30 agosto 2019

(Também) Duas Últimas *

* publicado originalmente a 15 de Outubro de 2010. Porque re-publico este post tão cedo? Porque ontem vi o último episódio de Os Últimos Czares, aquele que mostra a barbárie do assassinato, a sangue frio, de uma família inteira - pai, mãe e quatro filhos que não mereceram aquele fim. Ninguém merece aquele fim, por mais desastrado, incompetente e impiedoso que tenha sido. Na verdade a música russa fez o povo russo.

***

Uma leitura mais arrojada da história da música suscitará esta interrogação: o que apareceu primeiro: a música, ou os povos que a compõem? Isto é, somos o que cantamos ou cantamos o que somos? A resposta mais óbvia dirá que os povos surgiram primeiro. A resposta mais diplomata - e a diplomacia pode ser uma forma de adiamento das resoluções - dirá que o importante é a beleza das coisas; a resposta arrojada afirmará, categoricamente, que a música surgiu antes de ser composta.

Se pegarmos na última teoria - e só essa é que interessa neste tempo outonal - podemos então defender que o samba é anterior ao achamento do Brasil, pelo que, nesse sentido, foi a música (que já existia) a fazer o brasileiro - e não a inversa. Talvez o samba já existisse e requeresse apenas uma mente que o puxasse para fora, uma voz que o cantasse ou um corpo que o requebrasse.  

Em 1900 o conde Tolstoi escrevia um texto, que intitulou "tinha de ser assim?", onde pinta um retrato terrível da sociedade desse tempo: um retrato de miséria e opulência, de tristeza e sofrimento, de fome e excesso. Um retrato com cores outonais ou invernosas, onde a alegria não tem lugar e os corpos estão cobertos de chagas, de pele e osso, de jóias e caviar. É um tempo doloroso, que existiu em tantos outros países, em tantos outros tempos.

Em 1915 Sergei Rachmaninov compunha as Vésperas, a sua maior obra para coro a capella. Uma obra monumental, baseada em antigos cantos tradicionais, que recupera raizes nacionais e pretende fugir das influências ocidentais. Uma obra terrível, como só a beleza absoluta o pode ser. Uma obra volumosa e densa, inadequada para tempos modernos de ligeireza e rapidez, imprópria para quem acha que o mundo é o seu pequeno mundo.

Tal como não foi Ary Barroso que compôs Aguarela do Brasil (embora em termos oficiais o seja) também, em bom rigor, não foi Rachmaninov quem compôs as Vésperas. Quando, em 1500, Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, já ouviu o ritmo daquele batuque, batuque que fez do brasileiro o que ele é. O conde Tolstoi em 1900, e o compositor quinze anos depois, revelaram o que já existia desde há milénios: o peso, a sonoridade baixa, a espessura, a elevação ao céu de almas divididas entre o penoso e a abundância. 

Parece-me óbvia a resposta à pergunta inicial: na verdade, é a música que faz os povos.

JdB





29 agosto 2019

Poemas dos dias que correm

Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...

Cecília Meireles, in 'Viagem'

***

Nem Sequer Sou Poeira

Não quero ser quem sou. A avara sorte
Quis-me oferecer o século dezassete,
O pó e a rotina de Castela,
As coisas repetidas, a manhã
Que, prometendo o hoje, dá a véspera,
A palestra do padre ou do barbeiro,
A solidão que o tempo vai deixando
E uma vaga sobrinha analfabeta.
Já sou entrado em anos. Uma página
Casual revelou-me vozes novas,
Amadis e Urganda, a perseguir-me.
Vendi as terras e comprei os livros
Que narram por inteiro essas empresas:
O Graal, que recolheu o sangue humano
Que o Filho derramou pra nos salvar,
Maomé e o seu ídolo de ouro,
Os ferros, as ameias, as bandeiras
E as operações e truques de magia.
Cavaleiros cristãos lá percorriam
Os reinos que há na terra, na vingança
Da ultrajada honra ou querendo impor
A justiça no fio de cada espada.
Queira Deus que um enviado restitua
Ao nosso tempo esse exercício nobre.
Os meus sonhos avistam-no. Senti-o
Na minha carne triste e solitária.
Seu nome ainda não sei. Mas eu, Quijano,
Serei o paladino. Serei sonho.
Nesta casa já velha há uma adarga
Antiga e uma folha de Toledo
E uma lança e os livros verdadeiros
Que ao meu braço prometem a vitória.
Ao meu braço? O meu rosto (que não vi)
Não projecta uma cara em nenhum espelho.
Nem sequer sou poeira. Sou um sonho

Jorge Luis Borges, in "História da Noite"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

28 agosto 2019

Vai um gin do Peter’s ?

DESCOBERTO O SEGREDO DO DESAPARECIMENTO SÚBITO DO ‘PRINCIPEZINHO’

Dez meses antes do fim da Segunda Guerra, o avião-correio de Antoine de Saint-Exupéry (AS-E) sumiu-se na noite, sem deixar rasto, ao cruzar os céus mediterrânicos! Nesse 31 de Julho de 1944, o francês pilotava um aparelho de fabrico americano, cumprindo a sua missão quase diária ao serviço da causa aliada. 

