As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
30 novembro 2023
29 novembro 2023
Poemas dos dias que correm
Mãos
sobre Fortaleza, uma cidade de qual nada sei,
exceto que está cheio de gente —
cada vida é um mistério maior do que a Amazónia —
foi ali, enquanto o avião de brincar no monitor de voo
se encostava ao equador
virando para o oeste em direção a Marraquexe,
que comecei de novo a pensar em mãos,
qual estranho as nossas vidas —
a vida da rapariga francesa ruiva à minha esquerda,
a vida do rapaz argentino à minha direita,
a minha vida e as vidas dos passageiros que dormitam,
levados velozmente pela escuridão
sobre o Atlântico enegrecido —
todas essas vidas são agora seguradas pelas mãos do piloto,
e penso noutras mãos que podem segurar as nossas vidas,
as mãos do cirurgião
que vou encontrar de novo quando voltar a casa,
as mãos da enfermeira inteligente de cabelo preto
que desenrolou o cordão umbilical do meu pescoço,
as mãos macias da minha mãe,
as mãos daqueles outros que me amaram,
até parecer quase que a vida humana é isto mesmo:
ser passado de mão em mão,
ser transportado, incertamente, sobre um oceano.
28 novembro 2023
Um dia um homem também chora *
A tua guerra, essa luta que travas contra mim, contra todos a quem chamas oponentes, é só tua. Começou, eras menino. Houve uns olhos que te olharam e a denunciaram, um coração em desespero que a partilhou contigo, uma boca que não conseguiu calar a voz amargurada da angústia. Há muitos homens em combate como tu. Que arremessam pedras, disparam tiros e põem bombas durante uma vida inteira. Cegos de raiva. Em toda a esquina topam o inimigo, em cada alma auguram o traidor. Carregam desde meninos a dor de alguém que amaram e que os amou, devolvem-na ao mundo, espalham-na à sua volta, sem nunca duvidarem do que sentem. Erguem o indicador sobre quem estiver à mão, em pequena ou grande falha, ignorando que nesse gesto outros quatro dedos apontam, na sua própria direcção. Não reparam, ocupados que estão na sua douta opinião. “Estarei equivocado?”, é questão que não reclama naquelas mentes. As guerras vêem de longe, sim. Destroem o teu mais intenso amor, a tua paz, a fraternidade que tantas vezes apregoas. Há muito, muito tempo, eras tu tão pequenino, e foi profundamente injusto, insano, inconsequente.
Homens, procurem a origem do vosso inferno. Persigam a razão da vossa guerra. Revejam, tim-tim por tim-tim, o que assistísteis quando meninos. De que misérias fostes vós testemunhas caladas entre os jogos de bola, o caminho da escola, os fins de tarde, as manhãs de sábado, os passeios de domingo, a ida à missa? No vosso quarto, à mesa de jantar, no silêncio aterrador da madrugada? Do que sentistéis, talvez não tereis lembrança. Ou surgirão vagas recordações de uma criança simplesmente amedrontada. Mas ficai certos: dentro de vós, como num papiro milenar, se guardam tais vivências descritas ao milímetro. Têm a forma de terríveis consequências e poder sobre a vossa condição. Desabrocham como ervas daninhas entre as vossas opiniões, acções, reflexões. Toldam o timbre das vozes e manipulam os gestos mais naturais. Homens, não se detenham. Procurai a origem do vosso inferno, a razão de toda a guerra, e voai, sem medo.
DaLheGas
* publicado originalmente a 18 de Julho de 2009
27 novembro 2023
Pensamentos dos dias que correm
Perfeição é Virtude e não Ausência de Defeitos
«Mas tu, que pões má cara diante do poder da terra, diante da grosseria, da podridão e dos vermes dos homens, começas por pedir ao homem que não seja e que não tenha nem sequer cheiro. Reprovas-lhe a expressão da sua força. Instalas capados à frente do império. E eles entram a perseguir o vício, que não passa de poder mal empregado. É o poder e a vida que eles perseguem e, no entanto, tornam-se guardiões de museu e vigiam um império morto»
Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"
26 novembro 2023
Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo
EVANGELHO - Mt 25,31-46
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Quando o Filho do homem vier na sua glória
com todos os seus Anjos,
sentar-Se-á no seu trono glorioso.
Todas as nações se reunirão na sua presença
e Ele separará uns dos outros,
como o pastor separa as ovelhas dos cabritos;
e colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda.
Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita:
'Vinde, bem ditos de meu Pai;
recebei como herança o reino
que vos está preparado desde a criação do mundo.
Porque tive fome e destes-Me de comer;
tive sede e destes-me de beber;
era peregrino e Me recolhestes;
não tinha roupa e Me vestistes;
estive doente e viestes visitar-Me;
estava na prisão e fostes ver-Me'.
Então os justos Lhe dirão:
'Senhor, quando é que Te vimos com fome
e Te demos de comer,
ou com sede e Te demos de beber?
Quando é que Te vimos peregrino e te recolhemos,
ou sem roupa e Te vestimos?
Quando é que Te vimos doente ou na prisão e Te fomos ver?'
E o Rei lhes responderá:
'Em verdade vos digo: Quantas vezes o fizestes
a um dos meus irmãos mais pequeninos,
a Mim o fizestes'.
Dirá então aos que estiverem à sua esquerda:
'Afastai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno,
preparado para o demónio e os seus anjos.
Porque tive fome e não Me destes de comer;
tive sede e não Me destes de beber;
era peregrino e não Me recolhestes;
estava sem roupa e não Me vestistes;
estive doente e na prisão e não Me fostes visitar'.
Então também eles Lhe hão-de perguntar:
'Senhor, quando é que Te vimos com fome ou com sede,
peregrino ou sem roupa, doente ou na prisão,
e não Te prestámos assistência?'
E Ele lhes responderá:
'Em verdade vos digo: Quantas vezes o deixastes de fazer
a um dos meus irmãos mais pequeninos,
também a Mim o deixastes de fazer'.
Estes irão para o suplício eterno
e os justos para a vida eterna».
24 novembro 2023
Dos registos de viagem
Tenho algures, cá por casa, umas pequenas folhas de papel que constituem uma espécie de crónica de viagem em formato interrail. Datam, talvez, de 1982. Infelizmente perdi-lhes o rasto, mas, mais do que saber o que lá está em detalhe, sei o tipo de informações que lá está: sensações, descrições, opiniões, principais actividades durante os dias. Para além de saber onde estava no dia X, sei o que achava sobre o sítio onde estava no dia X. São folhinhas curtas, pequenas, quase telegráficas. Mas revelam opiniões, nomeadamente que Munique não me entusiasmou.
Há uns meses, o JdC almoçou comigo. Falámos de viagens de passado, de histórias, e ele cedeu-me a sua crónica de viagem sobre a nossa ida (juntamente com o fq) a Nova Iorque, em Agosto de 1981. Não me lembro de alguma vez ter visto este relato de uma viagem, pelo que não fui influenciado pelo estilo.
A crónica de JdC, escrita numa caligrafia que se manteve igual ao longo de décadas, refere-se a uma estadia de 16 dias (não me lembrava de ter sido tão longa - 24 de Agosto a 8 de Setembro) e ocupa o equivalente a uma página A4. Reproduzo o que se refere ao dia 25 de Agosto para ilustrar o argumento:
- Pequeno almoço no Squires
- Almoço no McDonald's
- Passeio e visita ao Macy's
- Jantar na Cabana Carioca.
As outras 15 entradas são basicamente iguais. Há uma referência com um teor diferente, mas que não foge do registo informação, ambas do dia 4 de Setembro.:
- João meteu conversa com uma sueca.
Podemos ler o meu registo de viagem e o registo de viagem do JdC. Tínhamos basicamente a mesma idade quando escrevemos as nossas crónicas, pelo que não há a influência da escola da vida, e não tínhamos experiência de escrita para desenvolver um estilo próprio. Não sei se há diferença na forma como ambos olhámos para o Central Park, para o Rockefeller Center ou para o MOMA. Talvez a diferença seja na forma como nos referimos àquilo que vimos. Ou talvez não, sei lá eu...
JdB
23 novembro 2023
Textos dos dias que correm
Presos ao Passado
De facto, cada um de nós corre o risco de ficar sepultado no seu próprio passado. Todos temos de resistir para não ficarmos aprisionados numa memória simplificada que é o retrato que outros fizeram de nós. Todos trazemos escrito um livro e esse texto quer-se impor como nossa nascente e como nosso destino. Se existe uma guerra em cada um de nós é a de nos opormos a esse fado de estarmos condenados a uma única e previsível narrativa.
Mia Couto, in 'E Se Obama Fosse Africano?'
22 novembro 2023
Vai um gin do Peter’s ?
