31 janeiro 2017

Caminho marítimo para a Índia (V)

Ir a Goa é, fatalmente, passar algum tempo na praia, mesmo que seja só para se dizer que se tomou banho em Goa... Foi o que fizemos ontem, na praia de Ashvem. É fantástico tomar banho na praia de Goa? É muito agradável, mas não mais do que isso: o mar é moderadamente calmo, a água moderadamente quente e moderadamente transparente. Há praias melhores do que Goa em Portugal? Sim, e muitas. 

O que cria, então, o fascínio pelas praias de Goa? Talvez um certo mito herdado dos primeiros hippies que para cá vieram; seguramente a vegetação envolvente, que dá um certo ar de exotismo; pelo menos na altura em que estamos, o facto de nunca estar cheia; o calor. Para terminar, talvez a barateza de tudo. Só para dar um exemplo, alugámos 4 cadeiras e toldos correspondentes e pagámos por tudo 400 rupias, algo que não chega a 7€; almoçámos com uma qualidade muito razoável num restaurante em cima da praia, e pagámos 10€ por refeição.

Goa é muito mais do que a praia, mesmo que a praia seja agradável. Mas Goa é a presença portuguesa, o Forte da Aguada, as casas com nomes de costa e pereira e botelho e dias. A rua chamada Conde de Redondo, o bairro chamado Penha de França. São as casas coloniais portuguesas estragadas do bairro das Fontainhas, as casas coloniais portuguesas bem conservadas do bairro do Altinho. Vir a Goa é vir a um Portugal diferente e por isso é que é tão fascinante. 

Vir à praia de Goa é um fait-divers, mesmo que se tenham tomado vários banhos bons.

JdB

PS: Como curiosidade, uma das lojas de praia é propriedade de Jade, uma das filhas de Mick Jaegger, que fotografei a almoçar ao nosso lado. Vale a pena vir a Goa vê-la? Nem por isso, embora pareça boa rapariga...









  

30 janeiro 2017

Goa vista por um telemóvel

30 de Janeiro de 2017, 09.03 hora local

Caminho marítimo para a índia (IV)

Chegámos ontem ao fim da tarde a Goa, após uma viagem de avião de cerca de duas horas e meia, viagem essa carregada de ruídos de crianças e de indianos a falarem alto, a empurrarem a nossa cadeira com os pés, a incomodarem o sossego alheio. 

Não tenho ainda quase nada para contar de Goa, que chegámos de noite, a tempo de nos instalarmos num fantástico hotel (Vivanta by Taj) e jantarmos num restaurante próximo - caril goês, substancialmente diferente do caril de Deli. Na viagem de carro vemos casas portuguesas, nomes portugueses, arquitectura portuguesa e colonial. 


Lembrei-me de uma conversa que tive num almoço há poucos dias. Dizia-me uma amiga que já havia vindo duas ou três vezes à India: nunca fui a Goa. Fulano (penso que um organizador amigo) diz-me que se é para ver igrejas portuguesas mais vale ficar em Lisboa. Podia dizer que a frase tem graça, mas nem isso tem. O interesse de Goa reside exactamente no facto de, a milhares e milhares de quilómetros de distância, haver uma presença portuguesa tão forte. Sento isso mesmo quando estive em Ouro Preto, Congonhas, Mariana, cidades do interior brasileiro. Estava-se em Portugal, num misto de Alentejo e de bairro popular.

Amanhã tentarei colocar mais fotografias de Goa. Para já fica o caos de Deli. 



JdB


29 janeiro 2017

4º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mt 5,1-12

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus

Naquele tempo,
ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se.
Rodearam-n’O os discípulos
e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
«Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os humildes,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa,
vos insultarem, vos perseguirem
e, mentindo, disserem todo o mal contra vós.
Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos Céus a vossa recompensa».

Caminho marítimo para a Índia (III)

Ontem escrevi sobre NOVA DelI. Hoje escrevo sobre a VELHA Deli. E sim,  as maiúsculas são propositadas, até porque não falamos da mesma realidade. A Lisboa da Avenida João XXI é a Lisboa da Graça? Não será, pelo que Nova Deli e Velha Deli também não são iguais.



Velha Deli é fotogénica. Tem cantos, pormenores, imagens paradas que reflectem o caos sonoro e o movimento incessante. Fazer 200 metros de rickshaw pode corresponder a uma viagem de 15 minutos acompanhada de gritos em hindu e de buzinas potentes. Ninguém se atropela nem se insulta; não há batidas e a condução de veículos como do tipo em que circulamos - um atrelado puxado esforçadamente por um local bem disposto de bicicleta ou a pé - ou de um carro ou de uma moto, é um exercício de perícia. Por outro lado, há uma solidariedade nesta condução que encerra um misto de simpatia e necessidade de sobrevivência: não se conseguiria circular se não houvesse esta cumplicidade circulativa, vislumbrada pelos gritos de alerta aos quais se responde com outro grito de alerta, pelas manobras engenhosas para ultrapassar um carro engarrafado.

Estivemos ontem em Velha Deli. Embora o boletim meteorológico previsse céu limpo, havia uma neblina no ar que mais não era do que uma poeira fina de poluição poeirenta, que se agarra ao cabelo, à pele, à roupa. Não se cheira, mas sente-se.



Fora isso, Velha Deli é o caos (que em em grego significa abismo): a porcaria, a desorganização, o trânsito infernal, o ruído, as pessoas coladas uma às outras por falta de espaço, o desrespeito pacífico pelas vias de circulação. Mas Velha Deli tem encanto, tem graça, tem repulsa, suscita um prazer ou um ódio óbvios e imediatos - Velha Deli? Ame-a ou deixe-a... Nova Deli e Velha Deli têm semelhanças retratadas na frase anterior: a confusão, a porcaria, o desrespeito. Mas a Velha Deli tem um encanto fotogénico que apetece repetir demoradamente pelos corredores onde se vende de tudo.


Qual o cheiro de Deli - a velha ou a nova? Ainda não sei. Qual a cor? Talvez a das especiarias retratadas acima, ou das flores, mais abaixo.

JdB





   

28 janeiro 2017

Pensamentos Impensados

No restaurante
Não fosse o prato de peixe estar bem quente, eu diria que o peixe era muito fresquinho.

Pelo menos
Pode dizer-se ao careca siga as instruções à risca?

Puizia
O poema Menino de Sua Mãe foi dedicado a Adão.

Ponto mais acidente
Era um menino tão traquinas que deu cabo da roca.

Novas tecnologias
Para acabar com choques frontais, sugere-se a criação de carros esféricos.

Espécies
Os políticos são animais de lastimação.

Ismos
Machismo e feminismo são exactamente a mesma coisa: vai tudo dar ao mesmo - a mulher.

Cabecinhas
Os Árabes inventaram o zero, Celsius inventou o abaixo de zero.

SdB (I)

Caminho marítimo para a Índia (II)

De Lisboa perguntam-me: que cor tem a Índia? Qual o cheiro da Índia? A resposta é: ainda não sei. Sei que quando cheguei a Harare percebi qual era, para mim, o sentido dominante: a visão. E com os olhos eu via uma cor que se sobrepunha a tudo: cores secas, castanhas, verdes escuras, talvez. E via a lonjura, o espaço sem fim, o caminho até ao fim da curva do horizonte. Fui a primeira vez, talvez, que verbalizei uma sensação dominante relativamente a uma cidade.



Ontem fomos passear a Nova Deli. O que é o cheiro dominante? Não sei, talvez não haja. O que é a cor dominante? Não sei, talvez não haja. O que é dominante em Nova Deli? O caos. Há uma multidão de gente na rua, uma multidão de carros na estrada. Gente em circulação sem parar, carros que não respeitam semáforos, traços contínuos, que buzinam sempre que aceleram ou sempre que travam, que constituem uma quarta faixa apertada em estradas onde só há três, que contornam um atrelado deixado na berma de uma via rápida (enfim, nada é muito rápido...). Há gente que buzina porque o semáforo está verde, porque está encarnado, porque se está parado ou a andar. 


