Uma boa história costuma dar bons filmes, mesmo que a qualidade da realização não sobressaia. Partir de factos históricos e revelar pormenores interessantes, até aqui guardados quase em segredo de Estado, ainda tornam a trama mais apetecível e especial.
«A Ponte dos Espiões» (1) soma tudo isso, com o argumento revisto pelos manos Cohen para garantir a qualidade na transposição para o cinema. O realizador é bem conhecido – Steven Spielberg – e fã das conspirações de bastidores, que conseguem influenciar o rumo dos acontecimentos, mais ainda quando envolvem momentos cruciais da história da América. Talvez pelo seu patriotismo e gosto pela democracia, parece preferir o cidadão comum àquelas personalidades públicas entronizadas pela História (em versão simplificada, bem entendido).
Spielberg aprecia mostrar as qualidades maiores das pessoas correntes, capazes de feitos extraordinários quando as circunstâncias o propiciam. Insere-se na matriz norte-americana em que herói quadra bem com o cowboy solitário, responsável e empreendedor, mas com o rosto de tanta gente. Basta ter a vontade e a coragem para assumir o papel. Em vez de privilegiar o ser superior, fadado para herói, a tradição anglo-americana tende a apostar mais na comunidade feita de anónimos, a quem um dia a realidade se encarrega de revelar a grandeza e o heroísmo.
Tal cosmovisão, torna aquelas democracias menos atreitas aos engodos das lideranças incontestáveis, protagonizadas por gente alegadamente iluminada que, rapidamente, se vai metamorfoseando em déspota. Já a Europa continental é mais dada à miragem dos chefes sacrossantos, camuflagem infantil (e populista) dos tiranos. Na Grã-Bretanha e nos EUA prevalece antes o pragmatismo orientado para o resultado, que significa lucro ou troféus valiosos, com espaço para sociedades plurais. Impérios sim, imperadores nem tanto. No fundo, estão cientes de que por detrás de um grande chefe estará uma excelente elite, igualmente secundada por um grupo amplo de talentosos. Reconhecem, claramente, o papel basilar da sociedade civil, sem necessidade de fechar fronteiras para evitar fugas em massa, uma vez que cidadãos gostam de ali viver e de colaborar, voluntariamente, para o bem comum. Vem isto a propósito do filme, passado durante a construção do Muro de Berlim.
Spielberg mostra-nos as manobras de bastidores ocorridas durante a Guerra Fria, recuando a 1957. Tudo começa por um gesto magnânimo da justiça americana ao chamar um dos melhores advogados do país a defender um KGB preso pela CIA. Como bom americano, Donovan desempenha a incumbência com máximo profissionalismo e coragem, dando pleno cumprimento à Constituição americana, que exige um julgamento justo para todos. Até mesmo traidores perigosos. Um princípio espantoso, mas de aplicação prática difícil, como o demonstraram as multidões que ostracizaram, abertamente, o corajoso advogado. Mas nada faria desviar o fiel jurista um milímetro da sua missão maior.
Segundo a melhor estirpe americana, Donovan guardou a combatividade para enfrentar as forças poderosas que se opunham a um julgamento isento, e transbordou de paciência com a figura fragilizada naquele insólito processo: o espião russo.
Aplicando toda a habilidade tática que o faziam brilhar na barra, no sector dos seguros, revelava-se agora um negociador imbatível com todos os interlocutores. Sendo que nenhum era fácil, quase todos assemelhando-se a monoblocos inamovíveis, da CIA ao juiz, passando pelas autoridades soviéticas.
Até do ponto de vista psicológico e negocial, é espantoso assistir à criatividade persuasiva do advogado para conseguir demover obstáculos de aparência intransponível. Alguns com contornos ridículos, que conferem imenso humor ao thriller, como a suposta família alemã do espião russo.
Logo no primeiro round levou a melhor, apesar de não obter tudo o que pretendia: a pena de morte exigida pelos jurados e pelo juiz acabou por ser comutada para prisão perpétua, em nome de um argumento sábio de Donovan, que se veio a revelar certeiro. Se algum americano viesse a cair nas malhas da KGB, seria mais útil ao país manter vivo o espião para a troca de prisioneiros.
Um par de anos volvidos e a história dava razão ao advogado: um piloto dos EUA foi apanhado em missão clandestina na Rússia.
Corria o ano de 1961, com as duas superpotências a afrontar-se perigosamente. Basta lembrar a célebre madrugada de 13 de Agosto, em que um muro extensíssimo (2) fracturou a capital do antigo Reich, junto às Portas de Brandenburg, deixando a zona Leste, com os valiosos museus e a majestosa avenida Unter den Linden para os soviéticos. A metade mais devastada de Berlim ficou para a Alemanha Ocidental, convertida num enclave cada vez mais isolado no meio de uma República Democrática Alemã (pró-URSS) abertamente hostil e militarizada.