UMA SEMANA CHEIA DE BONS PROGRAMAS
Nesta Segunda, decorreu mais uma das entrevistas da decana do jornalismo – Maria João Avillez – com gente nova, ativa no espaço público, para partilharem a sua visão do mundo e a forma como a fé influencia a sua vida profissional e as relações humanas. No meio das vivências pessoais de cada um, deparamo-nos com observações interpelativas sobre modos originais de olhar e de interagir com a realidade (e há tantas opções, segundo o critério e as escolhas de quem observa), tecida de pequenos acontecimentos, que parecem carregados de significado que o próprio ajuda a interpretar.
As três entrevistas já decorridas estão disponíveis no portal da Capela do Rato (https://www.capeladorato.org/), nesta sequência de datas do ciclo «E Deus em nós?...»: a 1ª - a 8.NOV. - Sebastião Bugalho contou peripécias interessantes que viveu e uma profusão de experiências curiosas, como a de ter sido taxado de “direita” por aparecer de camisa branca; a 2ª - a 15.NOV., houve um mano-a-mano entre dois importantes organizadores das JMJ - Matilde Trocado e David Alves (da CML); a 3ª - a 20.NOV. foi a vez do maestro Martim Sousa Tavares partilhar a sua experiência.
Hoje, às 19h00, na Biblioteca de Alcântara, terá lugar o «Recital Didático», que integra o ‘Festival nas freguesias’. À guitarra, António Jorge Gonçalves interpretará
Villa-Lobos, Tárrega, Malats e Pujol. O programa repete-se a 30 de Novembro, no Palácio da Mitra, às 18.00h. Nota – são concertos de entrada é livre.
Seguem mais sugestões de concertos, que animam a temporada, até 9 de Dezembro, vários já com sabor a Natal e a maioria de entrada livre, como indicado caso-a-caso:
Concerto pela Paz
Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras
Nikolay Lalov, maestro
Antonii Baryshevskyi, piano
Bakalov / Muffat | Silvestrov * | Vasks * | Skoryk
* Estreia em Portugal
Bilheteira: Ticketline.sapo.pt
Colóquio - Concerto
Cupertinos
Luis Toscano, direcção
Francisco d’Holanda e Michelangelo
Renascimento português e italiano
Magalhães | Garro | Bruceña | Palestrina
Lusitano | Diniz *
* Estreia absoluta | Encomenda do 49º FEL
Entrada livre
Colóquio - Concerto
Vocal Ensemble
Vasco Negreiros, direcção
Homenagem a Damião de Góis
Gareanus | Gois | Lusitano | Escobar | Cardoso
Vicentino | Caldas*
* Estreia absoluta | Encomenda do 49º FEL
Entrada livre
Coro de Câmara da ESML
Paulo Lourenço, direcção
O Romantismo alemão
Brahms | Schubert | Bruckner
Coro de Câmara da ESML
Paulo Lourenço, direcção
O Romantismo alemão
Brahms
Música de Natal da Flandres e de Liège
Born | Luython | Tongeren | Leodiensium
Ronotte | Fiocco | Froidebise
Entrada livre
Michael Zilm, maestro
O Romantismo alemão
Bruckner
Entrada livre.
Já abriu ao público a exposição «O Tesouro dos Reis. Obras-primas do Terra Sancta Museum», tema do “gin” de 25 de Maio. A mostra vinda da Terra Santa estará patente, até 26 de Fevereiro de 2024, na galeria principal da Gulbenkian (nota – encerra às terças).
Na próxima Sexta, às 19h00, a Fundação Calouste Gulkenbian passará, em sinal aberto nas suas plataformas digitais (https://gulbenkian.pt/musica/agenda/2-a-de-mahler-3/), o concerto onde será interpretada a Sinfonia da Ressurreição (a segunda) de Mahler e uma peça de Lygeti – «Atmosphères», sob a direção do maestro finlandês Hannu Linto. Segundo explica a folha de sala:
Gustav Mahler
(Kalischt, 1860 – Viena, 1911)
Sinfonia n.º 2, em Dó menor, “Ressurreição”
—
COMPOSIÇÃO 1888-1894/1903
ESTREIA Berlim, 13 de dezembro de 1895
DURAÇÃO c. 1h 24 min.
