31 janeiro 2009

Gostava de ser qualquer um desses que se move dias a fio, meses seguidos, anos e anos pelos teatros. Varrer palcos, descer panos, ser o pica dos bilhetes, eu queria. Queria tanto ser alguém destas casas mágicas, grandes, feitas de escadas e corredores, homens de cá para lá, uns directores, outros actores, encenadores, relações públicas, electricistas, homens do som, das luzes, todos artistas. E em que planta eles se movem. Que forma sublime a do teatro. Que luzes, que talhas, que cores, que candelabros… que bem engendrados estes diabos. Os foyers, os sofás, as plateias, os balcões, os camarotes. Ai os camarotes. Que mistério interessante, aveludado de encarnado. Que perversa mente a minha. Mas gostava de comprar um camarote, de me sentir uma rainha.

Desci a rua a pé, sozinha. Nove da noite de uma sexta-feira. Lisboa pressupunha-se vazia, mas a lotação estava esgotada. Num fim-de-semana prolongado, quem ao teatro se atrevia? E como se esgota assim o São Luiz? Todo ele é ouro, todo ele reluz. Traz na lapela a vida áurea, que não é de ontem nem de outrora, é a de sempre é a de agora. Nunca morreu o São Luiz, nunca viu sina, mesmo que curta, de infeliz. Todo ele seduz. Nas paredes tantos nomes se gravaram. Tantos que este palco já pisaram. Como entretêm o olhar os foyers. Motivos suaves, rosas altivas sobre verdes desmaiados. Verdes leves, tons aguados em pinturas decorativas. Jardim de Inverno garante às almas a companhia. Tem músicas, vozes, chama os autores, lê poesia. Tantas ternuras ao mesmo tempo, todos os tempos. Clássicos, novos ventos. Até o sol entra p’ra ver e na calha o 28 vem a ranger. Passa o Pessoa, acena ao velho. Isto é Lisboa. Que vaidade cidade deste teu canto. Foi dos monarcas, da Amelinha, deu-se à República, foi democrata em toda a linha. Não há teatro que reúna mais amores, nem contas tão tamanhas feitas de espectadores.

Não admira, a temporada é uma emoção. No estúdio do Viegas há muito que anda Shakespeare. Num zás, sem respirar, 97 minutos de rajada, toda a Obra exposta de enfiada. Tanta risada. A pena que o teatro perfilhou, ao palco Mundo chamou, e a todos nós actores proclamou. Homens, mulheres, várias entradas, muitas saídas. Tantos papéis em nossas vidas. E assim o São Luiz não tem parança. E há-de vir Lorca que vai ser peça e vai ser dança. A última do escritor, a derradeira. Bernarda Alba apresenta-se à plateia. A sua casa, as suas filhas, o seu poder, a sua regra. Dores, desejos e pecados de peitos sufocados. O drama na história repetida. A estúpida e insarável ferida de um ror de mulheres à nossa frente. Quem vier não ficará por certo indiferente, porque o homem que cuidaram ter matado, vive em nós, está quente, ainda sente.

Venham ao teatro. Sós, acompanhados, de eléctrico, venham a pé. É a alma do escritor que se enaltece.


DaLheGas

30 janeiro 2009

Invocação

Ó velhos, vós que como os gatos vêdes no escuro
o que as crianças escondem, a distância
por dentro do silêncio, dai-me hoje
lembranças da doçura das manhãs de Julho
e dos vivos crespúsculos de Agosto.

Velhos, divinos velhos, como esquecer-vos?
E às vossas manhãs curtidas nas pedras dos rios
nas noites sinceras de luar?
Que sois cautos nos afectos ao tempo presente
e audaciosos no modo como interpelais fantasmas
numa cisma de amor, numa recriminação,
há muito o aprendi.
E sei que por detrás das vossas humildes máscaras
guardais ainda o segredo das rasteiras ao destino,
do lançar pedras contra os vidros do desalento.

Velhos, quem sois, onde estais? Porque vos escondeis?
Avançai, não temais o néon da incompreensão,
avançai por aqui, até ao proscénio do poema
senhora hortaliceira, senhor tanoeiro,
honrada leiteira, orgulhoso picheleiro;
funileiro e homem de contas
e, tu, ó habitante da mansarda,
entre os sós, poeta romântico.
Todos vós outrora fostes mui respeitados
e se agora, à distância de um postigo,
apenas criais laços com gatos,
pardais, nuvens e morreis pela calada,
tal não é verdadeiramente culpa vossa.

Por vezes, julgais ter errado todos os propósitos
de amor, com a excepção de um cão, um neto
ou um amor enquistado na memória;
qual o grau de verdade nisso não o sei.
Seja como for, este outro convite vos faço:
vinde hoje comigo fazer um carro de rolamentos,
pegar na gancheta, empurrar o arco, rua abaixo;
perscrutar as macieiras e as mãos da mãep
enteando o cabelo.

Como eu, muitos de vós, madrugais
para esperar o céu, um sereno fio de palavras,
a chegada do verão à praia da infância,
e aí nos rendermos ao culto de respirar
junto às rochas o iodo de deus.
Enquanto outros o fazem ao modo vareiro,
dando de comer a um periquito,
rejubilando com o caminho
que ainda têm para trás.

Ladinos, ó como sois ladinos, a reconhecer
a contrafacção dos risos dos netos,
que ainda assim cobris de lambarices e mesadas.
Velhos, soberanos escorraçados da beleza,
ouço-vos, falai comigo, ó meus amigos do coração,
pois sois peritos, mestres,
do meu país a riqueza inestimável.

Jorge Gomes Miranda in 'Velhos', edição Teatro de Vila Real, 2008

[um conselho: leiam-no depressa. lembrem-se das palavras de mário quintana, esse velho sábio: 'os livros não mudam o mundo; quem muda o mundo são as pessoas. os livros só mudam as pessoas.')

gi

29 janeiro 2009

Um desejo


Uma ideia simples. Sair à rua e fazer a mesma pergunta a 50 pessoas. Cinquenta pessoas com quem cruzamos na rua todos os dias, que não conhecemos, nem conheceremos. Caras desfocadas que se diluem num mar desfocado de caras. Mas que se transformam em pessoas quando respondem a uma única pergunta. Que desejo gostaria que se tornasse realidade até ao fim do dia?
Um bom exercício de simplicidade. E de proximidade. Este foi feito em New Orleans. (Apesar de ter um minuto e meio a mais – no início – para ser perfeito.) Mas podia ser gravado em qualquer parte do mundo.
Se me perguntassem a mim?
E a ti?
E a vocês, aí fora?




Mónica Bello

28 janeiro 2009

Largo da Boa – Hora

JdB é o editor deste blogue.
JdB é um Homem, um escritor, um intelectual, profundamente devoto à fé católica, crivo que lhe é essencial à lide com a vida, tendo, inclusive, uma fortíssima vocação missionária.
JdB é um Homem confrontado e comprovado pela vida. Não é um amador ou académico, sabe do que fala, quando fala e, sobretudo, o que cala.
JdB tem o meu respeito e admiração. Num plano afectivo e íntimo tem a minha fraternidade, patamar maior da amizade.
Sabia e esperava forte reacção ao meu texto sobre o Perdão, publicado a 21 de Janeiro e replicado a 25 pelo JdB.
Ao escrevê-lo, pressenti logo o caminho de divergência que estava a abrir, adivinhei imediatamente que o meu pragmatismo fosse chocar o idealismo que enferma a convicção de vida e de fé de muitos (para que saibam, minha também, porque sou católico e não esqueço essa condição, omito-a quando escrevo, para tentar ser mais abrangente).
Só que este Largo da Boa-Hora não é o da vida idealizada, divinizada. É um espaço onde corre o rio das vivências reais, bordejado e limitado pelas margens do possível, do alcançável, do exequível. Este largo é um leito da vida real com todas as suas grandezas e misérias. Aqui trespassa a condição humana na sua dimensão de verdade, na sua beleza mas, também, na sua fealdade.
No plano dos princípios sei o laudo que merece e acompanho em aplauso o que o JdB me replicou. Tudo o que ele escreve e transmite tem a minha adesão sincera, só que….
Para muitos de nós não estamos a tratar de teorias, de filosofias, estamos a tratar de realidades actuais, vivas, presentes que nos acompanham no dia-a-dia.
O meu texto é dirigido aos que sofrem agressões violentas, definitivas, que lhes alteram, ou alteraram irremediavelmente, vidas e afectos. Agressões essas que têm um culpado, um comportamento agressor e depois uma perenidade de acção lesiva, sem remorso, contrição, piedade ou tentativa de reparo do mal causado.
Todos aqueles que se confrontaram com o mal humano têm inevitavelmente que resolver o dilema entre o perdão e outra qualquer forma de, em bondade e em paz, seguirem as suas vidas.
Escrevi para aqueles que sabem, sentem, têm a certeza que não podem, não conseguem, não acham sequer justo conceder o perdão. Mais, não saberiam o que fazer com ele.
Escrevi para aqueles que são coerentes e que entendem – como eu – que o perdão não é um desculpar do coração em ordem à santidade, mas um “apagão” do acontecido, um esquecimento de tudo o que passou, com o consequente retomar de todos os laços anteriores ao mal causado.
É precisamente na coerência da absoluta exigência cumulativa entre o perdão e o refazer do antes que esbarram as minhas objecções sobre a sua possibilidade e viabilidade.
Quem defende o perdão (entenda-se como acto não sujeito a prévias condições e requisitos do agressor, tal como exaustivamente descrevi) portanto, como acto de bondade, de santidade, unilateral, provindo exclusivamente do coração de cada um, tem de defender o corolário lógico e necessário, precisamente o prosseguimento como se nada houvera sucedido.
Poderá este cenário de unilateralidade e prosseguimento do passado, sem mácula do tempo que o destruiu, ser regra, ser motivação de vida, ser ambição, ser até dever de cristão ou homem bom?
Mantenho, o meu não.
É no refazer que assenta a impossibilidade. Não é possível na maioria das vezes esse refazer, e essa impossibilidade inquina de morte a predisposição antecedente do coração, dos sentimentos, que iam no sentido de ”perdoar”.
O perdão unilateral, como acto íntimo e secreto, é um acto voluntarioso mas inconsequente, se não for seguido da “tábua rasa” do que aconteceu. Digam-me, olhos nos olhos, de verdade, quantas vezes conseguimos essa dupla vertente do perdão: absolver e dar lugar ao faltoso no paraíso das nossas existências.
É que o perdão é muito exigente e, daí, a minha cautela. Exige – concedo – um acto de amor, bondade, unilateral de desculpa, de apagamento, de exoneração, mas exige muito mais, exige o que Deus dá: precisamente o direito de se sentar à Sua direita como qualquer outro justo ou arrependido.
Quem acompanhar o JdB no dever e vocação do perdão, está disposto a sentar à sua direita o perdoado? Responda cada um.
Ora, neste contexto de realidade, eu defendi e defendo que a alternativa à impossibilidade de sentar à direita o perdoado, para o homem bom, é renunciar à vingança, à perseguição, ao rancor.
Mas disse mais, e escapou ao JdB, disse que esse mesmo homem bom, a partir dessa renúncia, pode e deve trilhar caminhos de compreensão, de pacificação, de harmonia, de entendimento, que não reconstroem o perdido e passado, mas serão bases de sã, saudável e cristã, convivência.
A minha mensagem era simples e mantenho-a: aquilo que puder ser perdoado, perdoa-se, mas não tenhamos ilusões, pois raras serão as situações. O que não puder ser perdoado, tenta-se enquadrar na condição humana e luta-se, sem rancor, para que subsistam pontes mínimas de contacto, de vivência, de cordialidade, que farão um caminho novo. Mas, e finalmente, não lutemos contra moinhos de vento nem nos violentemos, quando o mal é mal e quer subsistir, não nos percamos no ódio, refugiemo-nos, protejamo-nos, no entregar o mal ao nada, à não existência, extirpando-o da vida, do coração, embarcando-o na barca do Gil Vicente.
Recuso-me a hipocrisias. Recuso-me a actos inconsequentes. Restam-me, pois, os patamares do possível, num caminho de paz comigo e com os outros.
Desculpem-me, os que me lêem, por insistir. É que sinto que este tema é muito mais preocupante e pertinente do que pode parecer numa primeira análise. As vidas de todos têm episódios em que este tema se reflecte, e casos há em que o dramatismo da situação é imenso, importando saber lidar com ela com realismo e com bondade, mas sem utopias, sob pena, se seguirmos certos paradigmas – certos na essência, mas incompletos na formulação – de nos encontramos perdidos num vendaval e tormento de culpas por aquilo que não fizemos, e às vezes tão tarde que a morte já cortou cerce a possibilidade de alternativas.
Não escrevo este texto em salutar e alegre disputa com o JdB – como habitualmente – escrevo com a incompetência e impotência de não conseguir vencer os seus doutos argumentos que, de tão conceptualmente certos e lógicos, podem ter inutilizado uma janela de bem e realidade que quis abrir, no meu texto, para quem sofre.
Quis dizer a esses o que fazer para seguir, como eu faço. Nada mais, nada menos
Obrigado JdB, como sempre, porque tudo o que dizes no texto de 25.01, é certo e belo, apenas … ficou curto.