Noutro sentido, que comprova um pouco do que estou a dizer, Nova Deli não é uma cidade fotogénica. Isto é, é uma cidade onde, para além de uma alameda muito larga ladeada de bonitos edifícios e onde circulam paradas militares, nada há que justifique uma fotografia: não há uma esquina bonita, uma praça onde o sol bate de raspão, um renque de lojas finas numa arcada ligeiramente assimétrica, uma luz mortiça que ilumina uma estátua. Não há um pormenor que justifique uma fotografia, um ângulo interessante, um zoom revelador. Nova Deli é uma cidade para ser filmada, não para ser fotografada - há movimento, ruído, migração permanente de pessoas e carros. Se é uma cidade bonita? Não, não é. Muito pelo contrário.

JdB   


27 janeiro 2017

Caminho marítimo para a Índia (I)


Chegámos à Índia de 4ª para 5ª feira. Da viagem de avião falarei outro dia, que agora o assunto é mais sério. À chegada à embaixada, onde ficaremos, uma simpatia da filha de uma funcionária, dando-nos as boas vindas ao seu País.

O dia de ontem foi dedicado à visita à Cankids, uma organização que se dedica às crianças com cancro. Tinha falado nisso à Poonam Bagai, directora geral da associação, com quem me cruzara em Outubro. Como se celebrava o dia da República, data muito importante no País, decidiram ter a amabilidade de me "eleger" convidado de honra. O alinhamento era este:

Program Schedule
2:30 PM- Welcome Ceremony
2:40 PM- Flag Hoisting & National Anthem
3:00 PM- Welcome speech By Ms. Pranita Singhal (Sr. Manager, Non-Formal Education)
3:10 PM - About India- By a Akash, 10 Year old who is fighting with Osteo Sarcoma.
3:15 PM - Slogans
3:30 PM - Dance Performance By Child with Cancer
3:40 PM - Nukkad / Flashmob Performance By KidsCan Konnect (Survivor Group Cankids)
3:50 PM - About Cankids By Ms. Poonam Bagai (Chairman-Cankkids...Kidscan)
4:00 PM - Few Words by Guest of Honour.
4:15 PM - All attendees sing a song "We are One"
4:20 PM - Thank you Speech & Thank You card By children to Guest of Honour
4:25 PM - High Tea


Visitar uma associação que se dedica às crianças com cancro não é só ver o drama de crianças e pais. É ver, como já tinha visto de alguma forma no Zimbabwe, uma realidade não europeia e, com isso, pormos algumas coisas em perspectiva: a falta de dinheiro para as crianças fazerem tratamentos, a enorme falta de escolaridade, um trânsito caótico, uma miséria muito generalizada, o apoio psicológico de um técnico para dezenas e dezenas de miúdos. Perante isto, as queixas persistentes quanto à ineficiência do nosso sistema nacional de saúde caiem um pouco pela base. Visitar a realidade de Nova Deli é conhecer um mundo que não é o nosso.  Nos dois andares de cima deste edifício onde tudo se passou (uma casa modesta, para os standards portugueses) uma zona de cuidados paliativos. Não me parece que seja preciso dizer mais nada relativamente a esta "cobertura" que, nalguns casos, tem a virtude de estar mais próxima do Céu.


Fora as especificidades indianas, o mundo da Cankids é igual ao mundo da Acreditar - as crianças com o mesmo olhar ingénuo, os sobreviventes carregados de confiança e vontade de ser a prova viva de que se consegue vencer a doença, os pais tristes, esperançados, lutadores até ao fim, os profissionais e voluntários (a organização tem 45 centros espalhados pela Índia, 400 profissionais) com uma dedicação que provoca admiração e espanto. Depois, na tapeçaria que é a oncologia pediátrica, o preenchimento dos espaços onde há vácuo porque ninguém lá vai: uma ajuda espiritual ou financeira, uma exame que se oferece porque demoraria quatro meses, uma prótese que facilita o andar, uma cadeira de rodas, um tapete onde todos se reunem para fazer frente à agressividade dos hospitais e dos tratamentos e da incerteza quanto ao futuro. 


Volto nos próximos dias, com crónicas mais animadas do que esta. Domingo seguimos para Goa.

JdB

26 janeiro 2017

Movimentos dos dias que correm



(PODERÁ ASSINAR A PETIÇÃO AQUI)
http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=acordoortografico90


A Língua é um património valioso e um instrumento determinante para a afirmação dos povos e das suas culturas, porque é através dela que exprimem a sua identidade e as suas diferenças. Tal como a espontaneidade da vida e dos costumes de cada povo, a Língua é um elemento vivo, e não pode, por isso, ser prisioneira de imposições do poder político, que limitam a sua criatividade natural. 

O “Acordo Ortográfico” de 1990 (AO90) nasceu de uma ideia imprevidente do então Primeiro-Ministro, Cavaco Silva, a pretexto de “unificar” “as duas ortografias oficiais” do Português (sic) - alegadamente para evitar que o Português de Portugal se tornasse uma “língua residual”(!) -, e de “simplificar” a escrita. Na realidade, o que fez foi abrir uma caixa de Pandora e criar um monstro. O AO90 — a que os sucessivos Governos, com uma alegre inconsciência, foram dando execução —, é um fiasco político, linguístico, social, cultural, jurídico e económico. 

O processo de entrada em vigor do AO90 nos Estados lusófonos começou por ser um golpe político: o AO90 teria de ser ratificado por todos os Estados. Mas Angola e Moçambique, os dois maiores Países de língua portuguesa a seguir ao Brasil, nunca o ratificaram. E, dos restantes países, só três o mandaram “aplicar” obrigatoriamente: Portugal, a partir de 2011-2012; Cabo Verde, a partir de 2014-2015; e o Brasil, a partir de 2016. 

“O que nasce torto, tarde ou nunca se endireita”. Foi o que aconteceu com o AO90: os efeitos que produziu foram exactamente o contrário do que se pretendeu. 

Senão vejamos: o princípio que presidiu ao AO90 foi o de que a ortografia deveria ser determinada pelo alegado “critério da pronúncia” (?!), o que gerou aberrações da maior gravidade, de que damos apenas alguns exemplos:

Ao pretender eliminar as consoantes “mudas”, o AO90 criou arbitrariamente centenas de lemas (entradas de Dicionário), até aí inexistentes em qualquer das ortografias (portuguesa ou brasileira): “conceção”, por “concepção”; “receção”, por “recepção”, “espetador” por “espectador” — o que criou confusões semânticas, como, por exemplo, “conceção de crédito”, “receção económica” ou “espetador de cinema”. 
No entanto, pela mesma lógica, o AO90 deveria começar por cortar a mais “muda” de todas as consoantes: o “h” inicial. O que não fez. 
Estabeleceu 17 normas que instituem duplas grafias ou facultatividades, assentando num critério que se pretende de acordo com as “pronúncias” (?!): “corrupto” e “corruto”, “ruptura” e “rutura”; “peremptório” e “perentório”. 
“Óptico” (relativo aos olhos), com a supressão da consoante “muda” “p”, passou a “ótico” (relativo aos ouvidos), o que cria a confusão total entre os Especialistas e o público, que deixam de saber a que órgão do corpo humano nos estamos a referir! 
Em Portugal, a eliminação sem critério das consoantes “c” e “p”, ditas “mudas”, afasta as ortografias do Português europeu e do Brasil (quando o que se pretendia era aproximá-las), criou desagregações nas famílias de algumas palavras e provoca insólitas incoerências: passou a escrever-se “Egito”, mas “egípcios”; produtos “lácteos”, mas “laticínios”; os “epiléticos” sofrem de “epilepsia”; um “convector” opera de modo “convetivo”; o “interrutor” produz uma “interrupção”. 
O facto de as facultatividades serem ilimitadas territorialmente (por exemplo, “contacto” e “contato”; “aritmética” e “arimética”) conduz a uma multiplicação gráfica caótica: por exemplo, o Curso universitário de “Electrónica e Electrotecnia” pode ser grafado com 32 combinações diferentes; o que é manifestamente absurdo. 
A confusão maior surgiu entre a população que se viu obrigada a ter de “aplicar” o AO90, e passou a cortar “cês” e “pês” a eito, o que levou ao aparecimento de erros, tais como: “batérias”, “impatos”, “ténicas”, “fição”; “adatação”, “atidão”, “abruto”, “adeto”; “exeto” (por “excepto”); para além de cortarem outras consoantes, como, por exemplo, o “b” em “ojeção”, ou o “g” em “dianóstico”. 
No uso de maiúsculas e minúsculas, o caos abunda; “Rua de Santo António” pode escrever-se de quatro formas: também “rua de Santo António”, “rua de santo António” ou “Rua de santo António” (se acrescentarmos as 4 do Brasil, com “Antônio”, dá um total de 8 formas possíveis (!)). 
O AO90 prescreve ou elimina o uso do hífen de forma totalmente caótica. Vejamos alguns exemplos: “guarda-chuva”, mas “mandachuva”; “cor-de-rosa”, mas “cor de laranja”; zona “infantojuvenil”, mas “materno-infantil”; e aberrações como “cocolateral”, “cocomandante”, “-vegante”, “corréu”, “coutente”, “semirreta”. 
Entre outras arbitrariedades, a supressão do acento agudo cria situações caricatas. A expressão popular: “Alto e pára o baile”, na grafia do AO90 (“Alto e para o baile”) dá origem a leituras contraditórias. A frase “Não me pélo pelo pêlo de quem pára para resistir” fica, com o AO90, escrita deste modo: “Não me pelo pelo pelo de quem para para resistir” — o que é incompreensível, seja qual for o contexto. 
Em contrapartida, para “compensar” o desaparecimento da consoante "muda" e evitar o “fechamento” da vogal anterior, imposto pelo AO90, na escrita corrente, surgem aberrações espontâneas como a colocação de acentos fora da sílaba tónica: “correção” escrito “corréção”; “espetaculo” corrigido para “espétaculo” ou mesmo “letivo” que passa a “létivo”! 

Em suma, com este caos (orto)gráfico, como se poderão “ensinar” as crianças a escrever Português? 
Mas há mais: o AO90 não incide sobre os factores de divergência da linguagem escrita entre Portugal e o Brasil, nas quais existem diferenças lexicais (fato – terno; autocarro – ônibus; comboio - trem), sintácticas (tu – você) e semânticas (palavras com sentidos diferentes: camisola, por exemplo, que, no Brasil, significa “camisa de dormir”). Estamos perante diferenças atávicas que caracterizam as duas variantes do Português e que não se alteram por decreto. 

O caos na grafia grassa nos vários dicionários, correctores e conversores. Com estas ferramentas discrepantes, os utilizadores da Língua Portuguesa, que já têm dificuldade em “aplicar” o “Acordo”, ficam ainda mais confusos e instáveis. Hoje, ninguém sabe escrever Português com o “Acordo”. 

Sejamos claros: a diversidade ortográfica — entre apenas duas variantes do Português: o de Portugal e o do Brasil — nunca foi obstáculo à comunicação entre os diversos povos de Língua portuguesa; como nunca foi razão de empobrecimento, mas, pelo contrário, uma afirmação da pujança da nossa Língua; o que, aliás, faz dela uma das mais escritas e utilizadas do Mundo. O Inglês tem 18 variantes, e não deixa por isso de ser a principal língua internacional; o Francês tem 15 e o Castelhano, 21. 

Por outro lado, as “aplicações” do AO90 afastam o Português padrão das principais Línguas internacionais, o que só traz desvantagens em termos etimológicos, de globalização e de aprendizagem dessas línguas estrangeiras, em relação às quais não temos qualquer vantagem em nos afastar. Por exemplo, a palavra “actor”: em todas as línguas, como a nossa, em que a palavra é de raiz latina, escreve-se “actor” com c ou k (excepto em Italiano, mas em que se escreve com duplo tt, que tem idêntica função de abrir a vogal “a”). 

É caso para dizer que “foi pior a emenda que o soneto”. 

Mas o AO90 é também um lamentável exemplo da forma como o Estado abusou do seu poder. A “Nota Explicativa” contém erros crassos, falácias e falsidades. Mais grave, nunca foi promovida qualquer discussão pública sobre o AO90. Em 2005, foram emitidos 25 Pareceres negativos por parte de Especialistas e de entidades consultadas. Porém, esses documentos foram ocultados. Todo o processo do AO90, culminando com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, é um péssimo exemplo de falta de transparência, inadmissível num Estado de Direito democrático (artigos 2.º e 48.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa). 

Por sua vez, o AO90 dividiu a sociedade e as gerações, ao impor uma forma de escrita nas escolas, Universidades, instituições do Estado e da sociedade civil — enquanto a esmagadora maioria dos Portugueses continua a escrever com o Português pré-AO90. 

A maioria dos escritores lusófonos, muitos dos professores, dos tradutores e da Comunidade científica têm manifestado a sua repugnância em acatar o “Acordo”. Mesmo o grande número dos que acatam o AO90, por convicção, pragmatismo, inércia, subserviência, ou porque são obrigados a obedecer-lhe, na realidade, escrevem em Português normal, e limitam-se a deixar que os textos sejam depois adaptados pelos correctores ou revisores.

Finalmente, no domínio jurídico, há vários atropelos que devem ser denunciados. Desde logo, o “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, para entrar em vigor, deveria ter sido ratificado por unanimidade, e não apenas por 3 Estados, como sucedeu. 

Por outro lado, o AO90 é inconstitucional, porque o Estado não pode programar a cultura e a educação segundo quaisquer directrizes estéticas, políticas ou ideológicas (artigo 43.º, n. 2, da Constituição). E viola também o dever de defesa e de preservação do nosso património cultural (artigo 78.º, n.º 1). 

Em suma, o AO90 teve os efeitos exactamente opostos aos que se propunha: não uniu, não unificou, não simplificou. É um fracasso político, linguístico, social, cultural e jurídico. E é também um fracasso económico, pois, ao contrário do que apregoou, não fez vender mais nem facilitou a circulação de livros. Pelo contrário: as vendas caíram. O Português pré-AO90 continua a ser a ortografia utilizada nos dois Países luso-escreventes mais populosos (logo a seguir ao Brasil): Angola e Moçambique; o que obriga a duas edições de livros e de manuais escolares por parte das Editoras: uma com e outra sem o AO90. 

A Língua é o instrumento decisivo da formação das crianças e dos jovens. Não podemos permitir que o arbítrio de decisões erradas seja transmitido às gerações futuras, de que somos cuidadores, separando filhos e pais, muitos dos quais escrevem hoje com ortografias diferentes. 

Em 18 de Maio de 1991, durante a discussão no Parlamento sobre o “Acordo Ortográfico”, o Deputado Jorge Lemos declarou, profeticamente: “O acordo é inútil, ineficaz, secretista, prepotente, irrealista, infundamentado, desnecessário, irresponsável, prejudicial, gerador de instabilidade e inoportuno. (…) Por isso, Sr. Presidente e Srs. Deputados, este texto que nos foi distribuído, como sendo o texto do Acordo, só pode ter uma solução: ser rasgado.” E, perante a Assembleia, passou das palavras aos actos — e rasgou-o. 

25 anos depois, é mais do que tempo de lhe seguirmos o exemplo. 

Em suma, peticionamos a desvinculação da República Portuguesa do Tratado do “Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa” de 1990, bem como do 1.º e do 2.º Protocolos Modificativos ao AO90 (ou, subsidiariamente, no mínimo, a suspensão do Tratado e Protocolos Modificativos por tempo indeterminado). 

