10 abril 2025

Da finitude

Em 2006, a empresa na qual trabalhava há 20 anos já estava numa fase de redução forte da estrutura. Ao longo dos meses foram saindo quadros intermédios / superiores, num processo que, por mais generoso financeiramente que possa ter sido, provocou desconforto e angústia em muitas pessoas. A mim também me tocou ser protagonista desse movimento: no dia 26 de Abril comunicaram-me que o meu posto de trabalho seria extinto no dia 31 de Dezembro. Eu tinha 48 anos.

Este processo de despedimento / negociação de saída foi doloroso para muitos dos meus colegas, que se sentiram desconsiderados, descartados, e cuja auto-estima terá sido afectada. A mim salvou-me esta ideia que desenvolvi dentro de mim: se eu fosse a empresa para a qual trabalhava faria o mesmo, e 'negociaria' o JdB. Para além da extinção do posto de trabalho, quem eu era profissionalmente já não interessava à empresa. Eu pertencia a outra geração, que tinha trabalhado numa empresa que crescia anualmente a dois dígitos, empresa essa que se via agora confrontada com um decréscimo do volume de negócios. O que eu era já não interessava - e esse auto-conhecimento permitiu-me (também) perceber que se encerrava um tempo na minha vida. Saí tranquilo, consciente da finitude das coisas e do fecho dos ciclos. 

***

O Board da organização internacional de que faço parte - a Childhood Cancer International - juntou-se em Lisboa nos últimos dias para a sua habitual reunião de meio do ano. Será a última em que participo, pois sairei do Board em Outubro depois de cumpridos os 9 anos estatutários. O meu afastamento da comunidade internacional da oncologia pediátrica será quase total, por outro motivos, mas não é isso que me leva a este texto.

Na 2ªfeira, no meio de discussões sobre estratégia, branding, comunicação, crescimento, projectos, percepção da opinião pública, etc., tomei consciência de algo importante e igual ao que tinha sentido profissionalmente em 2006: o meu tempo - este meu tempo - tinha chegado ao fim. O meu discurso, as minhas ideias, os meus conhecimentos - o que eu era, no fundo - já não interessavam tanto a uma organização que (curiosamente e ao contrário da realidade de 2006) crescia anualmente a quase dois dígitos. Percebi que me faltava vocabulário para esta nova realidade. A minha voz continuará a ter alguma relevância dada a minha senioridade e conhecimento deste mundo, mas noutro enquadramento. Sairei tranquilo, consciente da finitude das coisas e do fecho dos ciclos.

***

Não sei se sou inteligente, se tenho sorte. Face a estas saídas - a de 2006 e a de 2025 - não sei se o meu auto-conhecimento é uma defesa do corpo, um discernimento do corpo, ambos ou nenhum. O que sei - e disso estou certo - é que esta noção da finitude das coisas e dos fechos dos ciclos me confere uma tranquilidade grande. Perceber que aquilo que sou acrescenta menos valor aos sítios onde estou, tira-me a sensação de vazio que vi em pessoas que deixaram actividades profissionais ou de voluntariado. 

Ninguém é a man for all seasons. Quando tudo acabar, que não me falta o discernimento de perceber que tudo acaba.

JdB

09 abril 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 TRUQUE PARA OS CLIENTES LARGAREM OS TELEMÓVEIS 

Todos iguais, todos diferentes, dizia George Orwell! Assim também cada país, cada artista ou empresário ou pai desencanta uma solução própria para combater o vício desumanizante do excesso de telemóvel, que já será a arma antissocial mais disseminada (porque acessível) do mundo! Em Itália, um restaurante privilegiou uma abordagem deliciosamente positiva. Mas comecemos pelo cinema, onde pululam denúncias mais incisivas. 

Curiosamente, provém da Ásia uma onda de alertas, em versão animada – ora de pendor emotivo, ora mais satírico-corrosivo –, sobre o isolamento que o telemóvel pode provocar, naturalmente quando há excesso. O problema é a facilidade com que maus hábitos insignificantes resvalam, rapidamente, para o vício patológico. 

Percebe-se que a febre dos telemóveis esteja exacerbada em países com produção própria ou com populações adolescentes especialmente tecnológicas. Isso explicará por que se tornou num tema recorrente em curta-metragens animadas do Indo-Pacífico, merecidamente premiadas pela indústria cinematográfica.