Os 5 andamentos:
I. Allegro maestoso
2. Andante moderato
3. In ruhig fließender Bewegung
(Andamento tranquilo e fluido)
4. Urlicht: Sehr feierlich, aber schlicht
(Luz primordial: Muito solene, mas simples)
5. Im Tempo des Scherzos
(No tempo de um Scherzo)
«Em 1888, numa altura em que ainda trabalhava para concluir a sua Sinfonia n.º 1, Gustav Mahler compôs um poema sinfónico, Totenfeier, que dizia representar as cerimónias fúnebres em homenagem ao herói evocado naquela obra, cuja morte levantara todo um conjunto de questões existenciais. Indeciso sobre o rumo a dar a essa peça, decidiu finalmente incluí-la numa nova sinfonia, compondo os restantes andamentos entre 1893 e 1894.
O processo de composição da obra parece ter estado em grande parte dependente de uma conceptualização narrativa da sua estrutura. Com efeito, o próprio compositor concebeu diversas versões de um programa narrativo para a sinfonia, sugerindo nomeadamente uma progressão desde um estado de ansiedade aparentemente insolúvel, até que a tensão é finalmente resolvida, numa reinterpretação da mitologia judaico-cristã, no momento do apocalipse e subsequente redenção (de onde terá derivado o título “Ressurreição”, atribuído a posteriori).
A Sinfonia n.º 2, para soprano e contralto solistas, coro e orquestra, seria assim estreada em 1895, em Berlim, sob a direção de Mahler, mas alcançaria uma popularidade alargada apenas na versão revista de 1903, na sequência do sucesso obtido com a estreia da Sinfonia n.º 3, em 1902, que aliás fora planeada enquanto uma sequela ambiciosa para a sua antecedente, tendo constituído o primeiro grande êxito público de Mahler enquanto compositor sinfónico.
A obra inicia-se com um Allegro maestoso que, de acordo com o programa delineado pelo compositor, constitui uma meditação exasperada sobre a condição mortal do ser humano. Aludindo em diversos aspetos ao andamento lento da Eroica de Beethoven (…).
Segue-se um Andante moderato – cujo material temático remontará ainda a 1888 – que intencionalmente contrasta a vários níveis com o andamento precedente. Na intenção de sugerir uma inocente e nostálgica visão retrospetiva da bem-aventurada juventude do herói, o andamento foi composto à maneira de um suave Ländler, em Lá bemol maior, projetando um ambiente bucólico de um lirismo sofisticado que em dois momentos é sujeito às inquietantes intromissões da ideia de morte. (…) (S)endo permeado por elementos energéticos do scherzo beethoveniano, apresenta uma reformulação sinfónica de material usado na canção Des Antonius von Padua Fischpredigt (“O sermão de Santo António de Pádua aos peixes”), composta em 1893 sobre textos de Des Knaben Wunderhorn. Dedicada às tentativas infrutíferas de Santo António de pregar a moral cristã aos peixes indiferentes, a canção é neste andamento associada à ideia de alienação subjetiva do protagonista em relação à sociedade convencional, tomando, desta feita, a forma de uma valsa sardónica que evoca de modo brilhante o cinismo do texto.
No quarto andamento (Urlicht: Sehr feierlich, aber schlicht) o compositor abandona o tom humorístico para, na tonalidade distante de Ré bemol maior, evocar o desejo de libertação das aflições mundanas rumo à divindade, recorrendo para esse efeito à canção Urlicht, que havia composto também em 1893 sobre textos de Des Knaben Wunderhorn. Desta feita, cabe ao contralto solista protagonizar uma piedosa enunciação de fé, em linhas de uma expressividade mais cromática e quase erótica. A simplicidade deste momento é, paradoxalmente, produzida através de uma acentuada complexidade métrica (derivada de uma atenção extrema à prosódia), bem como de uma orquestração bastante detalhada e inventiva, como se de música de câmara se tratasse.
Por fim, o andamento final (Im Tempo des Scherzos) está construído em duas grandes secções. Numa primeira parte instrumental em forma sonata, em torno de Fá menor, uma introdução expansiva recupera o ambiente fúnebre do início da sinfonia, assombrado agora pelo tema do Dies irae, após o que sobrevém uma grandiosa marcha orquestral, programaticamente interpretada durante a procissão para o Juízo Final, a qual culmina no momento em que à distância soa a última trombeta do apocalipse. Inicia-se então uma segunda parte, espécie de grande cantata sinfónica, em que o julgamento é revertido em redenção: em Sol bemol maior, o coro murmura, praticamente no limite da audibilidade, duas estrofes do hino Die Auferstehung (“A Ressurreição”), de G. F. Klopstock, emergindo dessas sonoridades corais o arrebatador dueto do soprano e do contralto, que elaboram as suas linhas solísticas sobre versos do próprio Mahler. Um grande crescendo conduz a uma peroração de júbilo, em Mi bemol maior, na qual o compositor faz uso da totalidade das forças corais e orquestrais ao seu dispor na projeção de uma esperança fervorosa numa renovação transcendente.»