ATM

27 janeiro 2009

História com vírgula

Nos sonhos em que entraste
havia sempre uma vírgula qualquer
a separar
o poema que provocavas
do verso que consentias.
Do verbo com que mentias.

Há lá coisa mais estúpida que uma vírgula
(entre a virtude e o afecto)
a separar o sujeito
de um seu complemento tão directo.

JCN

26 janeiro 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, data irrelevante.

O Fábio, o meu namorado actual, tinha um colega de cartas – chamavam-lhe o Fêquê – que, nos serões inglórios e intermináveis de azarina, como eles diziam, mantinha a sua atitude de perdedor educado rematando a noite com uma frase intemporal: quando a sorte é maniversa, nada vale ao desinfeliz. Pagava o que era devido e saía cabisbaixo, abafado por um fatalismo de noite negra que nenhuma mestria conseguia vencer.

O futebolista que estacionou o carro potente e mediu a Solange com uma precisão de microscópio vinha, acabei por saber, de uma série de jogos aziagos, entre lesões sem gravidade e desinspirações no relvado. Tinha sido assobiado algumas vezes pela massa associativa, essa imensidão de gente que tem a solução para os males de qualquer clube: da gestão das finanças ao espírito do balneário, da sagacidade na aquisição de jogadores aos contratos ferozes com os patrocinadores. Se não fosse o anonimato da mole, já fariam parte dos órgãos sociais e não havia presidente que não gostasse de lhes ouvir uma opinião atinada e salvadora.

O atleta entrou consciente do furor que faria junto das operárias desta Fábrica da Ilusão. Seguiu gingão para o quarto, olhando à volta com ar confiante, como se fosse um matador arrojado que domina o touro com os olhos postos na barreira. Mirando al tendido, dizem os aficionados. Riu muito, falou alto, achou-se grande, irresistível, sensual e provocador. A Solange precedeu-o, ufana e orgulhosa na sua condição de escolhida, para abrir caminho ao eleito, ao amante de todos os prazeres.

(Termina aqui o que os meus olhos viram e o que a minha sensibilidade interpretou. De ora em diante fala a brasileira nordestina, filha de um qualquer porto de galinhas onde a sua beleza exótica e o seu corpo irrepreensível não seriam suficientes para a tirar de uma bancada de artesanato alegórico. Falarei um dia sobre ela – e sobre as outras operárias deste estabelecimento quase fabril.)

O atleta entrou no quarto e nem terá olhado à volta para se ambientar ao lugar, para equilibrar a sua própria temperatura com a daquele ninho de satisfação onde a hora seguinte era sua por direito. Olhou para a Solange e não viu uma nudez extasiante, um peito perfeito, um rabo levantado, uma criatividade toda posta ao serviço do cliente. Não viu uma mulher – muito menos uma parceria onde a expressão negocial do win-win assumiria foros de plenitude. O futebolista terá olhado para a jovem que o acompanhava e leu-lhe no corpo, nessa volúpia em carne e osso, uma expressão poderosa, porém demoníaca: massa associativa.

De aí em diante comportou-se como se comportaria no campo depois de ter falhado todos os golos, errado todos os passes, titubeado em todos os lances, fugido a todos os contactos, vexado com todos os assobios. Vingou-se na Solange, exibindo uma atitude desagradável, agressiva, prepotente e malcriada, naquela convicção ilimitada de que o cliente tem sempre razão - inclusivamente num tratamento humilhante por quem presta um serviço. Usou apenas dez minutos dos sessenta a que teria direito, desfrutando da brasileira como quem usa um equipamento descartável e de baixa qualidade para o fim a que se destina. Nenhum ímpeto, grito, posição ou ordem cumpriu propósitos de erotismo ou fetiche. O futebolista fez com a Solange o que não podia fazer com a bancada.

Quando passou por mim revelou todo o seu desprezo pelas minhas características físicas. Foi como se o contacto com a realidade o enojasse ou, quem sabe, o aterrorizasse, e me visse, também, o remate que sai defeituoso, a visão de jogo que se não tem, a ilusão do podium que é esmagada por semanas a fio de desacertos.

Soubesse eu o que se tinha passado e ter-lhe-ia evidenciado ainda mais uma perna coxa, uma cicatriz feia e a frase lapidar: quando a sorte é maniversa, nada vale ao desinfeliz.

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

25 janeiro 2009

O perdão

Quis o meu querido amigo e colega de blogue ATM escrever um magnífico texto na última 4ª feira. Sentado no seu banco, no Largo da Boa-Hora, desenvolveu o tema do perdão. Não são raras as vezes em que ambos discordamos sobre um assunto. Na maioria dos casos saio ganhador, não porque vença com base em argumentos demolidores, mas porque levo do campo de batalha um espólio valiosíssimo e invejável que ele me oferece: argumentos fortes, olhares diferentes, ideias novas. Terminada a peleja, sobra a amizade e a noção do que é verdadeiramente importante. Conversar é já em si bastante.

Não consegui deixar de dissonar de alguns dos pensamentos que fui lendo ao longo do texto. Não pedi licença ao autor para isso, mas pedi-lhe autorização – em nome dos bons princípios de convivência – para retorquir no meu espaço habitual dos Domingos. É o que faço, certo de que não sou detentor de nenhuma verdade inquestionável.

O texto abre com uma frase - não recebi a graça da santidade – que dá corpo à primeira das minhas interrogações / diferenças. Mais do que saber se recebi, de facto, a graça, estou certo de que recebi o desafio. Se assim não fosse, estaria a admitir que, não a tendo recebido, o meu destino era o da certeza da não santidade, do fatalismo da imperfeição. Assumi-lo era entender que algo nos diferencia desde um qualquer momento da concepção: há os que nascem para ser santos, e a nossa curiosidade reside em saber se os conseguimos identificar (ou se eles se identificam a si próprios…). No limite, teríamos de perdoar aos que falham sistematicamente, porque, de facto, não nasceram com uma graça que lhes confere características especiais.

Ora, acredito que todos nascemos com a possibilidade de ser santos. Não a santidade de quem faz milagres, mas a santidade das vidas simples e corriqueiras, que buscam a perfeição numa caminhada vulgar e igual a tantas outras e que não é, de forma alguma, incompatível com tudo o resto: carreiras, conforto, satisfação, qualidade. O desafio está lá – assim como a possibilidade de o cumprirmos - mas o que somos e a nossa circunstância desvia-nos para estradas alternativas.

Mesmo não querendo levar este assunto exclusivamente para a esfera do religioso, socorro-me da Enciclopédia Católica Popular: perdão, em geral, é a resposta mag­nâ­nima de quem esquece ofensas ou agra­­vos, no desejo sincero duma re­con­ci­liação que não deixe ressentimentos. E ainda: perdoar a quem nos tenha ofendido, mesmo aos inimigos que não pedem perdão, é obrigação de caridade que Jesus Cristo, nos seus en­si­na­mentos e na oração do Pai-Nosso, pôs como condição do perdão de Deus para os nossos próprios pecados.

Se me ativesse nesta dimensão cristã do perdão, já arranjaria lenha para alimentar este fogo de discórdia saudável com o meu querido amigo ATM, quando refere, na sua deambulação pelo tema, que perdoar exige contrição e arrependimento do agressor. A sua frase é verdadeira, mas na esfera do Sacramento, não na órbita do mundano.

Entender, face à constatação de que perdoar é raramente possível, que nos resta, como manifestação de bondade, a não represália, a não aplicação da lei de Talião do olho por olho, dente por dente é ficar aquém, muito aquém, deste desafio de ser o primeiro a estender a mão num começo de reconciliação. É não acreditar, ainda, na boa vontade de quem está do lado de lá da contenda e é, talvez, a assunção, tantas vezes presumida, de que do nosso lado está a razão, a única razão que nos confere uma posição de quase sobranceria.

Perdoar tem, como se calhar tudo o que nos puxa para uma certa forma de grandeza, uma dimensão enorme e igual, talvez, de dificuldade e libertação. Não é matéria do divino e está-nos acessível, assim o queiramos. E se sentimos indisponibilidade para perdoar a quem nos tem ofendido – a tal possibilidade rara – como podemos pedir que Cristo perdoe as nossas ofensas?

A nossa imperfeição é uma realidade. Resta saber se ela será, também, uma canga que nos condiciona inevitavelmente, ou se não deveria ser um ponto de partida para uma dimensão mais elevada na forma de reger o nosso destino. Estou longe desta perfeição que aqui advogo como regra de vida, mas não é isso que me impede de querer ser mais alto. A imperfeição é uma realidade, repito, fruto da nossa condição humana. Mas não é uma fatalidade. E se somos inquietados por tantos sonhos que se ligam ao ter, porque não perseguir este que se aplica ao ser?

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

JdB

24 janeiro 2009

Diz o limão à cerejeira


Era só esta luz bonita e hoje parece-me o mundo. O sol a ficar para trás, o horizonte de chumbo, prenúncio da tempestade.

Em nós até os homens eu sinto. Os que bebem ilusão, aqueles que preferem não ver, e os que são o chá do mundo.