Requeremos também a revogação imediata da Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, de 25 de Janeiro, com efeitos retroactivos, apagando os efeitos inconstitucionais e, por isso, nulos, que produziu iniquamente. 

Nota: Adira ao Grupo do Facebook «Cidadãos contra o “Acordo Ortográfico” de 1990», em https://www.facebook.com/groups/acordoortograficocidadaoscontraao90/ 

Lisboa, 23 de Janeiro de 2017 

25 janeiro 2017

Duas Últimas

Terence “Snowy” White, um guitarrista inglês nascido no final dos anos 40 do século passado, é um nome que dizia pouco a quem, como eu, tem dos blues e do rock em geral um conhecimento pouco profundo. 

No entanto, comprovei ultimamente (é óptimo fazer estas descobertas) que se trata de um excelente executante, que viveu nos tempos áureos na sombra de grandes grupos, como os Pink Floyd – com quem aliás colaborou, quer em termos do colectivo, quer individualmente (Wright e Waters) – mas que nem por isso deixou de medrar para lá da mediania, como uma pesquisa na net pode facilmente confirmar.

Deixo-vos com duas músicas que atestam os dons com que foi bafejado e/ou que soube desenvolver.

Espero que também apreciem.

fq 



24 janeiro 2017

Vai um gin do Peter’s?

Hannah Arendt é, certamente, a filósofa mais citada do século XX, despertando paixões e ódios descontrolados. Quem não conhece a célebre caracterização dos totalitarismos como a «banalidade do mal»? Não por ser um mal banal, mas por se ter imiscuído na normalidade, convertendo-se na norma generalizada da sociedade. Aí reside a sua perversão, de contornos mais hediondos do que aquele mal do antigamente, distinto da normalidade até por reivindicar, geralmente, um estatuto de superioridade. Sob a aparência da banalidade, a mentira instalou-se rapidamente, invertendo os valores mais elementares. A obediência tornou-se num valor supremo e ilimitado, com as consequências nefastas que se conhecem.  

É sobre a audácia desta filósofa e teórica da política que a realizadora israelita, Ada Ushpiz – munida de igual ousadia – lhe dedica o documentário «Vida Activa: o Espírito de Hannah Arendt» (1). Somos levados a acompanhar o nexo do pensamento de Arendt para clarificar a densidade das suas ideias e confirmar a actualidade da sua reflexão. De certo modo, aprofunda a película dedicada à filósofa pela realizadora alemã Margaretha von Trotta (tema do gin de 11 de Novembro de 2013). 



Assistimos a excertos de entrevistas, uma dada à televisão alemã ocidental (em 1964, creio) e outra datada de 1973, intercaladas pelas intervenções de académicos e políticos a discorrer sobre a doutrina de Hannah, além de imagens de arquivo da Segunda Guerra e do julgamento de Eichmann. O grande desafio de Ada corresponde ao esforço de tornar perceptível o circuito mental de Hannah, revendo os factos que a impressionaram e lhe terão revelado a existência dos novos conceitos que cunhou. O julgamento do arquitecto da Solução Final para extermínio dos judeus é dos acontecimentos mais pródigos na construção do corpo doutrinário da filósofa. 

O filme acaba por oferecer uma súmula espantosa do seu ideário, estribada nos episódios que Arendt cita para ilustrar a sua perspectiva inovadora sobre a história e a chegada ao poder de regimes iníquos. Observados à distância, resulta incompreensível o sucesso desses totalitarismos demenciais e homicidas. Daí a importância em denunciar os contextos que favorecem o seu surgimento e a sua inexplicável popularidade até à conquista absoluta do poder. Infelizmente, é muito mais fácil do que gostaríamos. Hannah aponta como factor-chave o fluxo desregrado de refugiados após a Guerra de 1914-1918. Face àquelas multidões tornadas infra-humanas, tinha-se quebrado a primeira barreira moral de não reconhecimento da plena dignidade de determinado segmento da população. Uma vez despoletado o processo de transgressão, qual brecha num dique, fora depois uma questão de tempo reduzir mais gente ao estatuto de pária. Nas suas palavras: «Evil […] seems to be closely connected with the invention of a system in which all men are equally superfluous […] The dangers of the corpse factories and holes of oblivion is that today, masses of people are continually rendered superfluous when we continue to think of our world in utility terms rather than in terms of a common world, shared by all […] Totalitarian solutions may well survive the fall of totalitarian regimes in the form of a strong temptation which will come up whenever it seems impossible to alleviate political, social, or economic misery in a manner worthy of man.»    

Acompanhando as grandes etapas da vida de Arendt, que se considerava uma refugiada (2), ouvimos o relato de uma atitude marcante da mãe sobre a dignidade de cada ser humano, a exigir uma vigilância rigorosa e ininterrupta. Ainda na pré-primária, dera-lhe ordem para abandonar a sala de aula sempre que um colega fosse ofendido por ser judeu. Em seguida, a mãe enviava uma carta de protesto ao Conselho Directivo, enquanto a pequena Hannah se deliciava com este pretexto para faltar à escola. Contou isto a rir, numa das entrevistas, embora reconhecesse o alcance pedagógico daquele exemplo, que teve mais efeito nela do que nos dirigentes da escola.  

Porém, nem sempre primou pela coerência nem pela racionalidade. O documentário não se esquiva à relação demasiado próxima com o mestre e partidário do nacional-socialismo – Martin Heidegger. Décadas depois da guerra, Hannah continua a visitá-lo e responde à reprovação de uma sobrinha (que o explica no filme), assumindo que alguns comportamentos escapam à razão. Do seu lado, também sofreu traições (a começar pelos 2 maridos) e ataques ferozes, perdendo grande parte dos amigos.  O modo independente com que defendeu as suas convicções, sem integrar nenhuma escola de pensamento nem alinhar com as ideologias da moda, colocou-a num limbo desconfortável, terra de ninguém. Acabava por ser demasiado atípica: revolucionária nas ideias, mas recusando a revolução armada dos anos 50 e 60.

Outro pensamento da filósofa judia, que clarifica a sua posição anti-revoluções:  «A violência é capaz de destruir o poder, mas nunca de substituí-lo» 

Curiosamente, Hannah não tinha total consciência do efeito das suas palavras, expressivas de um pensamento muito livre. Demasiado? De uma racionalidade acutilante e animada pelo tal sentido de dignidade do ser humano, ultrapassavam-na as manigâncias da maioria que se acomoda ao poder vigente, preferindo o conforto de uma sobrevivência ao sabor dos ventos dominantes. Não antecipou, por exemplo, o efeito incendiário da sua reportagem para a revista New Yorker sobre o julgamento de Eichmann (1960s). Começara logo por não valorizar o facto de a sua perspectiva mais objectiva sobre o processo decorrido no tribunal de Jerusalém estar nos antípodas da do público que, ao seu lado, se inflamava e projectava naquele homem os traumas horrendos causados pela guerra. Como lhe dizia o marido (o segundo): tinha um lado naïve, que não lhe permitia antever as fúrias que muitas das suas teorias políticas desencadearam, mal conheceram a luz do dia. Vivia na ilusão de que bastaria ter um olhar discernido e desvendar a verdade total, quase sempre, até doer, sem cuidar de não ferir as inúmeras susceptibilidades e preconceitos que também as vítimas tinham acumulado.

Acabou por sofrer na pele a ostracização acintosa dos mais próximos, que não souberam compreender o alcance das suas ideias revolucionárias. Menos ainda de tolerar a dureza gélida do seu ferrão crítico, apesar de certeiro (a mais das vezes) e de manifesta honestidade intelectual. Só que nem sempre foi verbalizado de forma calibrada. Ao invés, sobressaia a leitura mais extremada. Como nunca a dor a fez travar nas suas incursões intelectuais e políticas, nem percebia que os outros preferiam ser poupados a uma verdade posta a nu, com as fraquezas escancaradas, tantos dos algozes (as únicas expectáveis) como das vítimas. Sim, do lado destas também houvera comportamentos reprováveis. Quantos sobreviventes protagonizaram faltas repugnantes, que doem até ao fundo da alma?