Mal Moscovo emite um vago sinal de abertura para eventual troca de espiões, a CIA encomenda as difíceis negociações (as primeiras!) ao habilidoso advogado do espião russo, que conseguira a proeza de dobrar o juiz americano e tornar-se amigo do KGB. Tanto talento convinha agora ser usado para resgatar um piloto que sabia demais sobre as armas secretas da defesa americana.
Sem hesitar, Donovan aceitou a nova missão e rumou até Berlim para negociar com a Embaixada russa. Tinha apenas um fim-de-semana. Em casa tivera de inventar uma suposta viagem a Londres com clientes, porque se tratava de uma viagem secreta, em avião militar.
Na Alemanha, as peripécias multiplicam-se, num ambiente dantesco, agravado pelo frio e pela penúria. A CIA tivera o cuidado de lhe destinar um quarto infecto, para tornar mais credível que o advogado estaria a agir por conta própria. Como de facto nada o detinha, até o Inverno rigoroso de Berlim só conseguiu tornar tudo mais heroico, pois até os flocos de neve se lhe entranharam nos ossos. Mal transpôs o Muro, um gang pouco recomendável ficou-lhe com o sobretudo confortável da Quinta Avenida. Era o preço para chegar vivo e pontualmente à reunião na Embaixada russa.
Assiste-se, depois, a uma sequência de encontros, no início sem sentido e a temer-se o pior desfecho. Aos poucos, Donovan vai conseguindo romper o muro de indiferença e desencantar interlocutores capazes para as negociações, virando o provérbio do avesso para jogar plenamente a favor dos EUA: entrada de cordeiro e saída de leão.
Imprevistamente, russos e alemães tentam negociar com o americano, em separado e em concorrência descarada, a troca de diferentes cidadãos dos EUA: o militar para os russos, um universitário de Yale para os alemães, desejosos de assim saírem do estatuto menor de mero satélite da URSS. Em vez de ficar atrapalhado com o desencontro de interesses entre os dois players do bloco soviético, bastante assanhados na sua postura, Donovan resolve apostar no dois em um para trocar um russo por 2 americanos. Enfim, uma aritmética que só um advogado híper hábil tornaria atractiva e até incontornável para os seus difíceis interlocutores.
São tocantes aqueles minutos históricos em que se inaugurou a troca de prisioneiros entre as superpotências. Ironicamente, do lado americano, só o espião fazia companhia ao advogado, que enfurecera a CIA com a giga-joga ousada de forçar a entrada do estudante tonto no processo negocial (atrasara-se a fugir de Berlim Leste antes de o muro ficar concluído), arriscando-se a deitar tudo a perder. Desta vez, era a amizade com o KGB que permitia a Donovan fazer vingar a sua fórmula e forçar a entrega dos 2 americanos em locais distantes do Muro, adensando assim a nebulosa deste caso de desfecho incerto.
O sucesso rotundo levou a Casa Branca a entregar outro dossier difícil a Donovan, que voltaria à sua prática habitual, de superar por muito os objectivos da CIA, salvando bastantes mais vidas do que as esperadas. O novo feito passou-se em Cuba, durante a fase mais agressiva do regime despótico de Fidel Castro.
À época, talvez só os americanos tenham ficado a ganhar. Mas hoje muito mais gente ganha em testemunhar como a realidade também pode superar a melhor ficção. Inspirador!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1)
FICHA TÉCNICA
Título original:
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BRIDGE OF SPIES
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Título traduzido em Portugal:
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A PONTE DOS ESPIÕES
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Realização:
|
Steven Spielberg
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Argumento:
|
Matt Charman, Ethan
e Joel Coen
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Produzido por:
|
Steven Spielberg
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Banda Sonora:
|
Thomas Newman
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Duração:
|
141 min.
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Ano:
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2015
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País:
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EUA, Alemanha e Índia
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Elenco:
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Tom Hanks (o advogado),
Mark Rylance (o espião),
Amy Ryan (a mulher do advogado)
Alan Alda
Scott Sheperd
(CIA)
Austin Stowell
(piloto)
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(2) O “Berliner Mauer” foi
construído em tempo recorde pela República Democrática Alemã, por decisão
unilateral do regime comunista, para conter a sangria de gente que,
diariamente, fugia para o Ocidente. Além da barreira de betão, veio a incluir
mais 66,5 km de gradeamento metálico, 302 torres de observação, 127 redes
metálicas electrificadas com alarme e 255 pistas de corrida para cães de guarda
treinados para matar. O muro era patrulhado por militares da Alemanha Oriental
Socialista, com ordens para eliminar quem tentasse escapar, em cumprimento da célebre
Schießbefehl
ou "Ordem 101". E foram muitíssimos. Apesar da controvérsia quanto ao
número de perdas em vidas humanas, segundo o regime comunista houve: 80 mortos,
112 feridos e milhares de aprisionados. Como efeito colateral, dezenas de
milhares de famílias ficaram divididas, perdendo totalmente o contacto. Estas
estatísticas são contestadas por diversos órgãos internacionais de Direitos
Humanos.
A
9 de Novembro de 1989 começou a derrocada do Muro da Vergonha, como era conhecido pelos alemães.