DaLheGas

23 janeiro 2009

na islândia

a vidraça é por vezes um recurso inestimável
espécie de filtro translúcido entre nós e o universo,
como essa porta de restaurante moderno
que hoje te separa da pequena multidão lá fora.

a mistura de negro e vermelho é perigosa,
como todos sabemos bem dos livros de história
e de outras coisas que rimam com a memória
do que já fomos, do que somos e sempre seremos.

mais uma manifestação burocrática, parece-te,
'já nem dá para um entusiamo à antiga sequer,
este sindicalismo on demand', diz a teu lado a mulher
e tudo revela a essência burocrática deste tempo.

dizem-te: desempregados de espadas desembainhadas?
é coisa muito pouco vista, mesmo nada habitual,
pois o país que sobrevive já não passa no telejornal
e estes desempregados são, já se vê, gente de bem.

engoles a sopa de grão, que não te cai como devia,
e perguntas-te se será desse moderno cozinhado,
embora sabendo que a razão não está no refogado,
antes na secreta arte de manipular a algibeira alheia.

tudo se compra, tudo se vende, tudo se corrompe,
verso bem a calhar, já que te acusam de nihilista-mor.
encolhes os ombros, bebericas o café sem sabor,
serei nihilista-mor ou só lúcido? (dandy era melhor).

dormes, na rotina dos justos que navegam à vista,
marinheiros de água doce e mares sem chama,
que isto de viver enquanto se refila e se reclama,
é como reconstruir um avião em pleno vôo sónico.

a rádio fala da crise, esse animal de desestimação.
de súbito, entra-te no carro esse país (existe?) branco
a que muitos chamam islândia - ilha de fogo, portanto -
onde o impensável afinal também parece acontecer.

as pessoas revoltam-se, há pedras a voar pelos ares,
e não, não é nenhum secreto ritual, nenhuma celebração
bizarra e ancestral, é mesmo, como dizer, a manifestação
pura e dura de um mal geral: como viver sem se poder?

direitos adquiridos, o welfare state, o milagre económico,
expressões de um presente garantido, de conforto, etc. e tal,
transformam-se em palavras bolorentas, mera poeira astral.
não pagam contas de anteontem, nem são passaporte feliz.

"então isto é assim".., deve pensar aquela gente por lá,
as regras mudam em pleno jogo, "passar bem e viver mal"..
"não esperam pela demora, estes fregueses em especial",
que "a impunidade não passará!", "abaixo o governo! "..(é cá?)

retomas o teu pensamento, são exactamente 9h05,
numa cidade conhecida e tua, bem longe da islândia.
abençoado és, rapaz, por essa geográfica circunstância.
aceleras o carro, outra mudança - que bom é viver em paz.

lá longe.. mas que te interessa esse lugar abstracto?
no futuro.. mas que te interessa esse tempo por acontecer?
mas e "se lá longe e no futuro" for "o aqui e agora"? - queres tu ver..
aceleras mais, mudança engrenada, pedal a fundo.


uma lágrima contida, quase ensimesmada,
contra um muro concreto, ali logo à frente,
procuras o travão ontologicamente ausente,
enquanto te despistas - tu e a branda islândia.

nuvens de chumbo, prédios a arder,
um travo amargo, uma visão alucinada.
depois uma dor insana, vertical, funda,
depois o muro

e depois nada.

gi

22 janeiro 2009

Back to basics

Se não me falham as contas, este é o meu post número 11. Ou talvez seja o décimo segundo, o que é absolutamente irrelevante para o caso. Porque o caso é que, olhando para trás, sobretudo para as primeiras semanas, percebo que me perdi pelo caminho. Talvez seja um problema meu, o de tentar dar algum sentido a esta colaboração semanal “blogueira” – uma deformação profissional dos jornais, ou que me ficou da escrita para o “papel”.
Agora que mergulhei de cabeça no “admirável mundo online” e nos desafios para a informação online, confesso que aquilo que me apetece é twittar. Ou seja, vou continuar a percorrer no “Adeus…” este meu caminho errático. Que espero não seja errático de mais para quem lê ou vê.

Twitt desta semana: Food for thoughts. A missão do sr. Gebregiorgis. Ou back to basics.





Mónica Bello

21 janeiro 2009

Largo da Boa-Hora

Não recebi a graça da santidade.
Sou vulgar, sem prejuízo da esperança e alegria que ponho neste desempenho da condição humana.
Vem isto a propósito quando aqui sentado no meu banco deste Largo pensava o tema deste escrito. Precisamente o perdão.
Entendo que o perdão incondicional é matéria do divino. No mais, ou é tema de amor ou é uma questão de possibilidade.
Enquanto tema e vivência do amor entre o culpado e a vítima, seja o perdão concedido ou negado, não são consentidos comentários ou juízos de valor que meçam o acerto dessa denegação ou concessão.
No amor, a regra é que não há regra nenhuma, o racional é que inexiste qualquer lógica justificativa da conclusão, “o coração tem razões que a razão desconhece”.
O único que é certo é que reina o incerto e, por isso, o mais improvável e inverosímil pode ser a escolha, a solução, o caminho. Estamos no reino da liberdade, da confusão, da distorção, do surpreendente.
Prevalecem sentimentos, impulsos, compromissos, vontades, desejos, fantasias, conformismos, teimosias, histórias, e tantos outros valores que ridicularizam a equação: facto/culpa/pena.
No amor, a palavra perdão nada significa, porque nunca houve o necessário pressuposto deste, precisamente a condenação, evitada pela esperança, resignação ou abnegação. Há acusação, mas raramente condenação.
Portanto, quando estão em causa laços amorosos, não há perdão, porque não há condenação, há desculpa, tolerância, esquecimento, esperança, fé na mudança, e tantos outros mecanismos de relativização das coisas, que fazem com que algo – até grave - possa não ser coisa nenhuma, num historial conjunto feito de outras grandezas e pequenezas.
Estando, pois, de fora a acção divina do perdão e o seu exercício na vivência amorosa, vejamos o perdão à luz do possível.
Perdoar é desconsiderar totalmente um acto praticado intencionalmente sobre nós, que constitua violação dos nossos direitos, valores ou essencialidades. Perdoar é apagar da história uma agressão e suprimir totalmente os seus efeitos, incluindo na esfera dos afectos, é tudo se passar, ou voltar a passar, como se o mal praticado não tivesse sucedido.
Defende-se muito o perdão como uma obrigação dos homens bons, e um especial dever dos que inspiram a sua vida numa fé religiosa. É recorrente a exigência do perdão como condição de perfeição individual e de pacificação de nós próprios e do mundo (seja o nosso pequeno mundo, seja o outro…)
Com todo o respeito, penso que essa exigência do perdão é irrealista, e constitui um apelo a um comportamento quase sempre impossível, gerando uma angústia indevida em todos aqueles que – e muito bem, a meu ver – entendem que o perdão é absolutamente excepcional, pois para o seu sucedimento têm de concorrer pressupostos que não são verificáveis na maioria das situações.
Vou sintetizar as minhas razões.
Perdoar exige que a agressão tenha cessado, se tenha consumado, e que não persista continuadamente. Só se pode perdoar depois, não durante. Ora, este requisito exclui muitas das situações da vida que podiam ser objecto de perdão, dado que grande parte delas são efectivamente acções que perduram pelos tempos, pelos anos.
Perdoar exige contrição e arrependimento do agressor. (São estes requisitos que distinguem, aliás, o perdão da amnistia). O agressor só pode ser elegível para o perdão se assumir o erro cometido, o mal causado, a repulsa pela acção e o firme propósito de a não repetir. Ora, raríssimas são as situações da vida em que o agressor assume esta atitude de remorso e comprometimento para o futuro.
Perdoar exige a reparação do mal causado. A reparação, a reconstituição do partido, a cura das feridas da agressão são, na maior parte das vezes – na vida real – impossíveis de atingir. Reconstruir a confiança, a amizade, a sinceridade, a boa vontade, a solidariedade e tantos outros exemplos, são, em regra, caminhos impossíveis.
Cheguei pois onde pretendia: perdoar é raramente possível.
Excluído o perdão, como regra, perguntar-me-ão qual será então a via mais bondosa para lidar com a agressão e o agressor.
A meu ver, o caminho que está aberto aos homens de bom coração, é o da renúncia a responder ao mal com o mal, ao “olho por olho, dente por dente”
Renunciar ao desforço, à vingança, ao ódio, à perseguição, é o caminho que se deve impor nos nossos corações, como exigência da nossa integridade moral ou salvação, se preferirem. Não devemos responder à agressão com a retaliação.
Esta renúncia, se for conseguida, confere-nos grandeza, satisfação connosco próprios, sentimentos de paz de espírito, de vitória do bem sobre o mal.
Firmada a renúncia, podemos e devemos tactear caminhos de entendimento, pontes de compreensão, passagens de esclarecimento e, conforme formos concluindo, encetar o caminho da aproximação cujo culminar pode ser até a reconciliação, que não se confunde com o perdão. Uso esta expressão, reconciliação, no sentido de, no fim do caminho, poder até suceder um retomar de laços afectivos, profissionais, sociais que, ainda que definitivamente maculados pelo pecado original da agressão, possam ser suficientes para uma coexistência saudável, pacífica e proveitosa para a paz e bem de todos os envolvidos.
Sei, porém, que por vezes essa reconciliação também não é possível. Em especial, porque nem a agressão cessa, nem o agressor indicia arrependimento, nem sucede um esboço de reparação.
Quando assim for, não resta senão tornarmo-nos totalmente indiferentes para com o agressor, ser e agir como se ele já não fosse ou agisse.
Este fazer dos outros nadas, é a medida que nos permite viver sem o tormento da permanente recordação do mal cometido, sem a dor do sofrimento que nos é infligido, sem o risco do acirrar de rancores. É o caminho para o esquecimento do mal.
Esquecer o mal, apagar a história, é a defesa dos que renunciam ao ódio e desforço, e são impotentes para mudar o curso das coisas.
O irremediável não é bom companheiro, deixá-lo jazer no cemitério do perdido.

ATM

20 janeiro 2009

Para os fãs do MEC

Mão amiga fez-me chegar às mãos este link (http://brunogarschagen.com/2008/07/31/transatlantico-miguel-esteves-cardoso-um-homem-civilizado/) de uma entrevista do MEC. Nada como dar a palavra ao dono do site onde pode ser vista:

Porque durante 1h07min vocês vão conhecer um dos homens mais inteligentes e civilizados de Portugal. Miguel Esteves Cardoso, chamado carinhosamente de MEC, deixou há tempos de ser um indivíduo para se tornar uma instituição. É, mais do que escritor e jornalista, uma instituição refinada, witty.

História de sempre

Queria que o meu sono
fosse a carícia do cansaço,
como o último raio de sol
que desce sobre o mar.
Dormir
na calma doce de um abraço
e ter-te sempre ao lado
ao acordar.

JCN

19 janeiro 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália (data ilegível)

Confesso a minha estranheza quanto ao dia de ontem. De manhã fui a uma consulta médica, para que o especialista ajuizasse do estado da minha perna, se o coxear piorou ou não. Assunto desinteressante, sigamos para bingo, porque a bizarria não está, apesar de tudo, na minha deficiência.

Na sala de espera folheei uma revista cor-de-rosa, destas que evidenciam felicidades eternas em casamentos repetidos, e gente que demonstra uma manancial sem fim de lugares-comuns, todos eles publicados a letras grandes e salientes. Como me dizia no outro dia uma amiga, as gravidezes eram, dantes, alegrias partilhadas na intimidade da família. Agora são notícias de primeira página, ilustradas com frases simples, do tipo é um pouco cedo para falar porque ainda estou de três meses, mas estamos todos muito felizes, ou é um filho muito desejado, ou ainda sinto que não estou a dividir o meu amor, é a dobrar, para aqueles estatisticamente menos vulgares que têm gémeos. Às vezes dou por mim a desejar que alguém diga de uma forma crua: a criança vem, mas não pode vir em pior altura! Que estranho, imaginar-se a alegria da maternidade como uma notícia com direito a parangona. Ser-se mãe ou morder-se o cão tem valência semelhante...