No MNAA (Arte Antiga) continua exposto, até 7 de Janeiro de 2024, o tríptico magnífico da colecção Gaudium Magnum, de Maria e João Cortez de Lobão, pintado pelo florentino Ventura di Moro (1395-1486), onde sobressai a delicadeza do traço muito clássico, que faz transbordar de ternura a figura maternal da Virgem com o Menino.
No Convento dos Cardaes (rua do Século, nº 123, na esquina com a rua da Academia de Ciências) já começou o Chá de Natal Solidário (https://www.conventodoscardaes.com/natalsolidario), com chocolate quente, chás e tisanas, para acompanhar scones e bolos deliciosos, que ajudam a manter aquela casa tão antiga, onde doentes cegas e diminuídas vivem ao cuidado das Irmãs que lhes devotaram a vida. Até 17 de Dezembro, o Chá funcionará a pleno vapor, permitindo reservas para os mais organizados, que queiram levar amigos: natalsolidario@conventodoscardaes.com.
As beneficiadas do Chá solidário. |
À esq. – o claustro do piso superior do Convento do séc.XVII, que sobreviveu ao terramoto. À dta. - as arcadas do claustro do piso térreo. |
Na contagem decrescente para o Natal, Lisboa fica especialmente fervilhante, repleta de programas interessantes. Exige muita flexibilidade de agenda para acompanhar tantas sugestões imperdíveis e até úteis a quem mais precisa. É um tempo de luxo, ainda por cima sob o sol manso do Outono português.
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
21 novembro 2023
20 novembro 2023
Da voz *
Jorge cuidava-se. Não usava bálsamos pré ou pós barba, não exigia champôs especiais ou cremes que retardassem as rugas e rejuvenescessem a pele. E no entanto, cuidava-se. Lia amiúde, mas, sempre que possível, na língua original: ia a um ensaio académico, a um haiku bem traduzido, aos clássicos franceses, aos realistas portugueses, à poesia experimentalista. Não se podia inferir daqui falta de critério, mas cuidado, apenas, com a língua. Jorge privilegiava, acima de tudo, a arte de bem falar, que era a arma com que encantava as mulheres. Para todas tinha um galanteio educado, uma graçola de oportunidade, uma tirada a propósito. Dizia uma linha de um verso, uma ideia de um estudo científico, uma sextilha popular ou uma citação em francês. As mulheres derretiam-se, porque aliada à erudição havia uma voz bem colocada, radiofónica, potente sem ser metálica, doce sem ser lamechas.
Jorge viveu assim anos a fio. Solteiro, fez da conquista decente e educada o seu hobby. Havia quem não cozinhasse gaspacho com tomate pelado; havia quem não colocasse caldos de legumes para intensificar o sabor. Jorge não perturbava casamentos, namoros, compromissos sérios. Respeitava idades mínimas e máximas e, se tivesse dificuldade em galantear senhoras com dificuldades auditivas, isso assentava na ideia de que as armas dele não tinham validade naquele terreno: como se cita um soneto a quem não o ouve, ou está sempre a inquirir "como?"; como fazer rir uma senhora que tomba a cabeça em permanência na procura de uma onda sonora que lhe penetre o ouvido da melhor forma...
Um dia, Jorge foi ao médico. Na semana seguinte era operado de urgência, um mês depois perdia por completo as capacidades vocais. Deitado na cama de um hospital, com um caderno ao lado e de olhos fitos numa parede onde o olhar dele não parava porque se estendia até ao infinito onde residem todas as nossas dúvidas, Jorge pensou na vida, nas senhoras, na métrica do fado ou na não métrica dos ingleses, em Flaubert, em Eça, em Walt Whitman ou nos russos. Pensou na conquista, na sua arma infalível que agora era obsoleta, inútil, desajustada. Pensou na voz que se esvaíra e, com isso, a parte mais substantiva da sua cadeia de valor. Como explicar, com um caderninho na mão, que a sua voz era assim, a entoação era assado, a projecção era cozido? Como conquistar terreno alheio sem a password que abre todas as portas, que facilita todas as entradas?