Se, por um lado, arrasou todos os totalitarismos e alertou a sua geração para as causas do novo patamar de mal que os campos de extermínio do Reich tinham inaugurado, foi também q.b. dura com os Conselhos Judaicos, a quem os nazis incumbiram da tarefa mesquinha de preencher os nomes dos compatriotas judeus a abater, impedir as fugas durante a viagem até Auschwitz – tarefa cumprida com um zelo repugnante –, atirar os mortos para as valas comuns que abriam e depois fechavam, etc.
No documentário de Ava vêem-se esses esbirros a maltratar os seus irmãos judeus com a brutalidade dos cobardes. Essas curta-metragens de arquivo tinham sido filmes de propaganda alemães, percebendo-se a intenção de provar a facilidade com que angariaram  traidores façanhudos junto do povo perseguido, para evidenciar as alegadas debilidades étnicas. 

Ciclicamente, surge no filme um ecrã negro, comparável à ardósia da sala de aula do século XX, sobre o qual letras brancas são gravadas ao ritmo do batuque da velha máquina de escrever em que Arendt terá fixado os seus pensamentos mais emblemáticos. Por exemplo, sobre a necessidade de pensar afirmou: “To think always means to think in a critical manner […] every thought actually undermines whatever there is of rigid rules, general convictions […] That means there are no dangerous thoughts, because thinking in itself is such a dangerous enterprise». Ainda assim, o maior perigo para Hannah seria abster-se de pensar. Explicava ainda que este exercício implica pausa e citava a expressão idiomática inglesa: pare para pensar. Transpondo para o presente, alertava para o frenesim da vida hodierna, impeditiva do raciocínio, i.e., da capacidade de avaliação da realidade circundante. 

Sobre o perdão e a reconciliação, Hannah tece considerações estranhas ao olhar cristão, reduzindo-os a uma escala meramente psicológica, dependente da habilidade no convívio social. Perdoar fica-se por um reconhecimento de que também a vítima poderia ter cometido a mesma falta. Um conceito empobrecido, que limita o perdão ao denominador comum, em matéria de fraquezas, entre prevaricador e ofendido, segundo o entendimento de cada um. 

Em Hannah e na realizadora, ambas formadas em filosofia, há um esforço de isenção para combater o preconceito em que muitos dos seus compatriotas se entrincheiraram, atribuindo ao anti-semitismo todos os males de que padeceram ao longo dos séculos. Ambas ousam opor-se a tal vitimização e simplificação desresponsabilizante da história. 

Mais, o documentário aplica o corajoso conselho da filósofa alemã sobre a necessidade de aceitar e cultivar a pluralidade de perspectivas individuais, para permitir uma leitura enriquecida sobre a vida. Dizia Arendt: «Só quando as coisas podem ser observadas por muitas pessoas, numa variedade de aspectos, de modo a que os diferentes observadores saibam que vêem o mesmo mas com a mais completa diversidade de visões, pode a realidade manifestar-se de maneira real e fidedigna.» (in «A Condição Humana»)



Vale a pena reaprender com Hannah a desmontar os chavões instalados, que condicionam a forma de percepcionar e interpretar a realidade. No decurso do documentário, o desafio vai em crescendo, no sentido de recuperarmos a lucidez e a serenidade reflexiva para identificar «the Banality of Evil in the world today». Matéria de observação não falta, no meio de tanta turbulência e campanhas orquestradas por uns e por outros. 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________
(1) FICHA TÉCNICA  

Título original: Vita Activa: the spirit of Hannah Arendt
Título traduzido em Portugal: Vida Activa: o espírito de Hannah Arendt
Realização: Ada Ushpiz
Argumento: Ada Ushpiz
Produzido por: Ida Fishmann, coadjuvada por Edva Goldschmidt, Ada Ushpiz
Fotografia:
Banda Sonora: John Wilson (música original)
Duração: 125 min.
Ano:       2015
Países: Israel e Canadá.
        Elenco:
a própria Hannah Arendt, a sobrinha, 
Académicos e filósofos como Leon Botstein e
Judith Butler; Richard Bernstein e diversos judeus. 
Em imagens de arquivo: Adolf Eichmann, Martin Heidegger, etc.
Alison Darcy – voz off de H.Arendt

Locais das filmagens: Por onde Hannah A. passou: Nova Iorque, Alemanha, Israel, Paris. 

(2) Nascida na Alemanha, de família judia, a perseguição da Gestapo levou-a a fugir para Paris, em 1933 e daí para os EUA, em 1940, já com o segundo marido – um alemão comunista, depois de escapar de um campo de refugiados para onde fora encaminhada, nas vésperas de Hitler tomar Paris. 




23 janeiro 2017

Na morte de Alberto da Ponte

SMS recebido ontem de mão amiga informava-me do previsível: morrera Alberto da Ponte. 

Não acrescento nada ao que os jornais informarão relativamente à sua biografia - onde se formara, por onde estudara, que cargos ocupara e quando, a polémica em que se vira envolvido enquanto presidente da RTP.  Esses pormenores da sua vida, vou ser franco e talvez bruto, importam-me pouco. O que quero lembrar é o homem Alberto da Ponte, que parece ser indissociável do gestor Alberto da Ponte. Mas o gestor que ele era devia-se ao homem que ele era, porque somos gente antes de sermos médicos, engenheiros, advogados.

A minha vida profissional é marcada pela minha passagem pelo mundo da Unilever, em Portugal numa parceria com o grupo Jerónimo Martins, e que daria origem (quando entrei, em 1986) à Fima - Lever - Iglo.  Em meados / fim dos anos 90 (não me lembro exactamente quando, e isso é irrelevante) cruzo-me com Alberto da Ponte, então director-geral da Lever, onde eu trabalhava na altura. Entre mim e ele há, na cadeia hierárquica, o Engenheiro José Tapada, também desaparecido prematuramente, que me vem a ensinar tudo o que sei - não a fazer planos de negócio nem a calcular eficiências, mas a lidar com as pessoas. No fundo, a tratar as pessoas como pessoas. E a fazer disso uma prática, não uma missão oca escrita a negrito numa folha de papel.

São tempos de crescimento mas, acima de tudo, são tempos éticos. No Dr. Alberto da Ponte, com quem nunca trabalhei directamente, há uma genialidade de gestor visionário, um entusiasmo contagiante no marketing, nas vendas. Há ainda uma simpatia e uma correcção que não são independentes de um discurso desafiante, de total incentivo e desinstalação. Mas há, acima de tudo o que já está acima de tudo, uma ética que se vê, se intui, se palpa. Uma educação e uma correcção que seriam incompatíveis com os tempos que se viveriam a seguir e que eu também vivi em 2003, 2004, 2005. Tempos pautados por um enorme desrespeito e desconsideração por parte da administração do Grupo que, apoiada numa direcção de recursos humanos que viria a ser descapitalizada de gente boa, como era o meu amigo João Silva, despede e trata profissionais valorosos e dedicados de uma forma que envergonha. 

(Um destes dias, a mesma mão amiga que me informa da morte do Dr. Alberto da Ponte menciona o clima iníquo que se vive na empresa onde trabalha, clima esse marcado, recentemente, por mais uma onda de despedimentos feitos de forma violenta e incorrecta.)

Lembrar o Dr. Alberto da Ponte não é lembrar apenas o Dr. Alberto da Ponte na sua competência e desejo absoluto de crescimento da empresa que servia, mas é lembrar uma época que não voltará. Não só porque ele morreu, o Engenheiro José Tapada morreu, outros desapareceram, mas porque o discurso da época morreu, a prática da época morreu. Podemos sempre questionar-nos como seriam estas pessoas em tempos de crise, de decréscimo, de necessidade de assegurar as margens. Seriam as mesmas pessoas? Sim, seriam, porque conheci outros profissionais que mantiveram uma educação profissional acima da canalhice vigente e que, também por causa disso, foram descartados. Porém, da boca deles nunca saiu uma palavra de traição ou de abandono.  