Foi neste número que vi uma reportagem com um jogador de futebol de um dos grandes clubes, onde aparece com a esposa e duas filhas revelando o amor pela família, a tranquilidade e estabilidade que encontrou junto a uma mulher que ganhou um concurso de beleza numas festas regionais. Todo ele é, nas fotografias, carinho, dedicação, respeito e amor, afirmando ideias de fidelidade, felicidade e dependência saudável. A casa é o meu centro de gravidade, rematou, enquanto a Tânia e a Vanessa brincavam com o Pops, um Retriever que debrua a ouro aquele idílio.

Por um alinhamento mais do que bizarro dos astros, o dito jogador de futebol apareceu aqui na Fábrica da Ilusão, revelando a sua chegada através dos ruídos de um motor possante de um carro baixo, de duas portas, platinado. Depois entrou, confiante, com um cabelo rapado dos lados como se fosse um militar norte-americano, uma patilha que mais parecia um fio de cabelo a escorrer junto às orelhas, um casaco vistoso e à moda comprado numa loja chique de um centro comercial e uns sapatos de biqueira quase quadrada.

Tudo nele transpirava confiança, segurança, disponibilidade e vontade para impressionar, criar uma aura de sucesso antecipado. Como se se sentisse disputado ao nível do duelo, e certo de que seria, para qualquer uma das raparigas, um petisco irrecusável. No fundo, no fundo, como se a justiça e correcção do mundo lhe dessem a certeza de que seria pago por uma hora de prazer, e não a inversa.

A Dra. Clara escolheu a Solange, uma brasileira típica: peito pequeno, rabo levantado, desinibida, com espírito de iniciativa e poucos pudores. Uma mulher à altura e com experiência suficiente para domar a fera que se apresentava na recepção, olhando de soslaio e com um ar incomodado para as minhas características físicas. O futebolista está habituado ao porte atlético, ao pé ligeiro, ao olho sagaz, e eu não tenho nada disso. Tem, da fantasia, uma visão própria - e eu sou uma realidade que ele não conhece, a que não está habituado, porque não se senta ao lado do carro potente nem no sofá da casa minimalista.

A Solange foi irrepreensível: deu-lhe as boas noites e dois beijos com uma amplitude muito curta, gabou-lhe o físico e alegou não falhar um jogo do atleta, apelidando o mister, sempre que não o punha a jogar, com duas palavras demolidoras: cafageste incompetente. Depois, mantendo um ar dengoso e brasileiro que foi a perdição de muitos casais estáveis, susurrou-lhe uma proposta ao ouvido. O futebolista riu-se muito, exageradamente, como se fosse dono daquele espaço e respondeu que só vendo.

Seguiu-a para o quarto tirando-lhe as medidas com uma visão de alfaiate. Teve tempo, ainda, de observar o meu olho desfeado por uma cicatriz e a minha perna coxa. Inquietou-se com o contraste Amália versus Solange e seguiu o caminho da ilusão, da caxemira em versão nordestina, do pelo que se afaga com gentileza sábia. Para trás fiquei eu, a realidade desta Fábrica da Ilusão, que espera a saída do futebolista e da brasileira.

MTS

18 janeiro 2009

Adeus a uma parte da minha vida

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

Faz agora duas semanas que deixei de ir aos meus velhos, tendo sido substituído por alguém que enceta um caminho que o levará a outros patamares de serviço à Igreja.

Comecei esta rotina há talvez quatro anos. Todos os Domingos, pelas 11 da manhã, lá me dirigia ao lar para dar a comunhão a quem estivesse preparado para a receber. A experiência ensinou-me que a expressão preparado, no caso (também) destes idosos, é fortemente subjectiva e propiciadora de algumas divergências. O que é pecar quando se leva uma vida arrastada em frente a uma televisão, tantas e tantas vezes no abandono das famílias, a aguardar a morte que toca aos outros que na véspera almoçavam ao nosso lado?

Dei a comunhão a quem parecia estar adormecido, apático, desinteressado mas que, na altura certa, rezava um Pai Nosso com a devoção possível de quem sofre, tem dores, não consegue andar ou comer, vive numa espécie de limbo da existência. Fi-lo com a consciência tranquila, certo de que Deus, na Sua sabedoria e amor infinitos, atentará mais ao sossego e conforto daqueles velhos do que ao olhar rigoroso (e será certo?) de uma percepção de impreparação.

Há quatro anos a sala estava cheia e eu, envergonhado e inseguro, rezava sozinho com uma idosa a um canto, tentando manter uma concentração mínima perante o desinteresse de todos e de uma televisão que debitava banalidades num volume demasiado alto. Pouco a pouco, com inspiração e a ajuda das visitadoras do lar, a televisão fechou-se, as pessoas começaram a fazer um caminho. Há duas semanas, quando me despedi, dei a comunhão a oito ou nove residentes, enquanto os outros rezavam à sua maneira ou se recolhiam no mundo próprio.

À saída, muitos braços se levantaram para dizer adeus, senhor João, obrigado por ter vindo. Eu acenei também, na incapacidade que sempre tive de fixar todos os nomes, todas as dores, todos as esperanças. A minha reacção foi o sorriso, uma piada e a promessa de uma visita. Quando isso acontecer verei certamente mais uma cadeira vazia ou um sofá desocupado, consciente de que todos caminhamos para a morte, e alguns estão mais próximo da curva da estrada. Muitos terão, na expressão feliz da letra do fado, um receio, anseio profundo / de um dia a menos no mundo / e um a mais perto de Deus.

Durante quatro anos poucos foram os Domingos que falhei, mas muitos foram aqueles em que me levantei com menos vontade, pedindo sempre para não ser movido pela vaidade nem pela falta de paciência. No dia 4 de Janeiro faltou agradecer, a cada um daqueles idosos, o que me ensinaram neste tempo que levo de ministro da comunhão: o serviço aos outros, a constatação da nossa vida fagueira, o desafio da paciência com quem já só nos ensina a dimensão do sofrimento e, tantas vezes, da resignação.

Adeus, até ao meu regresso...

JdB

17 janeiro 2009

26 anos? Tu não és nada. Tu nem existes.


Casei com 20 anos. O homem que me levou ao altar tinha mais onze. Era velho, triste e chato. E eu nova, alegre e risonha. Fomos felizes, muito felizes. Durante o tempo em que iluminei todo aquele breu, não têm conta as noites de borga que cumprimos. Dessas noites, há umas palavras anónimas que adoro contar.

1994, Jardim do Tabaco em Lisboa

Era um eirado de alcatrão virado ao rio, frente a Santa Apolónia. Grande vista, calor, lua cheia. A música bombava forte e feio e a pretalhada representava o peso. Toda a boa catinga da Margem Sul se propagava na atmosfera. Vivíamos o tempo do Rap e aquela festa era dos rappers, para os rappers e as suas bandas Yo!
Mal paramos no boteco e o meu ouvido sintonizou, eu fervi de vontade de entrar na sanzala. Fui-me afastando do dono e chegando a ela. Queria dançar e estendi-me um bom bocado, até que os blacks repararam. Quando um ganhou coragem, falou:

– Dánças bém!
– Obrigada.
Nem dois minutos depois, o matumbinho volta a abrir a goela:
– Mas quantos anos é que tu téns?
– Adivinha lá.
Flanou o olhar por mim e entrou ainda mais na dúvida:
– Ehh paaa, num sei... tem umas merdas que parece que tu és pita, mas tem outras merdas que parece tu és cota...
– Tenho 26.
– Ahh então é iisso, porra. Tu nem és cota, nem és pita!


DaLheGas

15 janeiro 2009

O cimento antes de secar


Estou a tentar abrir uma porta.
Não sei para que lado a chave vai quebrar
nem sei como chegou à minha tentativa
o interdito com que de novo procuro.
Alguma coisa está a ser calcada
no interstício dos gonzos, na dobradiça
cercada de estrelas mortas a fulgir.

Atravessou entre pinheiros.
O vento levantava areia,
enterrava-se no côncavo da represa.
Faltava a esse amor a ilusão
do amor. O céu mordente.
Esse rastilho quase animal.
Toda a explosão do mundo.

De golpe incendiaram-se as plantas,
as que de mês a mês vemos crescer
até às flores as que dão flor,
a novos ramos as que só dão folhas.
Mês a Mês, ramo a ramo, flor a flor,
a mentira bate na lagoa e dança
no tecto com as venezianas corridas.

Ficámos a falar por muito tempo.
Tinha o corpo de betão.
Mostrei-lhe livros, discos, labaredas
que falham quando procuramos
as palavras que já os olhos disseram.
E há um silêncio entre gestos cegos.

O mármore pulsa com os pontos cardeais.
Parece o coração. Bátegas
de encontro ao fechamento, obscuras.
Escuta, continua a escutar, a treva
solta-se da terra inacessível
onde os diamantes prefiguram
a nossa petrificação.

Vivíamos no canal de lava da rua,
no último café a fechar,
as solas sobre um vidro em ebulição
e perdíamos.

É muito de manhã. Acorda
a dor humana que me faz companhia.
Estou a sair de tua casa
a caminho de lugar nenhum,
a minha casa, esse vazio
com a música arrumada,
o cinzeiro, o aspirador, a cortina míope,
a gelatina da cama
onde não mais queria voltar.

Joaquim Manuel Magalhães, in “a poeira levada pelo vento”



Mónica Bello

14 janeiro 2009

Largo da Boa-Hora

Hoje uso o meu banco como tribuna para gritar, desculpem:

A globalização é uma mentira, um embuste, uma ilusão.

O que se globalizou foi, específica e exclusivamente, a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, e a informação.
Mercados e notícias, nada mais.
Não se globalizaram os valores, elementares e essenciais, como o direito à vida, dignidade, liberdade, fraternidade, solidariedade, família, trabalho, saúde, educação e cultura, pensamento, religião, protecção de pessoas e bens, justiça e paz, e todos os demais que formam o acervo mínimo e indispensável para que a Humanidade seja humana.
Todos esses valores estão plasmados, fixados sob forma de lei, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das ONU na sua Resolução 217-A (III) de 10 de Dezembro de 1948).
Do mesmo modo que estão revelados, ensinados e sacralizados em todas as religiões e seus textos sagrados ou anunciações.
Também todos eles estão, no fundo, subjacentes aos pensamentos políticos e filosofias que estruturam estados e culturas.
Mas, e é o mais importante, todos esses valores são naturais e inatos ao ser humano, a cada um dos homens. Todos os sentem, reconhecem e reclamam; são tão elementares e inerentes ao Homem que são, na verdade, do senso comum.
Ora, sendo tão naturais e evidentes estes valores, deveriam ser eles - tivesse a humanidade cumprido o caminho certo da sua evolução - os prioritários e os pioneiros da globalização, e há muito seriam comuns, como hoje o são os mercados e a informação.
Fosse assim, fosse a globalização a generalização dos bons valores, e o Mundo seria um éden, em vez deste inferno.
Mas o Homem escreveu e continua a escrever uma História errada, medíocre e perversa.
Há milhares de anos que falha, porque não consegue realizar o mais essencial, mais fundamental, o verdadeiramente crítico, que é precisamente o de globalizar os valores da condição humana.
A história do Homem não avança no caminho para a perfeição, para a realização de ideais, para a mais completa e perfeita concretização da condição humana, para o Bem. Ao invés, gira em círculos de repetição dos mesmos holocaustos.
O colectivo humanidade é absurdo.
Pergunto-me porque será assim. Só encontro uma resposta plausível e convincente: tudo se reconduz a uma luta entre o Bem e o Mal que é travada desde os primórdios, e o que é verdade é que o Mal ganha muitas vezes, repetidamente e em momentos cruciais. Nas grandes oportunidades de viragem do rumo da história, o Mal consegue minar e destruir essa tendência e reverter o bom caminho encetado.
O Bem dispõe e esgrime com o Amor e o Mal dispõe e esgrime com o Ódio.
Ora, o que temos de concluir é que o ódio consegue impor os seus ditames de violência, guerra, dor, morte, destruição, sofrimento, criando geografias de barbárie, de devastação, de aniquilamento.
O ódio, motor da desgraça, germina onde falta o amor, reproduz-se como a mais violenta epidemia, e não tem cura. Quando instalado, não há como o remover - apenas se consegue circunscrever e neutralizar.
Importa, pois, não lhe dar oportunidade de florescimento, ou seja, preencher o tempo e o espaço, todo, com o Amor que o aniquila e impede.
Não estou a ser lírico, nem utópico. Estou consciente e lucidamente a lançar um manifesto, mesmo que solitário, de que a alternativa, a única, é a revolução, isto é, munidos do amor, ao serviço do bem, vamos globalizar os valores inatos ao Homem.
Partamos à conversão e pacificação onde o ódio germina e floresce como praga e epidemia, e comecemos a revolução da globalização dos bons valores.
Não haja ilusões. Se tomarmos esta bandeira a sério e devotadamente, muitas das concepções e modelos políticos, económicos, sociais, entre tantos outros paradigmas que agora ainda são os nossos, vão sofrer modificações, inovações, substituições.
Cumpre-nos dar nova esperança, oportunidade à História. Devemos aproveitar o momento em que alguns dos nossos próprios alicerces ruíram (mercados, emprego, segurança social e outros) para revolucionar e avançar de encontro aos outros, levando a nossa proposta de construção de um mundo, que, pela sua simplicidade e naturalidade à condição humana, tem condições de ser acolhida ou pelo menos influenciar a que, finalmente, os homens peregrinem juntos na terra.
Se conseguimos globalizar os mercados e a informação, será que não conseguiremos globalizar os bons valores?