Jorge sorriu e, nesse mesmo instante, o seu olhar deteve-se na parede em frente, naquele ponto fixo, porém imaterial, onde assentam as nossas certezas, as nossas convicções, os nossos propósitos de curto prazo, os nossos desejos que se cumprem já já. Uma semana depois, ainda em convalescença, receberia a visita de Goreti, manicura jovem, solteira, vagamente estrábica e ruiva, com valência de voluntariado naquele hospital. Jorge, o homem para quem a voz tinha sido tudo e passara a ser apenas uma saudade, estendeu-lhe as duas mãos e sorriu. Uma hora depois, num fim de tarde modorrento de fim de Verão, ecoaria pelos corredores do hospital uma frase quase gritada, quase estremecida, quase indignada, quase satisfeita: senhor Jorge, senhor Jorge, veja lá onde põe as mãos.
Jorge olhou para as duas mãos com um vagar interessado. Aqueles alexandrinos eram bons, mas talvez prematuros...
JdB
* publicado originalmente a 9 de Março de 2017
19 novembro 2023
XXXIII Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO - Mt 25,14-30
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola:
«Um homem, ao partir de viagem,
chamou os seus servos e confiou-lhes os seus bens.
A um entregou cinco talentos, a outro dois e a outro um,
conforme a capacidade de cada qual; e depois partiu.
O que tinha recebido cinco talentos
fê-los render e ganhou outros cinco.
Do mesmo modo,
o que recebera dois talentos ganhou outros dois.
Mas, o que recebera dois talentos ganhou outros dois.
Mas, o que recebera um só talento
foi escavar na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor.
Muito tempo depois, chegou o senhor daqueles servos
e foi ajustar contas com eles.
O que recebera cinco talentos aproximou-se
e apresentou outros cinco, dizendo:
'Senhor, confiaste-me cinco talentos:
aqui estão outros cinco que eu ganhei'.
Respondeu-lhe o senhor: 'Muito bem, servo bom e fiel.
Porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes.
Vem tomar parte na alegria do teu senhor'.
Aproximou-se também o que recebera dois talentos e disse:
'Senhor, confiaste-me dois talentos:
aqui estão outros dois que eu ganhei'.
Respondeu-lhe o senhor: 'Muito bem, servo bom e fiel.
Porque foste fiel em coisas pequenas, confiar-te-ei as grandes.
Vem tomar parte na alegria do teu senhor'.
Aproximou-se também o que recebera um só talento e disse:
'Senhor, eu sabia que és um homem severo,
que colhes onde não semeaste e recolhes onde nada lançaste.
Por isso, tive medo e escondi o teu talento na terra.
Aqui tens o que te pertence'.
O senhor respondeu-lhe: 'Servo mau e preguiçoso,
sabias que ceifo onde não semeei e recolho onde nada lancei;
devias, portanto, depositar no banco o meu dinheiro
e eu teria, ao voltar, recebido com juro o que era meu.
Tirai-lhe então o talento e dai-o àquele que tem dez.
Porque, a todo aquele que tem,
dar-se-á mais e terá em abundância;
mas, àquele que não tem, até o pouco que tem lhe será tirado.
Quanto ao servo inútil, lançai-o às trevas exteriores.
Aí haverá choro e ranger de dentes'».
17 novembro 2023
Poemas dos dias que correm
Simpatia em branco maior
Afasto as grossas cortinas e surpreendo-me
Com as nuvens que correm, com a lua tão limpa.
Quatro da manhã: jardins de sombras oblíquas, jazendo
Sob um céu cavernoso e rasgado pelo vento.
Há nisto uma faceta ridícula,
Na lua a lançar-se através de nuvens fugazes
E soltas como fumo de canhão, para logo se apartar
(A luz pétrea aguçando, cá em baixo, os telhados)
Alta e soberba e separada –
Pastilha de amor! Medalhão de arte!
Ó lobos da memória! Imensidões! É certo,
Há um leve arrepio, quando se olha para o alto.
A dureza e a claridade e o alcance,
A singularidade de tão vasto e fixo olhar
É lembrança da força e da dor
De ser jovem; do que não se pode ter de novo,
Mas que é vivido por outros, em pleno, nalgum lugar.
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004
16 novembro 2023
Textos dos dias que correm
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3'
15 novembro 2023
14 novembro 2023
Poemas dos dias que correm
Osso
Carne, no fundo. Não queria acreditar,
pois sempre pensei que o coração
fosse feito de pensamentos.