A estranheza do desaparecimento residia na falta de vestígios do próprio avião. De resto, aquelas travessias aéreas envolviam enorme risco e muitos sucumbiam, ora do lado aliado, ora nazi. De início, ainda se admitiu que tivesse aterrado no deserto magrebino e precisasse de ficar escondido até alcançar território seguro. Mas o silêncio prolongado tornou evidente o desfecho mais duro – Saint-Exupéry morrera! Durante 50 anos, pairou o mistério sobre as circunstâncias do seu desaparecimento repentino.
  
À data, o aviador já era famoso pela sua escrita, lida e apreciada muito para além das fronteiras gaulesas. «Vol de Nuit» ou «Terre des Hommes» eram títulos conhecidos no Ocidente, revelando a magia dos seus voos nocturnos. Cada viagem ao luar tornava-se, para Saint-Exupéry, fonte de inspiração inesgotável. Ainda assim, o livro mais célebre – «O PRINCIPEZINHO», com texto e ilustrações do autor – foi publicado uma semana antes da sua morte. 

Durante a Segunda Guerra, o francês chegou a passar temporadas em Lisboa, que lhe valeram linhas desencantadas e pessimistas, como lembrou há uma década o filme português «Fantasia Lusitana» [tema do gin de 19 de Maio de 2010]. Nos anos impiedosos de 1939 a 1944, Exupéry decepcionou-se profundamente com o rumo da História e horrorizou-se com a força avassaladora do mal. Seria invencível? Curiosamente, as viagens aéreas pela calada da noite reconciliavam-no, de novo, com a vida e suscitavam-lhe meditações magníficas, que depois registava, celebrando as nesgas de esperança descortinadas num mundo em destruição. No meio do maior perigo, esquecia os bombardeios e deixava-se guiar pelo coração para alcançar as estrelas.  


Exupéry orientava-se, assim, para a essência da realização pessoal, mergulhando naquele território íntimo e de escala mais humana: «Felicidade! É inútil buscá-la em qualquer outro lugar, que não seja no calor das relações humanas… Só um bom amigo pode levar-nos pela mão e libertar-nos.» Descobria na gratuitidade afectiva o melhor porto de abrigo, a maior potência regeneradora: «A verdadeira solidariedade começa onde não se espera nada em troca.» O segredo? Ver com o coração:



No esforço para vislumbrar pequenos oásis de Bem entre os escombros de uma humanidade enfurecida, AS-E acabou por nos deixar um legado de coragem e frescura cristalinas: «O que dá beleza ao deserto é ele esconder um poço, algures»; «Quando alguém está muito triste, o pôr do sol é revigorante»; «Deve pedir-se a cada pessoa o que está ao seu alcance realizar»; «É muito mais difícil julgar-se a si mesmo do que os outros. Se consegue julgar-se bem, é um verdadeiro sábio»; «Foi o tempo que passou com a sua rosa, que a tornou tão importante».


Em relação ao enigma do avião desaparecido, que mereceu uma curta-metragem da BBC: surgiu uma primeira pista com o aparecimento de uma pulseira de prata na rede de um pescador de Marselha. Tinha sido oferecida a Saint-Exupéry pelo editor nova-iorquino reconhecível pela morada ali inscrita para o francês não se perder em Manhattan, uma vez que não falava inglês. Nas redondezas da costa, descobriram-se os destroços do avião. Por último, chegou-se ao piloto nazi que o terá alvejado a 31 de Julho, desconhecendo estar a abater um escritor de que gostava! Se dúvidas houvesse sobre o horror que a guerra provoca…


Por junto, o embate constante com uma realidade infernal não ensombrou os escritos (maioritariamente) luminosos e tranquilos que Saint-Exupéry quis partilhar urbi et orbi. O aviador-poeta pôde testemunhar duplamente pela palavra e com a vida o horizonte fascinante que o olhar do coração acrescenta ao mundo visível. 


Felizmente, nem os bombardeamentos da Luftwaffe, nem as profundezas subaquáticas do Mediterrâneo conseguiram silenciar a voz do PRINCIPEZINHO.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

27 agosto 2019

Do regresso a casa

Presumindo que a série que estou a ver agora na Netflix - Os Últimos Czares - é historicamente correcta, a meia dúzia de episódios que já vi transformam o Czar Nicolau em alguém que pouco mais é do que totalmente incapaz. Não sendo versado nessa parte da história Russa, não tinha a noção da dimensão do falhanço dele como governante. Percebe-se que, ao longo do seu reinado, não tomou uma única decisão certa: pior, todas a decisões importantes que tomou foram desastrosas. 

O último episódio que vi aborda o fim do reinado dele, dada a sua total incapacidade para perceber o que havia a perceber na Rússia: o descontentamento popular, a fome, a miséria, as guerras desastrosas, a perda de respeito. Uma viagem de comboio, uma folha de papel e uma caneta: num instante, no breve instante que demora uma assinatura no fundo de um documento, e extinguiam-se, com aquela abdicação, 300 anos de dinastia Romanov. Um filho herdeiro hemofílico e um irmão que não quis aquele presente envenenado, tornaram a Rússia num país desgovernado.