ATM

13 janeiro 2009

História com meia

Procuro, como sempre, a outra meia
por entre a roupa espalhada pelo chão e sobre a mesa.

Pormenores suados de camisa
bocados de olhar
cheiros de ti
espaço que arrefece.

Prazer que se apaga
tempo que termina
quando a meia aparece.

JCN

12 janeiro 2009

Poemas dos dias que correm

Alegria

De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho...,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escura
duma nova amargura...

De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade...
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte...
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.

Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.

Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raíz.
Volúpia de sentir na minha mão,
a côdea do meu pão.

Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir o tédio,
Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida como a um vício.

Alegria!
Alegria!
Volúpia de sentir-me em cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!

Fernanda de Castro, in "D'Aquém e D'Além Alma"

Poemas dos dias que correm

Silêncio, Nostalgia...

Silêncio, nostalgia...
Hora morta, desfolhada,
sem dor, sem alegria,
pelo tempo abandonada.

Luz de Outono, fria, fria...
Hora inútil e sombria
de abandono.
Não sei se é tédio, sono,
silêncio ou nostalgia.

Interminável dia
de indizíveis cansaços,
de funda melancolia.
Sem rumo para os meus passos,
para que servem meus braços,
nesta hora fria, fria?


Fernanda de Castro, in "Trinta e Nove Poemas"

11 janeiro 2009

A Igreja dos Mártires e a multa

Mão amiga fez-me chegar uma notícia que pode ter várias leituras: zelo, excesso de dito, perseguição, insensibilidade do poder autárquico, etc. Nada como seguir este link. Fica um cheiro, apenas, da notícia que apela, não só à indignação que cada um quiser demonstrar, mas à ajuda que cada um, também, quiser dar.

Porém, demorou mais uns dias a tirar o último tapume na rua ao lado do que a licença permitia e foi multada pela Câmara. O Prior dos Mártires fez uma exposição ao Presidente da Câmara e, passados quase três anos, no dia 23 de Dezembro, o Dr. António Costa mandou-lhe um presente para o sapatinho: multa de 2.500 euros, mais custas, para pagar ou executar.

JdB

Textos dos dias que correm

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos

Carta aberta ao editor

Há algumas semanas jantava com amigos lá para os lados de Alcácer. Uma vez que estava presente um dos bloguistas residentes, falou-se, entre muitos outros temas, deste Adeus, até ao meu regresso: da dificuldade da escrita, do gozo, da disciplina, da transpiração e da inspiração, do tom geral do blogue, dos seus encantos e oportunidades de melhoria. Recebi, esta semana, uma carta de um dos convivas, que não resisto (com a devida autorização) a publicar.


***

Com tantos talentos a fazerem parte deste blogue, não me parece que possa acrescentar grande coisa ao que tem vindo a ser escrito. São, no seu conjunto, excelentes textos que tenho tido a oportunidade de divulgar junto de amigos, pessoas inteligentes e de grande sensibilidade. Todos os têm apreciado, referindo o bom gosto das citações e das imagens, a qualidade da escrita, a riqueza de vocabulário e o desejo de lá voltarem repetidamente. Somos, realmente, um país de poetas. E de escritores. Parece-me mesmo ser esta a “nossa” arte…

Mas há um aspecto, que já tive a oportunidade de salientar ao editor, que me parece ser o traço dominante deste blogue: uma certa vivência melancólica por tempos idos em que já fomos mais felizes e em que a vida se perspectivava cor-de-rosa, plena de aventuras e possibilidades ilimitadas. Ou uma nostalgia por Algo indefinível, por qualquer coisa que nos falta, que não sabemos bem se está dentro ou fora de nós. É um blogue feito por pessoas que já “viveram”, que já sentiram na pele as desilusões da vida e as dores que o destino inevitavelmente traz. É um blogue de “alma”, no que isso tem de bonito e generoso, mas também de triste. É um blogue sério, essencialmente.

Entristece-me particularmente sentir que a esmagadora maioria das pessoas que já entraram nos “entas” tenha quebrado com as agruras da vida e se tenha tornado “séria” (ou excessivamente “séria”). Sou por natureza romântica e idealista e sonho amiúde com uma vida em que a Alegria fosse pura e todos vivêssemos em Harmonia. Um pouco como a alegria das crianças que falam com o corpo todo, que se comovem e vibram dos pés à cabeça …. Mas sabendo que a vida não é assim – não é mesmo – penso que é f-u-n-d-a-m-e-n-t-a-l preservar um qualquer canto interior, único e individual, no qual essa alegria brilhe sempre. Uma alegria que se manifeste, frequente e espontaneamente, no, vejamos … contemplar de um amanhecer luminoso e fresco … no agarrar da mão minúscula dum recém-nascido … no estremecer perante o olhar cheio de doçura de alguém que amamos …. ou até na leitura dum livro que lança luz sobre a nossa mente obscurecida e medrosa… nada mais que pequenas alegrias espontâneas.

Mas existe também um outro tipo de alegria, mais trabalhada, que tem a ver com o cultivar de uma atitude de encanto e de deslumbramento perante a vida. O ter sentido de humor, o sentir que a vida é um dom, que o amanhã será seguramente melhor quando o hoje é negro, o cultivar a Esperança, a Coragem e o riso, muito riso ….

Digo isto porque conheci alguém que vivia assim. Alguém sem quaisquer bens materiais (vivia da Segurança Social), que conheceu de perto os abismos da alma humana, doente, doentíssimo, com uma intensidade de luz e sombra interiores como mais ninguém que conheço ou vou conhecer e que, no final da vida, a 3 dias de morrer, me dizia com os olhos cheios de lágrimas: “Sabes, C, sou feliz, tive uma vida feliz”. Como é possível dizer isto no final de uma vida tão sofrida?? Ainda hoje não consigo abarcar o verdadeiro sentido desta frase. Mas sei uma coisa: que o P escolheu viver de uma forma alegre. No meio duma adversidade gigantesca, por ele cultivada aliás, dada a sua personalidade extrema e desregrada, optou por rir, por aproveitar cada momento da vida, por se interessar pelos outros, por se divertir sempre que podia. Não havia verdadeiro drama ao lado dele.

Evidentemente que a pessoa de que falo não é única. Tenho a certeza que a maioria dos intervenientes e leitores deste blogue terá passado por grandes provações na vida, e que a sua “seriedade” ou tristeza é uma consequência natural do que sofreram. Mas não acredito que tenham tido acesso ao que o P viveu. Ele faz parte daquele grupo de pessoas de quem, de vez em quando, vemos documentários na televisão, personagens lendárias com vidas completamente loucas, que escolheram conscientemente esse caminho … e que sofreram muito pelo facto de o terem escolhido. Não posso dizer se essas pessoas foram felizes ou não, evidentemente. Mas sei que o P foi. Pelas razões acima descritas. E porque se apercebeu do significado do Ser. Saber que Somos tem a ver com a tomada de consciência do dom da vida, que nos foi dado por Alguém que seguramente nos Ama para nos ter dado existência e, sobretudo, liberdade.

Penso que se juntarmos a consciência do Ser a uma vontade disciplinada de olharmos sempre o bright side of life, e nos deixarmos maravilhar pelos pequenos/grandes gostos da vida, tudo se transforma. E aí há espaço para a emergência da Alegria.

Digo eu…. E quem sou eu? Só me parece é que fomos deixando que a vida nos fosse retirando a capacidade de vibrar e de nos maravilharmos. Vamos ressuscitar essa capacidade! Pelo meu lado, vou continuar a sonhar com fadas, princesas, príncipes e castelos …

PCP

Reconciliação

Hoje é Domingo, e eu não esqueço a minha condição de Católico.

Os 10 mandamentos da reconciliação

1. Aceitar-se a si mesmo, tal como se é, com alegria.
2. Ter em conta aquilo que recebemos, mais do que aquilo que nos falta.
3. Agradecer mais do que se queixar.
4. Elogiar os outros em voz alta.
5. Nunca se comparar aos outros.
6. Viver na verdade, sem temer chamar bem ao que é bem e mal ao que é mal.
7. Resolver os conflitos pelo diálogo e não pela força.
8. Ao dialogar, começar por aquilo que une e só depois falar do que divide.
9. Nunca se deitar sem dar o primeiro passo para a reconciliação.
10. Estar convencido de que perdoar é mais importante do que ter razão.

(Cardeal Dannels)

10 janeiro 2009

Não há luar como o de Janeiro nem amor como o primeiro

O nosso vinho era bom. No paladar, na cor, no equilíbrio do gás, sem cristais, engarrafado com direito a rótulo, a gravata de ráfia e a lacre, timbrado com as armas dos antepassados. Era o melhor ganho que a terra nos dava e qualquer ameaça às nossas latas carregadas, carinhosamente enxertadas, podadas e sulfatadas, fazia explodir a ira de meu Pai. Era ele que enxertava e que podava, que levava dias de Abril e Maio a ver os gomos, o desenvolvimento dos gomos. Depois os cachos e o desenvolvimento dos cachos. A catar ladrões pelas videiras acima e a instruir a canalha que vigiava as vacas, que em vez de andarem a pasmar, fossem tirando os ladrões às videiras. Cada enxerto pegado era coisa de se ir ver. Naqueles dias ainda frios de Dezembro e Janeiro, que era a época da poda, passava o tempo em cima do cavalete e tinha uma tesoura especial. Aliás, toda a ferramenta dos seus trabalhos era especial e não tinha permissão para andar na baila. A cesta da enxertia era um tesouro, a ver em exclusivo com os olhos. E trabalhos que metessem videiras eram altos cargos a pedir protocolo.