Ou até recordações. Poderia inclusive acreditar
que é feito de fotografias antigas
ou de bolachas ou de um passo de dança
ou de uma daquelas tardes que duas pessoas acendem
quando dizem duas palavras ao mesmo tempo.
Porém, talvez não faça sentido,
isso de o coração ser feito de carne.
Explica muita coisa.
Alguns corações, tenho certeza,
até terão osso.
Afonso Cruz
13 novembro 2023
Bem-aventurados os que têm fome...*
Fulano provinha de tudo: nascera numa terra que ficava entre os polos norte e sul, onde o sol se levantava e punha a desoras, onde as estações do ano se não regiam por critérios previstos, onde as rotinas mansas das marés se alteravam ao sabor de um capricho.
12 novembro 2023
XXXII Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO - Mt 25,1-13
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola:
«O reino dos Céus pode comparar-se a dez virgens,
que, tomando as suas lâmpadas, foram a
o encontro do esposo.
Cinco eram insensatas e cinco eram prudentes.
As insensatas, ao tomarem as suas lâmpadas,
não levaram azeite consigo,
enquanto as prudentes,
com as lâmpadas, levaram azeite nas almotolias.
Como o esposo se demorava,
começaram todas a dormitar e adormeceram.
No meio da noite ouviu-se um brado:
'Aí vem o esposo; ide ao seu encontro'.
Então, as virgens levantaram-se todas
e começaram a preparar as lâmpadas.
As insensatas disseram às prudentes:
'Dai-nos do vosso azeite,
que as nossas lâmpadas estão a apagar-se'.
Mas as prudentes responderam:
'Talvez não chegue para nós e para vós.
Ide antes comprá-lo aos vendedores'.
Mas, enquanto foram comprá-lo, chegou o esposo.
As que estavam preparadas
entraram com ele para o banquete nupcial;
e a porta fechou-se.
Mais tarde, chegaram também as outras virgens e disseram:
'Senhor, senhor, abre-nos a porta'.
Mas ele respondeu:
'Em verdade vos digo: Não vos conheço'.
Portanto, vigiai, porque não sabeis o dia nem a hora.
10 novembro 2023
Poemas dos dias que correm
09 novembro 2023
Pensamentos dos dias que correm
A Vergonha e a Injustiça Não Existem na Natureza
Não há animais injustos, não sejas imbecil. Não há inundações injustas ou desabamentos da maldade. A injustiça não faz parte dos elementos da natureza, um cão sim, e uma árvore e a água enorme, mas a injustiça não. Se a injustiça se fizesse organismo: coisa que pode morrer, então, sim, faria parte da natureza.
Gonçalo M. Tavares, in "Um Homem: Klaus Klump"
08 novembro 2023
Vai um gin do Peter’s ?
HAVERÁ ARMAS DE PAZ PARA CALAR OS CANHÕES?...
Em 2016, o realizador de cinema, argumentista e empresário artístico israelita Or Taicher concebeu um projeto coral ecuménico, apostado no poder da música para congregar vozes desavindas. Assim deu corpo ao grupo Koolulam, onde cantam judeus, muçulmanos, cristãos e gentes de outros credos e etnias. Depois de reunir um público maximamente diverso, Taicher propõem-lhes um tempo de ensaio para conseguirem depois cantar em conjunto. A ária mais interpretada tem sido «ONE DAY», quer pela simplicidade rítmica, quer pela força ecuménica da letra, que tem ressonâncias óbvias com o célebre discurso de Luther King «I have a dream that one day…». Uma das interpretações famosas decorreu na terceira maior metrópole israelita, onde 10% da população é árabe – Haifa. Era o célebre dia de S.Valentim, naquele 14 de Fevereiro de 2018, que juntou três mil desconhecidos, que se dispuseram a uma hora de ensaio para chegarem a este resultado musical e multilinguístico, que ressoa como uma oração ecuménica:
07 novembro 2023
Poemas dos dias que correm
A química do cérebro
ao desdobrar-se em espaços de pensar,
microscópicas teias de sentir
capaz de funcionar logicamente,
reagir à tristeza emitindo sinais,
A química do cérebro é cruel
ao misturar as certezas pensadas
Devia ser capaz de ignorar a dor,
bloquear a angústia em cantos sem lembrar,
e deixa-lo morrer, esquecido e só.
E depois exultar com a vitória:
a técnica em ardente e claro ceptro.