Não vivemos tempos bons. Vivemos tempos de selvajaria profissional, de abusos e de exageros, de desconsideração pelas mais elementares regras do civismo e da convivialidade numa empresa. Os salários são baixos, as pressões muitas, a dedicação e competência pouco recompensadas, a insegurança escrita em maiúsculas no recibo de ordenado. Com a morte do Dr. Alberto da Ponte (irreparável para a família e amigos mais próximos) não morre nada, apenas a lembrança de uma época boa, porque povoada de gente boa. Como ele. 

JdB   
  

22 janeiro 2017

No Patriarcado de Lisboa: Solenidade de S. Vicente, Padroeiro Principal

Evangelho – Mt 10, 17-22

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus apóstolos:
«Tende cuidado com os homens:
hão-de entregar-vos aos tribunais e açoitar-vos nas sinagogas.
Por minha causa, sereis levados
à presença de governadores e reis,
para dar testemunho diante deles e das nações.
Quando vos entregarem,
não vos preocupeis em saber como falar nem com o que dizer,
porque nessa altura vos será sugerido o que deveis dizer;
porque não sereis vós a falar,
mas é o Espírito do vosso Pai que falará em vós.
O irmão entregará à morte o irmão
e o pai entregará o filho.
Os filhos hão-de erguer-se contra os pais e causar-lhes a morte.
E sereis odiados por todos por causa do meu nome.
Mas aquele que perseverar até ao fim, esse será salvo».

21 janeiro 2017

Pensamentos Impensados

Gramáticas
No princípio era o verbo; os adjectivos vieram mais tarde.

Parentelas
A Ilha do Corvo é tão pequena que não há primos afastados.

Fogos
Os feelings são combustíveis, daí o arde filingue.

E não bufes
Quando o "Zé" tiver que pagar pelo BES é que vai ver como a factura é salgada.

Poderes
Um ditador é um plenipotenciário.

Degustações
Daqueles Homens que dizem, babados, aquela mulher tem corpo de sereia, fico sem saber se gostam mais de carne ou de peixe.

Higienes
Qual o sabonete mais adequado para um banho de multidão?

Ditados
Quem tudo quer tudo pede.

SdB (I)

20 janeiro 2017

Das termas




Há um poema de João de Deus, intitulado "Boas Noites", em que, segundo Miguel Tamen na conferência de ontem, nada acontece. Uma lavadeira e um caçador cruzam-se, desejam-se boas tardes, e trocam banalidades. Talvez ele não encontre a perdigueira que perdeu, talvez seja melhor procurar uma costureira (os versos só têm duas rimas, em "or" e em "eira"); despedem-se, desejando boas noites - boa noite lavadeira, boa noite caçador. Ouvido atento à conferência de ontem referiu o facto de talvez se ter passado algo, porque os versos começam com boas tardes e acabam com boas noites

O par de fotografias acima foi tirado em instantes diferentes - quantos já não me lembro. Talvez cinco minutos, dez. Em bom rigor tanto faz, porque a ordem destes factores é arbitrária. Tal como no poema de João de Deus, nada parece acontecer: umas termas ao calor do sol, pessoas que se sentam nos bancos ou nos muretes, mais ao longe, não retratado, gente que forma uma fila para beber uma água benfazeja que sai de uma fonte. Lá dentro, um mundo próprio: as dores, os chás, as refeições equilibradas, o tratamento personalizado por parte do pessoal: dona francisca, como vai o fígado? Senhor meirelas, não o via há um ano... , as vidas saudáveis, os corpos sofridos que acreditam num jacto de água que faz milagres, na ingestão de líquidos certos a horas certas para curar males da pele ou do baço ou do cólon que anda irritado. 

A ordem das fotografias é, repito, irrelevante, mas essa irrelevância pode suscitar uma multitude de interpretações em torno de dois elementos comuns e fixos - um banco e uma mulher. Há uma idosa e um senhor que não se sentam em simultâneo, embora seja óbvio que ambos têm uma relação com a senhora do casaco de cabedal e calças brancas. Quem está a mais na fotografia?

Umas termas são um micro-cosmos, porque revelam a fragilidade das pessoas: um intestino preguiçoso, uma tosse permanente, uma azia que não desaparece. Há um convite ao desabafo, ao desalento mas, também, ao elogio - que bonita que está a sua pele, dona jaquelina... Há um convite à partilha, às ausências certas para o jacto de água, para a água rica em minerais ou em sais, para a fisioterapia. E há, por fim, um convite à dúvida: vem ter comigo ao banco do pátio que a minha mãe às 16.30h tem a sua sessão de ginástica geriátrica e podemos estar sossegados. Queres que te esfregue as cruzes? Ou, no extremo quase oposto, nunca gostei do teu marido e o teu pai, que deus tenha, também não. O que vem ele cá fazer hoje? Deixa-me ir para dentro, que é hora da água sulfurosa e ao menos esse mau cheiro faz-me bem...

JdB 

19 janeiro 2017

Eventos dos dias que correm


Foi ontem. Perante uma plateia bem composta de colegas de faculdade e outras pessoas que não conhecia, declamei, a meias com um rapaz actor de teatro e com quem também me cruzei nas aulas, quatro poemas de João de Deus, um dos quais reproduzido abaixo juntamente com uma versão declamada que encontrei na net. Foi uma experiência interessante, ainda que com alguns nervos à mistura. E lembro-me de um post que escrevi há algumas semanas sobre o que nos tinha dado a idade. A mim deu-me, entre outras, esta capacidade de vencer uma vergonha e uma dificuldade de exposição.

Agradeço à Helena Miranda e ao Tomás Castro o desafio. Que tenham gostado, é o que me interessa mais.

JdB

***

O DINHEIRO

O dinheiro é tão bonito, 
Tão bonito, o maganão! 
Tem tanta graça, o maldito, 
Tem tanto chiste, o ladrão! 
O falar, fala de um modo... 
Todo ele, aquele todo... 
E elas acham-no tão guapo! 
Velhinha ou moça que veja, 
Por mais esquiva que seja, 
                            Tlim! 
                            Papo. 

E a cegueira da justiça 
Como ele a tira num ai! 
Sem lhe tocar com a pinça; 
E só dizer-lhe: «Aí vai...» 
Operação melindrosa, 
Que não é lá qualquer coisa; 
Catarata, tome conta! 
Pois não faz mais do que isto, 
Diz-me um juiz que o tem visto: 
                            Tlim! 
                            Pronta. 

Nessas espécies de exames 
Que a gente faz em rapaz, 
São milagres aos enxames 
O que aquele demo faz! 
Sem saber nem patavina 
De gramática latina, 
Quer-se um rapaz dali fora? 
Vai ele com tais falinhas, 
Tais gaifonas, tais coisinhas... 
                            Tlim! 
                            Ora... 

Aquela fisionomia 
É lábia que o demo tem! 
Mas numa secretaria 
Aí é que é vê-lo bem! 
Quando ele de grande gala, 
Entra o ministro na sala, 
Aproveita a ocasião: 
«Conhece este amigo antigo?» 
— Oh, meu tão antigo amigo! 
                            (Tlim!) 
                            Pois não! 

João de Deus


18 janeiro 2017

Pensamento Impensado

Para...lamentar

Quando apertada, a Assunção crispa-se.

SdB (I)

Oh my God!