Meu Pai fumava muito e só de pensar que outro cancro o podia levar de vez, me dava horas de insónia e sessões de choro na cama. Todos os anos, o jeito de ele podar, fazia-lhe gretar o dedo anelar. Ao almoço, inspeccionava a ferida, deitava-lhe mercúrio-cromo e vinha, do toutiço às orelhas, carregado de cisco da vinha. Gostava de o sacudir. Gostava daquele cheiro dele, a tabaco versus lavanda, misturado com o cheiro lá de fora impregnado na lã da camisola. Sabes quantos cigarros fumei desde manhã? Quatro. A podar fumo menos. Nesse tempo fumava um tabaco de enrolar, acabado de lançar pela nossa Tabaqueira. E eu, que morria que ele morresse, pensava com os meus botões que o tabaco o ia matar e seria mesmo bom que demorasse muito a podar a quinta toda, que os homens sábado e domingo não o pudessem vir ajudar, que sempre fumava menos e assim fintava a morte.


A nossa vinha era “do tarde”. Com o ribeiro a tornear a quinta, num baixo e muito irrigada, fazia a terra mais fria e lenta. Ou seja, a nossa agricultura brotava sempre mais tarde que a dos outros e vinha mais exuberante. Fomos, durante anos, quem mais milho produziu por hectare no concelho. Éramos os últimos a lavrar, a semear, a colher. Na reunião anual com a Adega Cooperativa acertávamos as datas mais finais para entregar as uvas. Como não tínhamos caseiro, não havia partilha de cachos, nem discussão de meias ou de terços. Para mim, coisa ruim. Tinha tido a sorte, num ano em que um tio, por ausência, me incumbiu de lhe tomar conta da vindima e de verificar a partilha. Com direito a ordenado, foi um ver se te avias a contar cestos – um para eles, dois para nós – e a marcar com a navalha, na chibata de oliveira. Mas lá em casa, a sina ditava que vindimasse, que acarretasse, que apanhasse bagos do chão, ou que ficasse à moenga. À escolha. Apanhar bagos nunca me entusiasmou. Quando ganhei corpo, gostava de carregar ao ombro, como os homens, ou de mostrar a força na manivela da moenga e na alavanca da prensa. As raparigas fortes eram mais acarinhadas.


Sem sombra de dúvida que colheita empolgante era a vindima. Permitia toda a espécie de gente: homens, mulheres e crianças. Merendava-se bem, reinava a alegria e enchia-se a barriga de uvas diversas: morangas, dedo de dama, e ainda havia uma videirinha trazida do Douro, por graça, que dava umas uvas muito doces. Nada disso entrava nos balseiros que iam para a Adega. Deus nos livre de traçar o vinho. E a tarefa pedia traje a rigor: chapéu, boina ou lenço à cabeça, uma camisa velha e dois farrapos: pr’á rodilha e pr’ò “purso”. A rodilha pede um pano grosso, para calçar o cesto sem trilhar a cabeça. O pulso, pede um lencinho da mão, em jeito de ligadura, que impeça as pingas de escorrerem pelo braço até ao sovaco e o incomodativo cola-descola. Ainda que “quanto mais colar, maior é o grau”. Mas isso era medido à entrada da Adega e não nos competia a nós, simples jornaleiros, aferir açúcares.

Quando o vinho verde entrou nas bocas do Mundo e a Adega Cooperativa tudo fazia para chamar a si as colheitas e cobrir as encomendas, muitos deixaram de ter o trabalho em casa. Caíram em desuso os lagares, acabaram as noites de pisadas e o cheiro de brolho fermentado. Ficava o suficiente para o consumo do ano, em alguns casos, e o resto seguia nas carrinhas dos tractores para a Cooperativa, onde os sócios se abastecem à vontade, descontando no ano seguinte e dispensando-se o uso de dinheiro. Um luxo. Na vila, à boca da ponte, os miúdos esperavam os tractores para se empoleirarem no taipal traseiro e apanharem a boleia até à Adega. Sempre enchiam o bandulho e armavam um pagode a atirar bagos a quem passava. Era a única fila de trânsito que conhecíamos, feita de tractores e meia dúzia de carros de bois, noite e dia, desde o fim de Setembro até meados de Outubro. Era a aldeia a vir à vila, sem ideia de ir ao tasco ou à missa, e a vila orgulhosa dos seus lavradores, desejando-lhes muitas pipas. E era, também, o meu momento de glória.

Meu Pai ia à vida dele e confiava-me o tractor. Puxas à frente, desengatas e desligas. A emoção era tal que quase caía numa tentação do diabo: tratá-lo pelo nome. Ok Zé. Ele tão bonito... boa figura, olho cor de sulfato, um fidalgo com coração simples. Gostava de conviver, metia-se nas tascas todas as noites, adorava a gente da sua terra, de os ouvir, de lhes dar coisas, de trocar favores. Vens-me cá podar, afogo-te em vinho e lavro-te o campo grande. Conhecia-os de gingeira. Aos domingos, metia-os no carro e iam lanchar a Tuy. Para alguns, continuava o menino Zézinho. As peixeiras vibravam com ele. Zéziiinho! e quando uma bez me lebou no seu motão? Cala-te mentirosa. Ai num s’alembra? Ha, ias com as pernas todas à mostra. Isso é que tu gostavas, ordinária... Ai que bããodido. A menina num bá no que diz o paizinho oubiu? Doce, bom mas bruto, cegava de raiva e berrava sem acanho onde quer que fosse. Era justo, mas usava da força para intervir por um amigo, pela Mulher, pelos sobrinhos... menos por mim. Se forem maiores que tu, agarras no que estiver à mão e dás-lhes.

Conheci-o ainda antes de todas as muitas vindimas, peixeiras e lavradores, como topógrafo da Celulose de Angola. Usava bons botins de carneira, passava dias fora de casa, voltava cheio de pó e de saudades e era o herói dos seus ajudantes a quem chamava “os meus capatazes”. Nenhum branco mandava comprar uma grade de cervejas todos os dias para o pessoal beber nas longas horas que passavam no mato. Quando deixamos o Alto-Catumbela, esses homens formaram uma barreira à nossa frente, choraram como crianças e vi o meu Pai abraçar um por um, desfigurado de tanto desespero.


DaLheGas

09 janeiro 2009

no dia 31 de dezembro de um ano qualquer, a polícia foi chamada, de emergência, a um estabelecimento prisional da cidade. lá dentro, vários guardas prisionais, armados até aos dentes, evitavam, com dificuldade, conter uma multidão. o director da prisão, talvez por ser um dia especial, tentava desesperadamente evitar um banho de sangue - por isso, era um combate desigual. nem sempre as armas nos coldres são dissuasor suficiente. a orda de indivíduos havia percebido que as pistolas e metralhadoras não seriam usadas e tirava vantagem desse facto, numa espécie de coreografia do gato e do rato, em movimentos ziguezagueantes, enquanto os guardas prisionais, encostados ao muro exterior tentavam, como podiam, conter toda aquela gente, que não parava de correr de um lado para o outro. quando a polícia, do lado de fora da prisão, chegou, deparou-se com um estranho cenário..

muita gente se interrogou se o que aconteceu nessa noite alguma vez aconteceu mesmo ou se fora antes um delírio colectivo, próprio das mudanças de milénio: centenas de pessoas, tentavam, desesperadamente, ENTRAR naquela prisão. pior do que "cá fora" não deveria ser, riam-se os populares, ao saber do acontecimento nos telejornais do dia seguinte, 1 de janeiro de um ano qualquer.

o homem e o cão, sentados sob o esplendoroso sol de inverno, esperavam qualquer coisa. o homem lia o jornal que o vento havia arrastado, minutos antes, e que só havia parado junto a uma das suas pernas. o cão, um pequeno cão de um belo castanho dourado, dir-se-ia que era um cão feliz. todos os cães felizes têm uma cara de felicidade estampada. o homem lia a notícia, naquele 2 de janeiro de um ano qualquer, que falava de uma estranha alucinação colectiva. dezenas de guardas prisionais, do lado de dentro naturalmente, juravam terem sido chamados a conter uma multidão de pessoas que alegadamente tentava desesperadamente ENTRAR numa determinada prisão. os presos (que os havia, pois fazem parte de qualquer prisão, mesmo nas histórias) não tinham reparado em nada, nem escutado qualquer ruído estranho, nessa mesma noite de passagem de ano. tal como os vizinhos dessa prisão, que se situava algures em plena malha urbana, que não haviam reparado em qualquer outra coisa que não fosse num estranho bailado de guardas-prisionais, primeiro, e, depois, nos muitos polícias, do lado de fora da prisão, estupefactos e parados, olhando para os seus agitados colegas, do lado de dentro. entre uns e outros, o muro de sempre. nem sombra de viv'alma, segundo todos os polícias e todos os vizinhos das redondezas..

este fenómeno de alucinação colectiva dos guardas prisionais foi imediatamente crismado pelos especialistas como "síndroma da cidade X": "estado colectivo de perturbação psíquica, durante o qual grupos inteiros declaram solenemente terem sido confrontados com um movimento de indivíduos que teimam em agir em sentido contrário ao do bom-senso e de toda a lógica, não havendo qualquer forma objectiva de o demonstrar, nem testemunhas terceiras de tais alegados fenómenos".

o homem do cão fez um esgar de perplexidade, depois de desconfiança e deitou fora o jornal. levantou-se do banco de ocasião, assobiou ao cão e seguiram viagem, pela ruela, sempre do lado onde o sol batia com mais força. enquanto caminhava, resmungava para consigo mesmo: "estes tipos inventam cada coisa..!". não que lhe importasse demasiado. agora, já pouca coisa lhe importava. o seu cão - isso sim, interessava-lhe -, o resultado do "club desportivo oriental", notícias de um ou outro amigo. reminiscências avulsas de uma outra vida, bem se poderia dizer.

na noite de sete para oito de janeiro de um ano qualquer, fez muito frio. as autoridades criaram alguns espaços para os sem-abrigo pernoitarem, protegidos assim do frio, especialmente inclemente. muitos recusaram, contra todo o bom-senso e toda a lógica. os técnicos da protecção civil tinham andado, nessa mesma noite, a tentar convencer esses indivíduos a aceitarem a oferta. todos, sem excepção, juravam ter escutado dezenas, centenas, de respostas negativas. "que haviam feito tudo, que haviam tentado, que à força não poderia ser.." havia um sem-abrigo, muito mal-criado por sinal, que atiçava um pequeno cão, de pêlo castanho dourado, aos técnicos, enquanto dizia qualquer coisa como "agora digam-lhes que é o síndroma de X e ficamos todos bem, cada um na sua. ide, deixai-nos em paz!!".

na manhã de oito de janeiro de um ano qualquer, o sol brilhava de forma especial. no computador do centro de meteorologia da cidade, o rapaz não conseguia explicar o gráfico de temperaturas no computador. num mapa colorido e pleno de movimento, viam-se as mínimas e as máximas, a evolução geográfica da onda de frio. estranhamente, dir-se-ia que tinha havido zonas nessa noite em que a temperatura não tinha caído: zonas quase desertas à noite, nalguns bairros mais históricos, perto de monumentos bem conhecidos, sob arcadas diversas (ele conhecia em detalhe quase toda a cidade, de tanto a vigiar noites a fio, através do computador) e também em volta de um conhecido estabelecimento prisional. "não podia ser", pensava o rapaz, "não podia ser". aquilo ia contra todo o bom-senso e contra toda a lógica..


estranha esta cidade, em certos dias.

