das seis da tarde às três da manhã, escolheria os seus recursos humanos, a sua equipa, com um critério feroz e de especialista de quem se habituou à luta e à vitória – com revelações de fantasias de permeio.

(continua)

MTS

Uma lição de vida em seis minutos e cinquenta e um segundos


É uma lição de jornalismo de dois fotógrafos profissionais norte-americanos, Charla Jones e Jayson Taylor, que há um ano decidiram dedicar-se ao vídeo jornalismo. “Farm Family”, como o nome indica, é a história de uma família rural - do Maine. De uma segunda oportunidade. De coisas simples e tão complicadas como o amor e uma família.
Vale a pena parar durante seis minutos e cinquenta e um segundos para conhecer a família Tibbetts.

Mónica Bello

10 dezembro 2008

Largo da Boa - Hora

Sentado no banco que digo meu, arrisco pensar: a vida não tem sentido.
A vida do ser humano é um processo biológico que tem o surgimento, a duração e o desaparecimento.
Não vem ao caso agora nem o surgimento nem o desaparecimento biológico. O que centra a minha especulação é, precisamente, o trajecto entre esses dois pontos, ou seja, a vida.
O que teorizo é que a vida, objectivamente, não tem, nem tem de ter, para ser biologicamente perfeita, qualquer sentido. É suficiente para que o trajecto se complete que sejam garantidas as necessidades funcionais de subsistência, de sobrevivência.
Cada vida não traz, como componente, nenhum sentido a ser cumprido. Cada vida é um “vazio” biológico, desprovido de qualquer teleologia.
Ora, não vindo originariamente pré-determinado e revelado o sentido da vida, começam as complicações – e sérias – para o ser humano.
Efectivamente, é uma angústia comum a todos este tema do sentido da vida. Reflectimos, perguntamos, concluímos, sob estas ou outras formas: que sentido tem a minha vida? a minha vida não faz sentido! Não encontro sentido para a minha vida. Perdi o sentido da minha vida? Falhei o sentido da minha vida!...
Esta angústia permanente deriva da percepção de que viver não pode ser somente sobreviver funcionalmente por uma sucessão de actos de conservação.
Cedo constatamos a existência do espírito que anima a matéria, (um acervo de espiritualidade, inteligência, curiosidade, sensorialidade, sentimentalidade, sensibilidade, sensualidade, cultura, história), que nos impele e obriga a projectos, sonhos, criações, realizações, obras, dimensões, a cujo conjunto chamamos sentido da vida.
O que sucede, pois, é que temos a necessidade aflitiva de ter um sentido da vida. Mas como encontrá-lo?
Excluo a religiosidade ou outras fortíssimas e determinantes formações ou convicções, para assim encontrar o maior denominador comum.
Sebastianismo é a primeira variante da busca que me ocorre. Efectivamente, muitos esperam (e desesperam) que num qualquer dia surja, vindo do nada, uma força que imponha o sentido da sua vida, na qual confiarão e a à qual se devotarão. Esperam um guião, trazido e ofertado por quem seja redentor de vazios. Confiam que o amanhã trará a boa nova, reconfortando-se no fado que explica o ontem perdido na espera, e vivendo o hoje apenas como véspera desse amanhã inovador e grandioso. Sempre numa sucessão de presentes desperdiçados e consumidos a olhar a bruma, porque D. Sebastião não virá. Nunca.
É penoso, porque sofrem ao não entenderem o que sucede, ao resignadamente aceitarem a vida como ela se vai ajeitando. São presas fáceis da melancolia, do tédio, da tristeza, da depressão, porque vêem e compreendem tão só a árvore, mas não a floresta. Claudicam num dia sem agenda, ensombram por haver nuvens no céu, tremem em noite de solidão.
Mimetismo, é a segunda variante. Muitos constroem-se por imitação dos paradigmas que elegem. Confiam que esses outros, elevados a ídolos, descobriram e seguem o caminho certo, são estrela polar na rota pelo breu. Não importa nem a direcção, nem a intensidade do caminho; importa seguir, seguir sempre aquela estrela e fazer como ela.
O resultado dessa despersonalização, do “transfer” de identidade para terceiros idealizados, da renúncia a si próprio, não pode ser outro senão uma representação caricatural.
A ânsia da vivência em cópia de outros, porque nunca conseguida, tem a inevitável consequência do arrastamento para o pântano das comparações, onde tudo e todos acabam sugados. Desmerecimento, insuficiência, incapacidade, são os qualitativos que atingem à exaustão todos os que formam o núcleo ao redor da existência. Frustração inevitável, porque o libreto é de outra ópera, para outros artistas e para outro palco. Erro fatal.
Falha pois o sebastianismo, como falha o mimetismo.
Tenho, porém, a convicção de que, apesar de simples, há uma via que é eficaz e suficiente. Chamo-lhe a via do comprometimento.
O início é interiorizar, como certeza absoluta, como dogma, de que cada um tem no seu círculo de relacionamento e de modo permanente, variando apenas de intensidade consoante a proximidade e importância do laço, pessoas que precisam, esperam e confiam em mim, mas também que essas mesmas pessoas, em reciprocidade, crêem que eu preciso delas, espero por elas e confio nelas.
Concluído este início de reconhecimento e interiorização da dupla relação com o(s) outro(s), de recíproca dependência, imprescindibilidade mútua, resta comprometermo-nos firmemente a não desapontar cada uma dessas pessoas, agindo, vivendo ao serviço e para o serviço desse compromisso.
Trata-se pois de realizar o que de mim precisam, esperam e confiam, e, ao mesmo tempo, consentir que em mim se realize a necessidade e querer do outro, que me pede e oferece a sua imprescindibilidade .
Numa imagem: ele precisa do meu abraço e ele precisa que eu precise igualmente do seu abraço. Abracemo-nos pois.
Ter um sentido de vida, colmatando assim a lacuna biológica original, pode, pois, ser o constante preencher dos outros, dando o que precisam receber, recebendo o que precisam dar.
Talvez chegue para ser feliz, para a vida ter sentido, sabermos e cumprirmos os outros que nos rodeiam.
Se bem virmos, agir no comprometimento vai preencher todos os espaços, tempos e modos da nossa vida, porque são infindáveis as oportunidades e circunstâncias de aplicação. Variará a natureza, a intensidade, a gravidade e o conteúdo desse agir, mas todos os actos serão gratificantes, todos eles contribuirão para a felicidade e paz., derrotando-se a angústia.