Aqui há poucos meses fui ao lançamento do último livro da Rita Ferro. Uma vez que a sala do Palácio Foz se veio a tornar pequena para o número de convidados, muita gente ficou à porta, mesmo os que, como eu, haviam chegado com cinco minutos de atraso. Junta-se um pequeno grupo à conversa com o porteiro que, cumprindo ordens, tenta explicar o que parece ser difícil de entender - pura e simplesmente não entra mais ninguém. Ao meu lado fala-se que também não teriam querido deixado entrar o António Vitorino, um dos apresentadores do livro. Senhora ligeiramente mais velha que eu, com quem me cruzei duas ou três vezes em eventos sociais, reage indignada: não queriam deixar entrar o António Vitorino? Mas ele é deputado...

***

Faço zapping um destes dias. Num programa norte-americano, talvez com o Jimmy Fallon  (há-de ter um nome, este tipo de programas, mas não me lembro) desafiam algumas pessoas a dirigir umas frases a Michelle Obama. Fazem-no voltados para uma imagem dela num ecrã. Vi meia dúzia de intervenções: curtas, elogiosas, algumas muito elogiosas, outras de lembrança por uma contemporaneidade numa faculdade há muitos anos. Filmam Michelle Obama por trás de um cenário, que vai abrindo a boca de espanto e comoção por aquilo que as pessoas comuns dizem. Oh my God é corrente e repetido. De repente a ex-primeira dama norte americana sai de trás do cenário e coloca-se em frente desta gente comum que lhe dissera coisas elogiosas. Vale a pena ver o ar de espanto, incredulidade e surpresa. Mas, acima de tudo, vale a pena ver as caras de total e absoluto fascínio por poderem abraçar, tocar mesmo, uma senhora que viram durante oito anos numa televisão e que, de uma forma que desconheço, lhes terá tocado a vida. Todos dizem oh my God!

***

Para a senhora ao meu lado era inacreditável não terem deixado entrar o António Vitorino, que até era deputado...  Em primeiro lugar, inacreditável é a senhora não saber que ele não é há muito tempo. Em segundo lugar o que torna o António Vitorino (com excepção da sua condição de apresentador do livro) detentor de um livre acesso que eu, ou outros iguais, não teria? Por ser deputado? E isso é maios ou menos do que ser neuro-cirurgião, advogado num bom escritório ou cantor com discos de platina? Refira-se que o político socialista é um homem que me merece consideração e respeito, não me suscitando qualquer irritação, muito pelo contrário.

Não emito opiniões sobre o mérito da intervenção de Michelle Obama na vida pública norte-americana, que desconheço. Mas é sempre interessante ver este povo infantilmente fascinado com estes encontros, como se a verdadeira existência dela (ou de um lorde inglês vestido de tweed, ou de um marajá, de turbante) só fosse comprovável pelo toque humano, e esta americana ou este americano se configurassem numa espécie de povo eleito e iniciado a quem foi dado o privilégio de tocar no sobrenatural.

Talvez a senhora ao meu lado fosse americana e gostasse de abraçar a primeira-dama (que agora não há) comovendo-se numa expressão lírica: oh meu Deus...

JdB

PS: Ver, como eu vejo no iPad no remanso de minha casa, as capas das revistas sociais todas lado a lado é um exercício sociológico para uma realidade que será estudada um dia. Ali estão as pessoas a quem os americanos diriam oh my god! - os actores, as actrizes, os modelos, as histórias das telenovelas, tudo misturado como se fizesse parte da mesma realidade. São estes os heróis do nosso tempo. Como é heroína a mãe da princesa Nônô (uma criança que morreu de cancro há poucos anos, cuja vida e morte foi muito mediatizada, até por bons motivos) a indignar-se na capa de uma revista cor de rosa com o ex-marido, que já se tinha indignado, ele próprio, com a ex-mulher, porque ambos dizem o mesmo - o outro cônjuge abandonou a filha às portas da morte. Que mundo! 

17 janeiro 2017

Duas Últimas

Samuel Úria já passou por este estabelecimento trazido pelo meu querido amigo fq. Confesso, em bom rigor, que não me lembro dele... Hoje fui ouvi-lo a cantar a música abaixo e não me prendeu...

Há alguns dias cruzei-me com o o cantor num blogue onde se privilegiava, penso eu que acima de tudo, a letra da música em questão. Não havia explicação sobre a letra, um racional qualquer - ou mesmo uma emoção - por trás daqueles versos. Não investiguei mais nada, até porque não me interessava. Por vezes, como me disse uma vez pessoa que lida com a mente dos outros, uma explicação é um fosso. Não obstante, os versos dizem alguma coisa - talvez nos falem de Jesus Cristo que pouco respondeu às acusações de que era alvo. Não obstante, repito, os versos dizem alguma coisa - e talvez nos falem das respostas que damos às respostas que nos dão que são dadas como respostas às respostas. Quando damos por nós já só respondemos, ou já só falámos. 

Que lição nos dá o silêncio?

JdB



Ei-lo

Tinhas palavras para calar o mar
E até citavas quem basicamente
Esteve a citar as coisas que vinhas fazer
Mas o que é que usaste para te defenderes?
Palavras não, nem uma!

E que lição nos dás por não responderes?

Eu já lá estava pra te negar
Mas porque negaste tu próprio a missão
De te defenderes? Eu sei bem que eras capaz
No vai ou racha foste a rachar
Corpo quebrado e mudo

Mas como imitar alguém que se calou?
E que lição nos dás por não responderes?

Ei-lo, verbo antigo, a suster a voz
Pra que o copo não passasse por nós
Eis o rei dos réus, o agitador
E que lição nos dá mesmo sem falar

E que lição nos dá mesmo sem falar

Eras convite também à expulsão
Tinhas o dedo para pôr na ferida
Nalguns pra sarar e noutros para fazer doer
Ei-lo, o homem: de onde é que vens?
Posso soltar-te, só que não

E que extensão nos dás por não responderes?

E que lição nos dás por não responderes?
E que lição nos dás por não responderes?
E que lição nos dás por não responderes?

16 janeiro 2017

Pensamento Impensado

Querer ou não querer, eis a questão

Obama Care, Trump não Care.

SdB (I)


Textos dos dias que correm

Fracasso, palavra censurada

No ar dos nossos dias aparece às vezes, mas é logo removido, o medo do fracasso. As grandes palavras como esperança e confiança, sobretudo no espaço cristão, parecem proibir a possibilidade de ler um acontecimento ou a própria vida como um fracasso. Esta parece-me ser uma doença espiritual do nosso tempo: habituados a procurar o sucesso, a aprovação dos outros, comprometidos em tarefas "boas" e conformes ao Evangelho, deixámos de ser capazes de entrever a possibilidade de debilidade e do consequente fracasso.

Parece que nós, cristãos, temos já "as palavras prontas" para impedir a constatação do fracasso, e portanto de o dizer, e para o poder viver não como uma dor real, um acontecimento que nos pode colher na nossa longa vida. E todavia declaramo-nos discípulos de um mestre, um profeta, que conheceu como resultado da sua vida o fracasso: a recusa do povo, o abandono e a traição dos seus discípulos, uma morte na vergonha de quem é julgado como homem nocivo ao bem da humanidade, inclusive um endemoninhado, um louco, um homem falso. É surpreendente, portanto, que nós, cristãos, falemos facilmente e até a sorrir do «escândalo da cruz», mas sem nos sentirmos intrigados por ele, sem absolutamente pensar que esse poderia ser o destino que nos espera.

Contudo o sentido do fracasso não pode ser eliminado, e quando se conhecem não superficialmente alguns grandes testemunhos cristãos deve-se constatar que o fracasso foi vivido dramaticamente nas suas vidas. Porquê? Porque em cada pessoa está presente, até à sua profundidade, antes ainda do pecado, aquela que na tradição cristã é dita "infirmitas" ou, com sinónimos, "fragilitas" e "miseria". A "fragilitas", a debilidade, é a condição da nossa carne, se somos capazes de a ler, e quanto mais «o espírito está pronto», mais «a carne está fraca». A debilidade é em nós radical: somos frágeis e débeis até nos encontramos na miséria, somos inadequados a secundar o Espírito que em nós geme e suspira, e por esta debilidade somos forçados a cair, a fracassar.