08 janeiro 2009

Arrumações


“Certifico, por este meio, que a família Fritz foi inquilina do apartamento da Grolmanstrasse, nº 15, em Berlim Charlottenburg, desde o ano de 1938 até à destruição daquele prédio, em Agosto de 1943, do qual fui administrador. Durante todo esse período não pude constatar da parte do senhor Fritz, nem da mulher, nem dos filhos, que a família fosse simpatizante de Hitler. A família também nunca me cumprimentou com a saudação idiota (“Heil Hitler”), facto que sempre apreciei. Por estas razões, estou em condições de testemunhar a seu favor.”

Hans Mulka
29 de Maio de 1945


Naquela manhã do dia 29 de Maio de 1945, Gottfried vestiu o melhor fato e despediu-se da mulher com um beijo. “Vou registar-me. Não demoro”. Faltavam dois dias para acabar o prazo que obrigava ao registo obrigatório de todos os militares ou membros de forças de segurança junto das autoridades de ocupação. Durante todo o dia, as mulheres da casa espreitaram-lhe o regresso da janela. Depois no outro. E no outro.

Gottfried Fritz voltaria a Berlim quatro anos e oito meses mais tarde, em finais de Janeiro de 1950. Esse intervalo da vida, de que nunca falou, passou-o em dois campos de internamento, como lhes chamavam, à época, e o maior período, quatro anos e um mês, esteve no Campo Especial nº 2, ex-campo de concentração nazi de Buchenwald, transformado pelo comando soviético em campo de prisioneiros. Gottfried, ex-agente da Krippo, a versão alemã da polícia judiciária, foi um dos 28.455 homens e mulheres (cerca de mil mulheres, algumas acompanhadas de crianças pequenas) internadas em Buchenwald no pós-guerra. Nenhum deles foi julgado.

Cheguei a Buchenwald numa manhã fria e de céu encoberto. Um dia de Inverno, quatro décadas e meia depois de Gottfried ter partido com um livre-trânsito da Cruz Vermelha na mão e licença para apanhar um comboio de regresso a casa. Cheguei num desses dias em que o mundo fica da cor do chumbo e a terra parece suar em frio. Buchenwald está afundado em sombras. Onde os pesadelos tomam conta do ar. Primeiro, o pesadelo dos 50 mil que aqui morreram de fome, doença, maus tratos e puro assassinato às mãos dos nazis; depois, o dos sete mil, enterrados sem nome na floresta que se adivinha ao fundo, durante a administração soviética do campo.

Quase seis décadas depois, nada disto tem importância e importa ainda a muito poucos. Na Grolmanstrasse, nº 15, em Berlim, ergue-se hoje um edifício moderno, onde tem sede uma consultora imobiliária, com negócios centrados na Alemanha, em França, na Europa Central e de Leste. Hans Mulka, o administrador do velho prédio arrasado por uma bomba aliada desapareceu há muitos anos. O testemunho que escreveu naquele dia 29 de Maio de 1945, seria anexado, em 1950, ao processo de “desnazificação” de Gottfried, que viveu até aos 100 anos. Sobreviveu para ver o muro cair em Berlim e a Alemanha reunificada.

Este fim-de-semana arrumei papéis. Velhos papéis que herdamos um dia. E que um dia deixamos que nos contem histórias de uma história que intuímos, como uma recordação que nunca vivemos.

Lembro-me bem das mãos do meu avô. Grandes e ásperas como a vida. E que guardavam as minhas quando me levava de passeio pelos jardins do palácio de Charlottenburg.

Mónica Bello

07 janeiro 2009

Largo da Boa – Hora

Não devemos matar o tempo, porque é ao tempo que compete matar-nos.

Ocorre-me esta alegação porque estou sentado no meu banco a olhar para o relógio, entretido a ver os ponteiros a moverem-se, e dou comigo a pensar quantas vezes acumulo inércias, apatias, rotinas, com o único propósito de matar o tempo cuja existência me aborrece e enfada.
Esse consumir do tempo em obra nenhuma, como fim em si mesmo, é um desperdício, um esbanjamento da alma.
E pior, é perigoso, porque esse esbanjamento da alma, por ser seu consumo, a vai reduzindo - de cada vez um pouco mais - até que a sobrante já só consegue servir para nos animar em ténue distinção daquilo que alma não tem.
A alma, que é o ânimo da vida humana, é consumível e perecível (pelo menos enquanto ânimo de corpo determinado).
Importa, pois, salvaguardar a alma, não em sentido metafísico ou religioso, mas literalmente, materialmente, pois dessa protecção e preservação depende a felicidade, a qualidade, a ventura da vida humana.
É curioso tanto cuidado com a matéria orgânica e tanta negligência com a alma. Repetem-se os votos de “boa saúde”, mas nunca se formulam votos para a alma, augura-se “saudinha” com desvelo, mas para a alma nem sequer léxico existe, (pela prevalência, vou passar a desejar “Boa Alma” prioritariamente a “Boa Saúde”).
Retomando. A salvaguarda da alma, entre outros requisitos de que aqui não cuido, exige, pois, que não se mate o tempo, mas sim que se passe por ele com avidez e sofreguidão relativamente a cada segundo, em feroz disputa, cedendo cada minuto apenas em contrapartida de pontos conquistados, num deve e haver constante e de ganho; “olho por olho, dente por dente”.
Estratégia para essa disputa, para esse jogo? Sonhar e Criar.
Sonhar. Esta acção, na realidade, desdobra-se em duas bem distintas e que se completam: a “Arte do Sonho” e o “Sonho da Arte”.
A ”Arte do Sonho” é idealizar, projectar, planear empreendimentos espirituais, sentimentais, afectivos, ou materiais. Não falo de calculismo, mas da descoberta de si próprio, da compreensão plena do seu precisar, das suas capacidades e potencialidades, da sua medida, dos seus valores e paradigmas, das suas condicionantes. Em suma, da sua essência de cada um.
Descobertas e fixadas essas, com autenticidade de consciência, segue-se o encontrar, para cada plano e momento da vida, os empreendimentos que passem a ser um querer, um desejar, uma vocação, para os quais convergirão todas as energias e recursos de que se disponha.
Trata-se de eleger um querer ser, um querer fazer, um querer dar, um querer ter, cuja prossecução consumirá exaustivamente o caminho de cada dia.
São múltiplos e cumulativos estes sonhos. Abarcam sentimentos, pessoas, religião, pátrias, cultura, filosofias, aparências, fortuna ou outras materialidades, estados, honras, poder, o que seja. O que a cada um disser sinceramente respeito, desde que sacie o seu coração, dando-lhe a plenitude da razão de ser, do seu ser específico.
Tem este sonhar, todavia, um limite: o da exequibilidade, o de ser possível ser realizado, dada a dimensão e seriedade do empenho, comprometimento, escolhas, renúncias e recursos cuja respectiva execução exige. A decepção e frustração são sempre um risco associado ao sonho, mas não podem, neste plano, ser uma certeza ou mesmo uma forte probabilidade,
É a imperatividade deste limite que abre espaço e justificação ao outro sonhar, que reputo indispensável e que completa o primeiro. Falo da fantasia, do devaneio, da ilusão e da utopia.
Este empreender para lá da realidade, do tangível, do provável, é o “ Sonho da Arte” e penso que se intui e explica por si mesmo, sem necessidade de mais considerandos.
Sobre o criar. Elegido o empreendimento pelo sonho, criar é convertê-lo em realidade. Sonhar é a inspiração, criar a transpiração.
Fé, confiança, trabalho e perseverança, são os ingredientes básicos aos quais é indispensável o fermento a que chamamos, simplificadamente, de sorte.
Sobre a sorte muito haverá a dizer. Faço tábua rasa dos muitos adágios, ditados e demais sobre o tema, porque discordo de todos os que conheço, e entendo ser um tema muito sério, a ser um dia tratado com a dignidade que merece.
O que quero relevar hoje é que, vivendo empenhados na concretização dos nossos sonhos, sendo essa concretização o nosso foco - ponto de convergência e irradiação da nossa luz - jamais perderemos o jogo contra o tempo, ganhando por cada minuto que passa a contrapartida justa e merecida, que é a nossa realização.
Na verdade, conseguirmos ou não concretizar os empreendimentos que sonhámos pode não ter tanta importância, porque a verdadeira coragem e vitória é termos ousado sonhar e lançado mãos-à-obra, com tudo o que somos e temos, em cada dia, hora e minuto que o tempo nos concedeu.
Por outro lado, também a nada nem a ninguém deve importar a dimensão, importância, e impacto relativos dos nossos sonhos. São matéria privada e privativa, a ser avaliada não por comparação com os outros e com a dos outros, mas por confronto consigo próprio, num sincero exame de consciência sobre o que sabia, podia, queria e devia ter sonhado, considerando as circunstâncias únicas do ser que se é e da sua envolvente, antecedente e presente, e que são irrepetíveis e incomparáveis com quem seja.
Cada um é único no seu ser e no seu quadro de existência. Essa singularidade é a dignidade da identidade de cada um de nós. Património, por natureza, vedado ao dever de explicação e interdito ao julgamento pelos nossos pares.
Neste novo ano, neste novo ciclo, que cada um aceite e se entregue, à “Arte do Sonho” e ao “Sonho da Arte”, na sua única e pessoalíssima medida, e tenha a força, coragem e determinação para, comprometidamente, arregaçar as mangas e ir à luta, criando. Pode não ganhar, mas pelo menos deixa de matar o tempo, arrastando a alma para o esvaziamento e perdendo, por isso, o jogo, já que é ao tempo que compete matar-nos, não o inverso.
Mas o tempo é matreiro e por isso cautela, porque há sonhos a longo prazo e é certo o aforismo:
o tempo não dá tempo a quem ao tempo tempo não dá.

ATM

06 janeiro 2009

Histórias de desejo e de gesto - I

Segredo-te silêncios ao ouvido
e os meus olhos param perto
do teu cabelo adormecido,
deixando hesitante
o prazer que perdura no resto
que é o espaço do instante
entre o desejo e o gesto.

JCN

05 janeiro 2009

Lanterna Vermelha

Diário de Amália, 5 de Janeiro

Primeiro dia na Fábrica da Ilusão. Um dos primeiros clientes foi o Sr. Roberto Costa que, ao apresentar-se, me deu um cartão-de-visita dobrado no canto, escrevendo a morada da Repartição de Finanças onde era chefe, não fosse eu precisar de algum conselho. Vi-lhe uma letra bonita e pequena, lenta e indiferenciada. Igual, estou certo, à forma como desempenha as suas funções. Há pessoas assim, que atravessam o mundo, a vida, as carreiras e os gabinetes com um vagar e uma invisibilidade que podem comover, passado o desprezo inicial que temos por tudo aquilo que nos parece insignificante, improdutivo, incapaz de agitar uma molécula do universo.

O Sr. Costa aproximou-se tímido, viúvo, com um fato em estado impecável comprado nas oportunidades de uma loja de bairro. Tudo nele revela cautela, atenção. Dobrará as calças com esmero, respeitando os vincos que engomou com diligência ao fim da noite, enquanto a televisão debita novelas felizes passadas em casas sem entradas. Os sapatos serão alinhados com um rigor de funcionário público e as gravatas penduradas com o cuidado com que tratará as matérias oficiais. No Sr. Costa não há espaço para o desleixo, porque também não o consente na sua repartição. A casa será pequena – duas assoalhadas apenas – mas tudo se organiza com zelo, inclusivamente o que parece supérfluo. O que existe guarda-se, porque à semelhança da parte profissional da sua existência, nunca se sabe se não será preciso.