O filme «Addiction» do malaio Ngu Yon Xian baseia o argumento numa experiência imprevista e dolorosa na vida de uma adolescente de 12 anos, a quem o pai ofereceu o presente da sua vida – um portentoso telemóvel. Mal sabia ela a armadilha que lhe caíra nas suas mãos imaturas e impreparadas para aquela proeza high-tech: 


O indiano Ashok Patel adopta um script semelhante na sua curta-metragem 3D «O ECRû (de 2023), também dramático e irónico, também protagonizado por um teenager irresponsavelmente viciado no telemóvel, com consequências trágicas para todos. A mensagem aos adolescentes surge em grandes parangonas, no final, se dúvidas houvesse: «Mobiles are made for humans, but humans are not made only for mobiles. STOP MOBILE ADDICTION»:


A perspectiva do jovem chinês Chenglin Xie é mais satírica e mordaz, sem discriminações etárias. Os adultos até são os mais visados na curta-metragem animada «LIFE SMARTPHONE» (de 2015). Será possível correr bem um dia-a-dia debruçado sobre o pequeno ecrã, alheado de tudo o que acontece em redor? A sucessão de gaffes e de desastres causados pela selfie mania, entre outros tiques tecnológicos, é acintosamente interpelativa: 


Claro que estes pequenos ‘rectângulos’ são neutros do ponto de vista ético. Não faria sentido imputar-lhes qualquer responsabilidade – menos ainda culpa – pelos nossos comportamentos, quando desvirtuamos a sua utilização. A atracção incontornável dos pequenos computadores-telemóveis tornam-se um perigo, sempre que nos afastam dos outros, da realidade, preferindo ver o mundo pela lente da pequena máquina que julgamos controlar. Quanta ilusão…  Porém, nunca é a faca que mata, mas o coração do homem, como lembrava o Papa João Paulo II. Claro que cabe a cada um decidir o tipo de utilização e o tempo a despender com estes equipamentos tão úteis. Bem sabemos como os excessos tendem a virar-se contra nós (com efeito direto no consumo desregrado de recursos básicos como comida & bebida, por exemplo e por azar). 
 
Em Verona, um restaurante optou por incentivo positivo para os clientes largarem os telemóveis e gozarem a companhia dos companheiros de mesa. O truque tem-se revelado um sucesso, quer por melhorar o convívio, quer também por reduzir o barulho infernal das chamadas e das muitas pessoas que berram recados para o outro lado da linha. 90% dos clientes tem alinhado no convite do Al Condominio, para deixarem o tm num cacife, à entrada, e assim ganharem direito a uma garrafa de vinho Maia (Pinot noire)! Há-de ser bom, atendendo à taxa de adesão à deliciosa proposta facultativa. Segundo explicava o dono, Angelo Lella, ao diário britânico The Guardian sobre os paradoxos do telemóvel, bem mais associal do que parece: «We live with our cell phones always in our hands, and this is making us unaccustomed to socialization and communication. We wanted to open a restaurant that was different from the others. So we picked this format – customers can choose to renounce technology while enjoying a convivial moment together. Technology is becoming a problem – there is no need to look at your phone every five seconds, but for many people it is like a drug … This way they have an opportunity to put it aside and drink some good wine.»  

Testemunho de Angelo Lella: «It really is a beautiful thing to see people embracing it – they are talking to each other
rather than looking at photos or responding to messages on their phone.»

© BFMTV.
O próprio restaurante se auto-define como antropocêntrico: em Verona «”Al Condominio” l’Human Centric Restaurant:
tutti pazzi per la #DigitalDetox! Il lusso di stare a tavola senza tecnologia.»

