Madrinha, adorada madrinha,
Espero que esta a encontre de saúde, que nós por cá todos bem.
Escrevo-lhe hoje sobre fusões. Sim, querida madrinha, adivinho-lhe o ar de espanto com pinceladas de indignação
O menino está doido? Quer matar-me? Acha que me interessam essas minudências do mundo dos negócios? Sou de um tempo em que não se falava de dinheiro. Ou se tinha, ou não se tinha. Mas não era tema de conversa.
Descanse, madrinha e tome o seu chá. Esta fusão é especial, tem contornos vinícolas e abrange, em simultâneo, países e pessoas. Quando chegar ao fim dir-me-á de sua justiça.
Sabemos bem, porque vem nos livros, que numa fusão a expressão todos é algo de vago e potencialmente equívoco. Na realidade, numa operação desse género, há o nós e o eles, sendo que estes são os fracos e aqueles os fortes. Só na teoria, no imaginário fantasista, enganoso e charlatão do mais forte é que se poderão desenhar contornos de todos felizes, todos mais fortes, todos entusiasmados. Nas empresas, nas companhias, é assim que se passa. Todos se querem fundir uns com os outros, porque acreditam nas fábulas que garantem que unidos venceremos. Ora essa frase poderá não ser mais do que o nome de uma escola de samba. A verdade nua e crua é que há uns que saem fundidos pelos outros.
Pessoa sábia e diplomata, com berço em terras estranhas à nossa, garantiu que tudo isto se passou com as duas alemanhas aquando da reunificação. Em nome da língua comum, do deustschland über alles, quiseram juntar-se, crescer, dominar aquela facção de mundo que as estimula. Mas a verdade é que o oeste fundiu o leste. Segue-me madrinha?
Fui convidado para mais um wine tasting, desta vez em casa de diplomata teutónico, que oferecia aos seus convivas produtos vinícolas alemães, todos brancos (havia, naquele repasto, uma clara supremacia branca, sem que ninguém se tivesse apercebido desse pormenor) produzidos pela sua família com o amor legítimo de algumas gerações. Poupo-a, madrinha, aos pormenores do processo em si. Já sabe que começo a confundir aromas, que as minhas papilas gustativas estão de rastos, que irei pedir um transplante de nariz porque não me posso pavonear pelos salões mais nobres com um emplastro nasal claramente cirrótico e que ri em permanência dados os eflúvios aspirados em profusões obscenas.
Foi um exercício interessante mas, antes de continuar para a temática das fusões e aquisições, queria relembrar com ternura a forma como um diplomata presente, claramente comovido pelo riesling e pelo mosel, se despediu calorosamente de mim, na minha língua pátria. Apertou-me ambas as mãos, olhou-me nos olhos com a franqueza dos puros e disse-me: estamos juntos. Vim a saber que tinha estado em Angola, o que explicará muita coisa, ainda que não tudo.
O diplomata anfitrião é um homem da noite, habituado a circular pela escuridão do basfonds com mulheres elegantes – que não a sua. Tem, na infidelidade, uma visão democrática da vida, não seguindo os ditames do famigerado ku klux klan. Chega ao seu castelo, uma casa elegante em Harare com laivos de portuguesismo algarvio, e a feliz coabitação dos povos remete-se para a garagem. Em casa ele é o Oeste e ela é o Leste. Segue-me, madrinha? Ele é do lado que fundiu o outro, e, no remanso do lar, do idílio amoroso que se imagina portas adentro, não há reunificação, porque se juntam duas alemanhas que estavam separadas pelo muro.
Ela não é a ingrid que eu imaginei há algumas semanas, embrulhada de formas volumosas num palheiro com cheiro a feno. Ela é uma rapariga elegante porém frágil, bonita porém potencialmente triste. O marido é ocidental, ela cresceu a falar russo, em Leipzig. Num gesto de anfitriã cordial para com este que lhe assina a carta, conversou comigo sobre a sua música, a minha estadia, o tecto da casa que lhe lembra uma igreja, os filhos pequenos que lhe ocupam tempo e que a vedam do piano, onde tocaria Bach com um ar melancólico. Ao jantar deu-me a graça da sua direita, e conversámos sobre os caminhos do mundo, sobre o after taste, o tanino e o xisto; circulámos pela Beira, pela geografia das estradas, pelas velocidades elevadas que a assustam, pelo Índico que a fascina. Falámos de Siracusa a propósito do teorema de Pitágoras. O marido, todo ele informação vinícola e olhar de águia para a jovem esposa, não se terá apercebido de que a sensualidade é incompatível com as fórmulas matemáticas e que catetos ao quadrado não conferem erotismo ao diálogo luso – alemão. Adivinha-se o ciúme, vislumbra-se o todos ausente daquela fusão. Há o ocidente que fundiu o leste. A casa dele, no fundo, segue a tendência corporativa. E a jovem esposa, na sua fragilidade, levanta-se, circula mais um riesling, abafa uma saudade naquele seu peitinho de rola adoentada.
Despedi-me de ambos. Ele enlaçava-a pela cintura, num misto de afirmação de propriedade, talvez amor, quem sabe se preparação para mais uma noite tardia, com o cabelo que chega a casa impregnado dos cheiros locais. Ela sorriu, gentil, e vislumbrei-lhe três golpes ligeiros na arcada supraciliar. Gente portuguesa experiente, com quem almocei no dia seguinte, garantiu-me ser moda nas camadas jovens. Mas eu, madrinha, sou mais cauteloso. Adivinho violência doméstica. Na realidade, como sabe, há o nós e o eles. Numa operação financeira deste tipo há sempre alguém que é fundido.
Perdoe-me a lentidão da descrição, a exaustão do pormenor. Mas era importante, para que se enquadrasse.
Abraço-a firme, na certeza da saudade, na esperança do regresso, na comoção do reencontro.