06 novembro 2023
05 novembro 2023
XXXI Domingo do Tempo Comum
EVANGELHO - Mt 23,1-12
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
Jesus falou à multidão e aos discípulos, dizendo:
«Na cadeira de Moisés sentaram-se os escribas e os fariseus.
Fazei e observai tudo quanto vos disserem,
mas não imiteis as suas obras,
porque eles dizem e não fazem.
Atam fardos pesados e põem-nos aos ombros dos homens,
mas eles nem com o dedo os querem mover.
Tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens:
alargam os filactérios e ampliam as borlas;
gostam do primeiro lugar nos banquetes
e dos primeiros assentos nas sinagogas,
das saudações nas praças públicas
e que os tratem por 'Mestres'.
Vós, porém, não vos deixeis tratar por 'Mestres',
porque um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos.
Na terra não chameis a ninguém vosso 'Pai',
porque um só é o vosso pai, o Pai celeste.
Nem vos deixeis tratar por 'Doutores',
porque um só é o vosso doutor, o Messias.
Aquele que for o maior entre vós será o vosso servo.
Quem se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».
04 novembro 2023
Carta a um anjo
Foi hoje, mas há 22 anos.
***
Há algumas semanas cruzei-me com um pensamento de Albert Schweitzer, Prémio Nobel da Paz em 1952 (tradução e sublinhados meus):
Quem entre nós aprendeu, através da experiência pessoal, o que realmente são a dor e a ansiedade, deve ajudar a garantir que aqueles que estão em necessidade física obtêm a mesma ajuda que uma vez lhe foi concedida. Já não pertence apenas a si mesmo; tornou-se irmão de todos os que sofrem. É esta “irmandade dos que carregam a marca da dor” que exige serviços médicos humanos.
***
Há dias, por causa do meu doutoramento, e falando sobre sofrimento, sobre a necessidade de contar uma história (Karen Blixen terá dito que todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito) escrevi à minha co-orientadora:
Sofrimento. Sei falar muito sobre o sofrimento dos Pais, porque o senti e porque o adivinho nos outros Pais, baseado na minha experiência e num conhecimento imperfeito da espécie humana. Mas não sei se sei falar sobre o sofrimento dos médicos com o sofrimento alheio, o que esse sofrimento faz deles, se contam uma história ou se chegam a casa depois de deixarem o sofrimento num cacifo, juntamente com uma bata e um estetoscópio.
E penso muito nas duas médicas que estavam no quarto da Madalena no minuto em que ela morreu. Sairam discretamente do quarto, para darem aos Pais um espaço de pudor e intimidade. Para onde foram depois de saírem de um quarto onde morreu uma criança de 7 anos? O que disseram uma à outra? O que responderam aos maridos / filhos quando lhes foi perguntado então como é que correu o dia? Não sei, mas penso muito nisso. Há uma travessia para os profissionais de saúde?
***
As duas citações estão relacionadas. Fazemos parte da irmandade dos que carregam a marca da dor antes de fazermos parte da irmandade dos que carregam a marca da esperança. Para isso, para que mudemos a natureza da marca, temos de contar uma história. Li algures que um contador de histórias ferido requer um leitor vulnerável. Citei esta ideia um dia e perguntaram-me: o que é um leitor vulnerável? Não sei; talvez um leitor que se deixe tocar pelo sofrimento e pela esperança alheias. Talvez um leitor que queira deixar-se tocar, porque sabe que isso o mudará para melhor.
É preciso contar uma história. A minha história és tu.
J, em nome de todos os que te lembram
03 novembro 2023
A visão do futuro numa retroescavadora *
Uma escavadora não é uma máquina, é a extensão de um cérebro. Experimentem ver um operador com tarimba, rápido, dominador, e perceberão que uma parte do futuro está ali. Uma inteligência ligada a um sistema hidráulico sem passar por mais nada, ou ligando tudo como se fosse algo integrado. Uma escavadora pode ser uma boa metáfora para a antecipação do porvir.
JdB
02 novembro 2023
Poemas dos dias que correm
01 novembro 2023
Solenidade de Todos os Santos
EVANGELHO Mt 5, 1-12a
«Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa»
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo,
ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte e sentou-Se.
Rodearam-n’O os discípulos
e Ele começou a ensiná-los, dizendo:
«Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados os humildes,
porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que choram,
porque serão consolados.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos,
porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração,
porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz,
porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça,
porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa,
vos insultarem, vos perseguirem
e, mentindo, disserem todo o mal contra vós.
Alegrai-vos e exultai,
porque é grande nos Céus a vossa recompensa».
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