Entreguei no início desta semana o meu primeiro ensaio. Lido assim a seco perde o pouco interesse que poderia ter, porque não se conhece, nem o texto de M S Lourenço, nem a teoria de Frege. Não obstante, partilho-o convosco, só para que se perceba um pouco da linguagem e dos temas que vou ouvindo e sobre os quais vou escrevendo. Tive ontem o feedback e fiquei agradavelmente surpreendido. Fui "criticado" por algumas incorrecções formais, por um ou outro raciocínio menos claro. Fui "elogiado", e cito, desta forma: o seu ensaio foi um esforço de clareza notório - e isso ajuda-o.
Uma informação última: respondi que sim à pergunta, e a resposta mais certa (se é que se pode dizer assim) seria "não".
Uma informação última: respondi que sim à pergunta, e a resposta mais certa (se é que se pode dizer assim) seria "não".
***
É a teoria da literatura de M. S. Lourenço em “Metaliteratura” uma
teoria fregeana?
***
Esta interrogação pode, de
alguma forma, ser formulada de outro modo: enquadra-se
a poesia, tal como dela fala M. S. Lourenço no ensaio mencionado, na teoria de
Frege?
Citemos o filósofo português: como em poesia as palavras são objectos, as
palavras poéticas deixam de ter referência.
Para nele enquadramos o de M.
S. Lourenço, retomemos agora o pensamento de Frege. Para este, as frases
dividem-se entre dois tipos diferentes:
- - aquelas em que interessa o valor
da verdade, isto é, frases que transmitem conhecimento, e às quais Frege chama juízos;
e
- - aquelas que não transmitem
conhecimento, e às quais Frege não chama nada.
Complementando o raciocínio,
Frege argumenta ainda que:
- - as frases com referência
transmitem conhecimento; e
- - as frases sem referência não
transmitem conhecimento.
Portanto, podemos deduzir que
para Frege as frases que não transmitem conhecimento, para as quais não interessa o valor de
verdade, são frases sem referência. E diz ainda o matemático e filósofo alemão
que todas as frases que contêm uma palavra sem referente não têm referente.
Socorramo-nos agora de uma definição de poesia: carácter daquilo que, por ser considerado belo ou ideal, desperta uma
emoção ou sentimento estético. Assumindo a veracidade desta definição – ou de outras, mais ou menos
extensas - daqui não decorre que a
poesia transmite conhecimento. À poesia não interessa o valor da verdade mas
apenas – ou sobretudo - o despertar de uma emoção.
A poesia socorre-se de
figuras de estilo, de uma organização ritmada das palavras, do recurso a
imagens próprias. Vive da imaginação e da sensibilidade mais ou menos férteis
do poeta que, criando personagens, emoções, estados de espírito, verte a sua alma
para o papel. Ao poeta não interessa, repete-se, transmitir conhecimento. Para
o poeta, a expressão 7 + 5 = 12 não é a
explicação de uma operação matemática verdadeira aceitável universalmente, mas
a distribuição ordenada (poeticamente ordenada) de símbolos numéricos e gráficos.
E mesmo quando alguém profere, num poema, esta verdade matemática, a frase é
desprovida de referente, pelo que não pode ser considerada – nem isso seria
importante – verdade ou falsa.
Na poesia, como diz M.
S. Lourenço, as palavras são objectos.
E, assim sendo, são usadas como conjuntos de letras ordeiramente colocadas que
servem um propósito estético, emocional, sensorial. Não servem, seguramente,
para transmitir conhecimento. Ainda que o pudessem fazer, em circunstâncias
muito específicas, não é essa a sua natureza.
cantando o veio
em lado me meu e espia
e cruel me anjo
redor combate leito, dia
sentar-se nesse
passa peito ao e do meu
embalou-me que no
seu.
A poesia acima, da autoria de Sophia de Mello Breyner, não está como ela
a redigiu. Escrita desta forma não tem, sequer, sentido. Mas, numa hipótese
meramente académica, nada impediria que fosse esta a versão definitiva e
derivada da vontade de quem a criou. Reproduzamo-la, mesmo assim, da forma
correcta:
O Anjo que em meu
redor passa e me espia
E cruel me
combate, nesse dia
Veio sentar-se ao
lado do meu leito
E embalou-me,
cantando, no seu peito.
A quadra assim escrita já tem sentido, porque as palavras estão
organizadas de uma forma coerente, sintacticamente correcta. E, não obstante,
não tem referente, porque em bom rigor o anjo não existe. E não tendo referente não transmite
conhecimento, o que vai na linha do que tem vindo a referir-se, na senda do
pensamento de Frege.
Traduzamos livremente o filósofo alemão: se fosse uma questão apenas da frase, do pensamento, seria desnecessária
a preocupação com o referente de uma parte da frase; apenas o sentido, não o
referente, da parte, é relevante para o sentido de toda a frase.
E diz ainda Frege, numa tradução livre: assim, é-nos indiferente que o nome Ulisses, por exemplo, tenha um
referente, desde que aceitemos o poema como uma obra de arte.
Perceber o sentido da quadra independe, por isso, de determinar o
referente de qualquer uma das linhas que constituem a quadra. E perceber o
sentido do poema não é mais, em cada um dos leitores, do que encontrar uma
interpretação, tantas vezes própria, individual e, quiçá única, para o poema.
Citemos agora M. S. Lourenço que diz a este respeito: mas o facto sobre todos notável é que um
texto é tanto mais poético quanto maior for o número de interpretações
divergentes que suscita. Assim, a verdade absoluta do texto poético, que
repousa apenas sobre a observância de uma formalismo vazio de conteúdo, fica
dependendo de uma interpretação que transforme essa verdade absoluta na verdade
relativa dos modelos mais conformes com a nossa intuição dos objectos reais.
Se entendermos a quadra de Sophia de Mello Breyner, da infinidade de
exemplos semelhantes, e seguramente mais veementes, como uma obra de arte,
percebemos que o referente, que de facto não existe, não é necessário, porque
nos basta a interpretação.
Parece-nos por isso evidente que há uma sintonia nos pensamentos de
ambos os filósofos.
Como em poesia as palavras são objectos, as palavras poéticas deixam de
ter uma referencia.
À pergunta: é
a teoria da literatura de M. S. Lourenço em “Metaliteratura” uma teoria
fregeana?, a resposta tem de ser, obviamente, sim.
1 comentário:
Muito bem, JdB! O Gustavo Rubim teve razão... Bjs. pcp
Enviar um comentário