Pode-se por isso fracassar na vida, inclusive na vida que se quer cristã, pode-se chegar ao pensamento de uma vida perdida, de uma vida que não se foi capaz de salvar. A vida passada aparece como farrapos de carne lacerada que deixou de ser integrável, deixou de poder estar disponível para ser a imagem de uma vida. A única certeza é que o silêncio que envolve o fracasso e a queda os preserva de se dispersarem no nada, de terem o destino de uma estrela num buraco negro do universo. Nasce-se e renasce-se, cai-se e levanta-se, recomeça-se sempre: o protagonista não sou eu.

A nada favorece a mentalidade mundana que pretende que se tenha sempre e só sucesso, reconhecimento, quase uma imparável ascensão! Na vida há também o fracasso, a queda, e quem chega a dizer que errou tudo deve ser escutado em silêncio e não ser consolado com palavras baratas. S. Bernardo chegará a exclamar: «Ó feliz, desejável fragilidade, repleta do poder de Cristo, que me permite não só ser frágil, mas também fracassar inteiramente por mim próprio, para ser tornado firme pelo poder do Senhor dos poderes. "O seu poder, com efeito, manifesta-se plenamente na minha debilidade"».

Verdadeiramente, a força de Deus encontra a sua medida na medida da nossa fragilidade. Mas aqui estamos já para além do fracasso, como Paulo, que chega a dizer: «Quando sou fraco, é então que sou forte». “Naufragium feci, bene navigavi”: não se o diz na tempestade, mas quando a tempestade termina e se aporta ao porto desejado ou, como quer que seja, ao cais que nos salvará.


Enzo Bianchi 
In "Monastero di Bose" 
Trad.: Rui Jorge Martins 

15 janeiro 2017

2º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Jo 1,29-34

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
João Baptista viu Jesus, que vinha ao seu encontro,
e exclamou:
«Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.
Era d’Ele que eu dizia:
“Depois de mim virá um homem,
que passou à minha frente, porque existia antes de mim”.
Eu não O conhecia,
mas para Ele Se manifestar a Israel
é que eu vim baptizar em água».
João deu mais este testemunho:
«Eu vi o Espírito Santo
descer do Céu como uma pomba e repousar sobre Ele.
Eu não O conhecia,
mas quem me enviou a baptizar em água é que me disse:
“Aquele sobre quem vires o Espírito Santo descer e repousar
é que baptiza no Espírito Santo”.
Ora eu vi e dou testemunho de que Ele é o Filho de Deus».

14 janeiro 2017

Pensamentos Impensados

Imitando Dalai Lima
1, 2, 3, 5, e 7 são primos muito chegados.

Indigestões
Parece que Adão comeu um figo e não uma maçã; sendo assim, faz sentido o dito: uns comem os figos (Adão) e aos outros (humanidade) rebenta a boca.

Pulos
Os bailarinos sabem as danças de cor e saltitado.

Finanças
Qual será a esperança média de (dí)vida portuguesa.

Medidas
Portugal com altos e baixos: António Barreto e António Victorino.

Lugarejos
Paulo Portas foi o primeiro vice-primeiro.

Que paz!
No princípio da Humanidade era só Adão e erva.

Forças ocultas
Comer é responsável pelas energias renováveis.

SdB (I)

13 janeiro 2017

Imagem e textos dos dias que correm



A Humildade é a Base da Sociedade

A humildade oferece a todos, mesmo ao que se desespera na solidão, a relação mais forte com o semelhante, e, na realidade, imediatamente, mas, com certeza, só no caso da humildade completa e duradoura. Ela é capaz disso por ser ao mesmo tempo a verdadeira linguagem da oração e a mais sólida das ligações. A relação com o semelhante é a relação da prece; a relação consigo mesmo, a relação do esforço para alcançar algo; a energia para esse esforço é extraída da oração. 

Podes conhecer outra coisa que não seja a fraude? Fosse ela um dia obstruída, tu de modo nenhum poderias olhar para lá a não ser que quisesses tranformar-te numa estátua de sal. 

Franz Kafka, in 'Os Aforismos de Zurau ou Reflexões no Pecado, Esperança, Sofrimento, e o Caminho da Verdade (106)'

***
Exercício Espiritual

Ouço-os de todo o lado. 
Eu é que sou assim. 
Eu é que sou assado, 
Eu é que sou o anjo revoltado, 
Eu é que não tenho santidade... 

Quando, afinal, ninguém 
Põe nos ombros a capa da humildade, 
E vem. 

Miguel Torga, in 'Diário (1939)'

12 janeiro 2017

Textos dos dias que correm

O que é um poema?

E se a gente ouvisse um texto e entrasse lá dentro e começasse a dizer só para nós que ele tem razão, é um poeta, que já tínhamos aquela teoria mais ou menos arquitetada mas nunca com o jeito e a coragem de a trazer à luz, de apreciar o som e lhe perceber as tonalidades; que parece não ser um poema mas uma teoria, um protesto, uma irreverência com o uso de palavras que costumam ser usadas para dizer o contrário. Por todos, exceto pelos poetas. Que ali, afinal, está um poema, um compêndio da história de ontem e de hoje que poderia ser dita há dez mil anos ou daqui a vinte mil; que até as crianças se deixariam embalar se o ouvissem na voz áspera, clara e doce de Maria Betânia, que não hesita um verbo e acaricia cada sílaba. E se o repetíssemos uma, duas, dez vezes e reparássemos que nenhuma é igual à outra, e se nos deixássemos abismar pelo rolar da palavra sem uma única rima, e sentíssemos que existe apenas para este momento, esta realidade, que descreve este anseio, que exprime esta revolta, que transporta esta recusa tocada de beleza que vai desaguar num infinito abstrato. Ah, é mesmo um poeta, um poema. Tinha-me esquecido que tem asas, se transfigura, se torna em salmo ou impropério, rasga a fronteira dos horizontes, das convenções, atreve-se a passar as nuvens, não se prende a fórmulas, esvoaça, livre como a alma. O poema dá-me uma certeza: a alma existe e está lá discretamente escondida na folhagem das palavras nos tons mesmo azedos que perguntam sem querer resposta, nas dúvidas que se escondem dentro de todos os humanos. O poema não é uma proclamação de direitos, é ele próprio um direito porque nasce da arte nobre de pensar e gritar no tom que entender o que de mais sublime habita o coração do homem. É um hino, um salmo, um versículo, uma prece balbuciada por milhões de seres humanos mas que só os poetas sabem interpretar. E sem dizer que tudo é divino adivinha-se-lhes o traço no subliminar do transcendente.

Não sei o poema de cor. Não serei capaz de repetir a maior parte das suas palavras. Os poemas não são para se fixar e cantar com a nossa voz nem para traduzir com as nossas ideias. O poema é, ele mesmo, senhor do seu universo, ímpeto criador, a um tempo santo, sábio e louco, deixando a lógica de lado, só permitindo  a fala do coração e a sua inexcedível linguagem. Gostava de me juntar a todos os nãos deste manifesto, abraçar os sonhos que esboça, o planeta que inventa. Foi isso que o poeta soube desenterrar e me deixou perplexo e feliz porque já sabia aquilo tudo mas nunca o tinha pensado da forma que só os poetas sabem expor. E podem criar. Mesmo em forma de sátira, sublimada pela invenção do dizer. Nunca saberia ir por aquele caminho nem encontrar nas bermas as maravilhas que ele me revelou. No fim percebi que por vezes é preciso “fechar o cofre e deitar a chave fora”. E por isso aceitei humildemente que tudo o que fora dito e escrito não era para compreender mas apenas para sentir. Tinha de ser. Era o Ultimatum de Álvaro de Campos, 1917. Foi há cem anos.


P. António Rego
Publicado em 10.01.2017, aqui

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