O cliente entrou, e senti-lhe o impacto da minha cicatriz e da minha perna manca. A realidade, tal como dizia à Dra. Clara. Rodou muito os olhos pela entrada e adivinhei-lhe a sensação de desconforto entre a perfeição da recepção e a imperfeição da recepcionista. Como se fosse, no fundo, uma certidão que se passa fora de prazo, um documento validado com um selo branco falhado; uma desconformidade, uma fuga às normas instituídas com precisão, um impacto desconhecido na estabilidade fiscal do Estado.

Sugeri à Dra. Clara a operária (não estamos na Fábrica da Ilusão?) que poderia acompanhar este diligente funcionário público, viúvo e sem filhos, envergonhado, porque aqui não lida com o que é obrigatório para o contribuinte, área onde se agita com segurança discreta. O Sr. Costa não gostará de se evidenciar e terá alcançado cargos de chefia devido a uma antiguidade comprovável por documentos.

Aconselhei a Rosário, uma estudante carinhosa de Psicologia com um passado relativamente recente de voluntariado num lar da 3ª idade. Pareceu-me a pessoa indicada para conferir segurança ao cliente, levá-lo a uma desinibição gradual mas certa, induzir-lhe sensações de conforto e de companhia que o façam regressar, como quem retorna a uma pastelaria onde os croissants e o serviço são particularmente agradáveis. A Rosário é uma rapariga de altura média, com uns olhos muito escuros e um tom de voz suave, quente, envolvente e tranquilizador que saberá cativar um cliente com este perfil.

Pelo que soube, o Sr. Roberto Costa arrumou a roupa com um cuidado quase maternal, dobrando as calças pelo vinco, a camisa e o casaco nas costas da cadeira, a gravata do lado esquerdo tapando com precisão o bolso de cima onde guarda sempre o passe social. Escondeu umas meias claras dentro de uns sapatos arrumados com uma precisão milimétrica, e deu um jeito ao cabelo onde se evidenciam entradas crescentes. Cumpriu estas rotinas, que se presumem iguais às que tem em casa, com esmero e silêncio, balbuciando frases simpáticas por trás de um sorriso acanhado.

A surpresa, diga-se honestamente, parece ter ocorrido ao som dos primeiros afagos, quando se quebra o gelo que abrirá portas à volúpia. A nudez da Rosário, o seu tom convidativo, a gentileza das mãos que trabalham e do corpo que se oferece, juntamente, quem sabe, com algo esmagado e retraído dentro do funcionário público, terão desencadeado um vulcão de atitudes. O Sr. Costa tornou-se um caso de autoridade, líder daquela dança sexual, tomando iniciativas, exigindo e determinando comportamentos, definindo tempos, impondo padrões de desempenho ao nível das multinacionais mais ferozes. Foi sempre correcto, porém exigente; educado, porém determinado. Não houve espaço para o desperdício, para a improdutividade, para os tempos mortos. Havia uma verba e um tempo a gerir. À Rosaria exigia-se, como fornecedora de serviços, a total satisfação do cliente.

Findo o tempo previsto, o Sr. Costa voltou a vestir-se com a meticulosidade já evidenciada. Tudo se fez com uma coreografia perfeita assente na repetição, mais do que no ensaio. Quando passou na recepção para efectuar o pagamento, o Chefe da Repartição de Finanças atentou, mais uma vez, no contraste perfeição da recepção versus imperfeição da recepcionista. Voltou a ser o mesmo viúvo tímido, com um fato em estado impecável comprado numa perspectiva de poupança, e umas calças vincadas com desvelo de homem solitário. Pediu uma factura, nem sequer na ilusão de que lha passaríamos, mas porque era o cumprimento de um hábito responsável. Despediu-se, discreto e educado. Os olhos negros da Rosário e a cicatriz do meu olho juntaram-se-lhe na mente, como duas correntes de temperatura diferentes que desaguam no mesmo ponto.

Sou a realidade, Dra. Clara…

Cumpriu-se mais um dia.

MTS

04 janeiro 2009

Os Reis Magos

A adoração dos Reis Magos (Rubens, 1609. Museo do Prado, Madrid)


E eis que a estrela que tinham visto no Oriente seguia à sua frente e parou sobre o lugar onde estava o Menino.
Ao ver a estrela, sentiram grande alegria.
Entraram na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, prostrando-se diante d’Ele, adoraram-n’O.
Depois, abrindo os seus tesouros, ofereceram-Lhe presentes:ouro, incenso e mirra.

[Do Evangelho de hoje]

A Igreja celebra hoje a Solenidade da Epifania do Senhor e eu não esqueço a minha condição de Católico.

Indicadores, sondagens, gráficos, evolução, análises, medidas, rácios.

Precisamos de tudo isto para saber ler o estado da economia, da política, da saúde, da justiça. Precisamos de números para saber de onde partimos e onde queremos chegar. Precisamos de números, ainda, para saber qual o melhor caminho entre o ponto A e o ponto B.

Precisamos de algo que meça o nosso sucesso, o nosso património, o que temos, o que queremos. Medir é comparar e fazemo-lo com coisas quantificáveis, que nos indiquem se estamos ou somos mais ricos do que os outros, se o nosso êxito profissional nos garante benefícios maiores ou menores do que os do vizinho, do primo, do amigo, do colega.

Carros, casas, viagens, férias, aparelhagens, roupas, cartões de crédito, ordenados, fins-de-semana, livros, restaurantes.

Precisamos de tudo isto porque nos satisfaz necessidades básicas, porque equilibra a nossa vida, porque a torna mais divertida, menos tensa, porque proporciona alegria e satisfação (peço desculpa, mas guardo a expressão felicidade para outra dimensão) aos que vivem connosco.

Há dois mil anos o mundo era radicalmente diferente, e os três reis magos não precisaram de mais do que uma estrela para ver o sinal daquilo que para eles era a libertação. Arriscaram tudo, largaram tudo e foram atrás de um Menino que tinha nascido em Belém.

Indicadores e bens são importantes, e de modo algum incompatíveis com a estrela que permanece no oriente das nossas vidas.

Todos vemos essa estrela. Os Magos decidiram segui-la.

JdB

03 janeiro 2009

Coisas da nossa gente

Os Santos há muito que eram pretexto para o povo festejar. Desde o século XVIII que há notícias de arraiais em vésperas de Santo António, de bairros enfeitados, de fogueiras acesas e de folguedos pagãos, a que a Igreja ia atribuindo patronos. Dessa animação popular que corria como rastilho as ruelas da cidade, imbuída de costumes e saberes das gentes oriundas de todas as províncias do País, surgiu a Leitão de Barros a ideia de juntar os bairros num só local, de forma a promover as já institucionalizadas Festas de Verão do Parque Mayer. Para entusiasmar os participantes, Leitão de Barros elaborou o que se chamou o Grande Concurso de Marchas Populares. Com a ajuda preciosa de Norberto de Araújo, e do “Diário de Lisboa”, logo responderam algumas freguesias. Conforme fora estipulado, a Avenida da Liberdade acolheu os bairristas que seguiram ao Parque Mayer, já de forma organizada, “marchando”. Alcântara, sem saber, levava um futuro tesouro da nossa cidade, Amália Rodrigues. Tinha 12 anos. O despique foi tão bem recebido que dois anos depois, em 1934, a Câmara Municipal chamou a si a tutela do evento. Regulamentou o concurso e listou quinze requisitos a avaliar: música, versos, arte, guarda-roupa, aprumo, distinção, arcos, iluminação, pitoresco, alegria, vozes, cavalinho, marcha da rua, marcação e encenação. Tinham nascido as Marchas Populares de Lisboa.

Mas nem tudo foram rosas para as Marchas. Nas quatro décadas contadas até 1974, muitos foram os anos em que os bairros não saíram à rua, somando-se apenas dezanove desfiles. Entre 1935 e 1940 o Regime não permitiu – Espanha vivia a guerra civil e Portugal procurava consolidar-se. Entre 1941 e 1946, a II Grande Guerra e as restrições económicas. Em 48, 49, 50 e adiante em 59 e 62, idem – o Estado receava agitação interna. Em 1971, é de novo cancelada a festa por causa da guerra colonial. Após o 25 de Abril, o desgoverno e outras preocupações emergiam. Em 1981, as marchas desfilaram num lugar sem história, o Estádio do Restelo. Em 1987, nem houve concurso, desmotivando os participantes. Só em 1990, com Jorge Sampaio na Câmara, é que Lisboa revê os seus bairros bailando e cantando na Avenida. A Câmara dinamiza o evento, a ideia de Leitão de Barros ressuscita e devolve-se esse orgulho aos alfacinhas. Os marchantes são a alma das Marchas. Ficam palavras sentidas de alguns deles.

“Quando chega a hora de desfilar, choro, choro, choro… Arrepio-me e as lágrimas começam a cair pela cara abaixo. Não consigo falar. Aliás, eu nem sequer consigo ver a marcha. Olhar olho, mas não consigo ver.” Mário Albuquerque, comissão técnica dos Olivais

Não esquece um marchante que, apesar das suas orientações, “acabou por esbarrar contra uma árvore. Com arco e tudo.” Já desfilou com várias marchantes grávidas. “Nestas andanças surgem muitos namoricos que, algumas vezes, resultam em casamento.” Alberto Castro, ensaiador da Ajuda

Há uns anos, os preparativos atrasaram-se. “Estávamos muito aflitos, faltavam algumas coisas nos arcos e estava a Marcha toda à espera para ir para a Avenida. Em vez de ajudarmos a ‘despachar’, apanhamos todos um ataque de nervos que não conseguíamos parar de rir.” Lurdes Bicho, coordenadora das costureiras de Benfica

Inscreveu-se, mas “o primeiro repente, foi ir-me embora”, confessa. “Acabei por voltar no dia seguinte e vi dois casais a dançarem com miúdos ao colo. E iam trocando de braço o filho pequenino, vencidos pelo cansaço. Essa é uma imagem que eu nunca mais vou esquecer. Se com um filho ao colo eles faziam um sacrifício por participar, eu também podia fazê-lo.” Delfim Dias, marchante de Benfica

“Nunca falho. Quando tinha 18 anos arranjei uma namorada que me deu a escolher entre ela e as Marchas. Nesse ano fiz-lhe a vontade, mas depois terminámos o namoro. No ano seguinte lá estava eu de volta à Madragoa. Não há nada como o primeiro amor.” Mário Monteiro, o marchante mais antigo da Madragoa

“Sou de Marvila, e é o ‘bichinho’ que me faz vir. Não consigo imaginar-me sem participar na marcha.” Maria Santos, marchante de Marvila desde 1980

“Temos casos de marido, mulher e filhos. Todos dançam. Namorados costuma haver muitos. Quando o amor está no ar não se pode fazer nada.” Fernando Duarte, coordenador da Bica

Quando marcha não passa despercebida, mas o marido não a acompanha nestas lides. Todos os anos, em Fevereiro, inscreve-se nas marchas. A partir de Abril ele deixa de contar com ela. “Já está habituado. Fica em casa a torcer pelos Olivais.” Madalena, marchante dos Olivais

Em 2000 ficou excluída da participação por causa do guarda-roupa. “Era muito arrojado e eu já não tenho idade para usar decotes daqueles. Gosto de coisas mais conservadoras.” Adelaide Horta, marchante de Campo de Ourique

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