ATM

09 dezembro 2008

História em Lisboa

Na despedida
reparto o passeio contigo.

Deixo-te o retrato em que ficámos com o Tejo ao fundo
e os momentos em que estive à altura do cenário.

Deixo-te os beijos dos pássaros nos namoros do fim do dia.

Deixo-te todas as colinas
e as escadinhas para lá chegar.

Deixo-te os cheiros a castanhas, manjerico,
a peixe frito, maresia e hortelã.

Deixo-te o tempo lento dos domingos,
a luz a bater nos azulejos
e as casas de várias cores.

E fico para mim com os instantes
em que, neste passeio por Lisboa,
a luz do fim da tarde te encontrou.

JCN

08 dezembro 2008

8 de Dezembro

Corria o ano de 1646. Nas cortes celebradas em Lisboa, no ano de 1646, D. João IV declarava a Virgem Nossa Senhora da Conceição Padroeira do Reino de Portugal, prometendo-lhe, em seu nome e no dos seus sucessores, o tributo anual de 50 cruzados de ouro. Agradecendo à Virgem a especial protecção dispensada na nossa luta pela independência, ofereceu-lhe a coroa real que, desde essa data, mais nenhum rei ou rainha de Portugal usaram. Prometeu ainda, solenemente, “tomar por Padroeira de nossos Reinos e Senhorios a Santíssima Virgem Nossa Senhora da Conceição, (...) confessar e defender, até dar a vida, sendo necessário, que a Virgem Senhora Mãe de Deus foi concebida sem pecado original...”.

A 8 de Dezembro de 1854, o Papa Pio IX, pela bula «Ineffabilis Deus», define, decreta e confirma que a Virgem Maria foi concebida sem pecado original. Este é o dogma da Imaculada Conceição.

São estas as datas que se conjugam no feriado que hoje celebramos, porque o culto mariano em Portugal é muito mais antigo.




Consagração a Nossa Senhora

Ó Senhora minha, ó minha Mãe, eu me ofereço todo a Vós, e em prova da minha devoção para convosco, Vos consagro neste dia e para sempre, os meus olhos, os meus ouvidos, a minha boca, o meu coração e inteiramente todo o meu ser.
E porque assim sou Vosso, ó incomparável Mãe, guardai-me e defendei-me como propriedade vossa.
Lembrai-Vos que Vos pertenço, terna Mãe, Senhora Nossa.
Ah, guardai-me e defendei-me como coisa própria Vossa.

JdB

Nota: privilegiei esta Avé Maria de Mascagni, talvez mais desconhecida mas nem por isso menos bonita, mesmo sabendo que as imagens que acompanham o filme não são tão nossas.

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