Na mesma senda do humor, uma tasca alentejana, cujo letreiro percorrei mundo pelo WhatsApp, deixa um aviso divertido:  


Páscoa é tempo de desacelerar, aliviar a agitação diária, recuperar paz interior, condiz com estes alertas de maior atenção aos outros, melhor foco sobre a realidade, mais abertura ao que nos rodeia. O convite a um silêncio reflexivo, que aguce o olhar e o ouvido, precisa sempre de desintoxicação, a começar por um saudável jejum dos múltiplos ecrãs que nos rodeiam. Serão os mínimos olímpicos para ganharmos disponibilidade – de agenda e de atitude – para o essencial. Boa Semana Santa e Feliz Páscoa a todos!  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

07 abril 2025

Poemas dos dias que correm *

Uma forma de oração

em istambul, como em lisboa,
é para o mar que caminhamos,

enquanto imaginamos o olho de falcão
que pelas costas nos captura,

enquadrando-nos para sempre
num polaroid de figuras distintas

- palavra que nos salva dessoutra:
um polaroid de figuras extintas.

em istambul, como em lisboa,
a nossa vez já passou a livro encadernado.

mas de lágrima janota e flor ao peito
fingimos sóis e estrelas em formato digital,

mantemos aparências, dignidade,
calorífero em mínimos serviços mínimos.

entretanto, a tarde cai aqui bem perto
contra meu coração feito em farrapos,

e flutua em mim a memória próxima da menina da loja
que cheirava a passado, a felicidade, ao

teu perfume e cabelo, ao teu nome ao vento,
coisas assim - detalhes que mais ninguém vê.

homens como eu são lugares mal situados
- diria o daniel faria se fosse vivo sobre a Terra.

mas ele vive em mim, ao som dos the go-betweens.
apologies accepted, my Lord. e ajoelho. 

gi. 

* publicado originalmente a 16 de Julho de 2010

06 abril 2025

V Domingo da Quaresma

EVANGELHO – João 8,1-11

Naquele tempo,
Jesus foi para o Monte das Oliveiras.
Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo,
e todo o povo se aproximou d’Ele.
Então sentou-Se e começou a ensinar.
Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus
uma mulher surpreendida em adultério,
colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus:
«Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério.
Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres.
Tu que dizes?».
Falavam assim para Lhe armarem uma cilada
e terem pretexto para O acusar.
Mas Jesus inclinou-Se
e começou a escrever com o dedo no chão.
Como persistiam em interrogá-l’O,
ergueu-Se e disse-lhes:
«Quem de entre vós estiver sem pecado
atire a primeira pedra».
Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão.
Eles, porém, quando ouviram tais palavras,
foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos,
e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio.
Jesus ergueu-Se e disse-lhe:
«Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?».
Ela respondeu:
«Ninguém, Senhor».
Disse então Jesus:
«Nem Eu te condeno.
Vai e não tornes a pecar».

04 abril 2025

Textos dos dias que correm

Éramos inseparáveis. Eu, o Hubert, o Karim. Jogávamos futebol durante o dia, tomávamos banho no rio no Verão. À noite saíamos para o cinema ou para os bares para jogar bilhar, envoltos em fumo e ruído. Bebíamos mais do que devíamos, naquele desequilíbrio adolescente cujo futuro é incerto. O que seria de nós, o que seria do mundo, se em jovens prevíssemos o preço que pagaríamos em adulto pelos nossos excessos?  

Bebíamos muito. Ao fim da noite o Hubert já ria quase descontroladamente, com os cabelos num desalinho de louco e metade da camisa fora das calças, aproximando-se ousadamente das raparigas locais que, gargalhando com gosto, fugiam dele. Foi para ele uma época que durou pouco, quase como se cumprisse um calendário ou fizesse um intervalo na sua verdadeira natureza. Encontrou-se na sobriedade da vida e vive feliz. O Karim mantinha-se sempre sossegado, encostado ao balcão ou a uma mesa de bilhar, de garrafa constante na mão. Era um sossego enervante, pois não emitia sinais do seu estado. Atravessou a vida assim: casou, separou-se; casou, separou-se. Vai voltar a casar e a separar-se, sempre silenciosamente, um pouco como se a vida não fosse mais do que um sucessão de cervejas bebidas no estabelecimento local. 

E eu? Eu colava-me aos outros quando o corpo acusava excesso de álcool. Uns riam, outros contavam piadas, outros ainda mantinham uma calma quase incomodativa. Eu colava-me nos bancos, encostava-me a uma parede, e maçava quem ali estava com uma conversa desajustada. Era assim que eu me dava ao fim da noite. Não voltei a embebedar-me desde que fui para Paris estudar veterinária. Mais do que dos excessos, quem sabe não fugia de uma natureza que não entretinha ninguém. Talvez continue a ser assim, a viver um desajuste momentâneo como se estivesse ébrio. Às vezes parece que fujo dos outros, que me afasto dos outros. É possível que só queira, com falta de jeito, reconheço, proteger os outros de mim. Como se a vida fosse um bar forrado de mesas de bilhar e as minhas conversas não fossem as conversas de mais ninguém. Como se as minhas conversas não fossem mais do que as minhas conversas. 

Marcel Larque (Lettres aux amies disparus,  Éditions Maison Jaune, 2010, tradução minha deste excerto)   

02 abril 2025

Poemas dos dias que correm

Quando vier a primavera

Quando vier a primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
(1888 - 1935)
In "Poemas Inconjuntos"

01 abril 2025

Das aspas *

 Aspas: sinal gráfico que destaca títulos ou nomes comerciais, sendo também usado para delimitar citações ou realçar uma palavra ou expressão. 

***

Em 1979 tive uma curta experiência veraneante como jornalista. Durante meia dúzia de meses, se tanto, fui jornalista estagiário no jornal O Dia, um matutino importante pela sua não conotação com o governo vigente. Data dessa altura uma qualificação ternurenta que me apodaram - especialista em matéria vaga - já que, enquadrado na secção de informação geral, cobri o impacto do aumento do vinho na cooperativa de Palmela, um congresso de medicina dentária, o desaparecimento da pequena Sofia B da estrada da circunvalação onde vivia com os seus pais, e outras importâncias semelhantes. Também nesse âmbito generalista me deslocava amiúde à Polícia Judiciária para consultar o rol de actividades dos meliantes. E foi aí, à Gomes Freire, que acrescentei ao meu léxico a expressão varinha mágica - designação que desconhecia - artigo que havia sido furtado na véspera.

(De notar que foi só após 1981, já eu estudava integrais duplos, centipoises e resistência de materiais, que me confrontei com o termo trem de cozinha, novidade que fez de mim um homem diferente).

É também nessa altura jornalística que me atrevo, com 21 anos feitos de ignorância, despudor e ingenuidade, a escrever sobre corridas de touros. Um dia, proveniente de um bandarilheiro cujo nome não esqueci jamais, recebo o sobrescrito abaixo, irrepreensível na sua caligrafia de Futura preta. O conteúdo é irrelevante, apenas o cartaz de umas festas em Vila Franca de Xira.


O que podemos realçar no sobrescrito, para além de ser um documento com 36 anos guardado numa caixa com objectivo indefinido? A resposta está nas aspas em torno de crítico tauromáquico - um símbolo gráfico que muda tudo, que põe tudo em questão. 

Se eu escrever gato tem quatro patas, a frase está correcta. Se eu escrever gato tem quatro letras, a frase está incorrecta. Mas se eu escrever "gato" tem quatro letras, a frase torna-se de novo correcta. O que altera tudo? As aspas. As aspazinhas. O animal gato tem quatro patas mas não tem quatro letras. Só a palavra gato é que tem quatro letras. Vamos ao último raciocínio: a frase "'gato' tem quatro letras" tem quatro palavras. As aspas, de novo. 

Mudemos de âmbito. Se eu escrever Prof. Miguel Relvas a frase está incorrecta, porque o cavalheiro que ascendeu a ministro não é professor. Se eu substituir Prof. por Dr. a frase torna-se dúbia, porque não se sabe que habilitações literárias tem o senhor. Agora, se eu lhe dirigir um sobrescrito para indagar onde há seminários de folclore ou cursos de gestão de ranchos e o endereçar ao "Dr." Miguel Relvas a conclusão é simples: há gozo! A utilização das aspas não destaca títulos ou nomes comerciais, como o bandarilheiro usa em jornal "O Dia". No caso de Miguel Relvas reflecte uma ironia - ah! e tal, ele não é bem doutor...

O que significam as aspas na expressão abaixo do meu nome? Significam ironia, isto é, Miguel Relvas está para doutor como João Bragança está para crítico tauromáquico? Ou significam apenas a expressão crítico tauromáquico e, nesse sentido, poderia estar "apreciador de vinho" ou mesmo  "gente alta" ou ainda "oh laurentina, vem à janela...".

Houve gente que escreveu muito sobre isto, sobre uso e menção. Só me falta perceber porquê. 

JdB 

* publicado originalmente a 6 de Março de 2015 
    

Acerca de mim

Arquivo do blogue

StatCounter - Free Web Tracker and Counter