Deste último episódio - que termina com a ida da família imperial para o local onde serão brutalmente assassinados - guardo um diálogo. A mãe despede-se dele, percebendo que não sabe quando voltará a vê-lo. Insta-o a que vá para Inglaterra, que fale com o "primo George". Ele diz que não, que vai para um local de retiro na Rússia, cujo nome não fixei. A mãe fica aterrorizada e tenta convencê-lo a ir para outro país. Ele responde: vou para casa, mãe.

Tenho escrito muito sobre este conceito de regresso a casa. Nunca me tinha confrontado com este pensamento - ou este movimento de retorno da alma - revestido de tanta tragédia.

JdB

26 agosto 2019

Do vinho da Madeira

Há muitos anos - seguramente mais de 40 - vi um filme que a minha memória diz chamar-se Como Matei Rasputin, embora possa estar enganado. Uma breve pesquisa na internet menciona um filme intitulado I Killed Rasputin, datado de 1967. Para o tema pouco importa.

O filme, baseado numa obra do príncipe russo Felix Yusupov, trata da morte do Grigori Raputin, um padre siberiano que alcançou uma tremenda e funesta influência sobre a czarina Alexandra e, indirectamente, sobre o czar Nicolau. Lembro-me que ele foi envenenado, baleado, atirado a um rio, e só então terá morrido.

Sigo agora, na Netflix, Os Últimos Czares, uma série sobre o fim da dinastia Romanov. A série evidencia bem a fraqueza do czar, a debilidade da czarina devido à hemofilia do príncipe herdeiro, o poder do padre siberiano, odiado por toda a Rússia. No episódio que vi ontem, surge o príncipe Yusupov e a maquinação para eliminar Rasputine. Eis senão quanto vejo o inimaginável: alguém despeja veneno nuns bolos e numa garrafa; a câmara demora-se na garrafa - Justino's, um malvasia da Madeira com dez anos. É aí que tudo começa. 

JdB   



25 agosto 2019

21º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 13,22-30

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
Jesus dirigia-Se para Jerusalém
e ensinava nas cidades e aldeias por onde passava.
Alguém Lhe perguntou:
«Senhor, são poucos os que se salvam?»
Ele respondeu:
«Esforçai-vos por entrar pela porta estreita,
porque Eu vos digo
que muitos tentarão entrar sem o conseguir.
Uma vez que o dono da casa se levante e feche a porta,
vós ficareis fora e batereis à porta, dizendo:
'Abre-nos, senhor';
mas ele responder-vos-á: 'Não sei donde sois'.
Então começareis a dizer:
'Comemos e bebemos contigo
e tu ensinaste nas nossas praças'.
Mas ele responderá:
'Repito que não sei donde sois.
Afastai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade'.
Aí haverá choro e ranger de dentes,
quando virdes no reino de Deus
Abraão, Isaac e Jacob e todos os Profetas,
e vós a serdes postos fora.
Hão-de vir do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul,
e sentar-se-ão à mesa do reino de Deus.
Há últimos que serão dos primeiros
e primeiros que serão
os últimos».

24 agosto 2019

Pensamentos Impensados *

Democracias
Vota, estás perdoado.

Apetites
Tântalo tinha mais olhos do que comida.

Pedreiros
Grau a grau enche o maçon o papo.

Ofertas
Os desportistas costumam dizer: vou dar o meu melhor.
Eu digo: vou dar o meu pior, ou seja, aquilo que já não quero.

Coisas de Moisés
Um dos 10 mandamentos diz: não desejar a mulher do próximo.
Tem razão, desejar a mulher do que está longe é mais seguro.

Divisas
O lema do Infante D. Henrique era talant de bien faire.
O lema dos nossos governantes é talant de rien faire.

SdB (I) 

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* publicado originalmente a 7.09.2013

22 agosto 2019

Duas Últimas - ou, também, "da memória"

Janto com amigos um destes dias. Fala-se no festival da canção e eu afirmo, com uma certeza que roça a saloiice,  que me lembro de (quase) todas as músicas que ganharam o festival da canção nacional até 1974, que as sei cantar (quase) todas de cor. E vou mais além: aplico a mesma certeza da memória ao concurso da Eurovisão. O decorrer da conversa prova o que sei: lembro-me de músicas, de letras, de cantores. 

Faço zapping muito ao fim da noite. A RTP1 passa Um Violino no Telhado, um musical lançado em 1971 - há 48 anos, portanto. Vejo um pouco e lembro-me da meia dúzia de músicas que ouvi. Não na íntegra, mas de muito, inclusivamente inflexões de vozes ou cacofonias musicais a imitarem animais de capoeira. Ao contrário de muitos musicais, devo ter visto este umas duas ou três vezes nestes quase 50 anos. Mas ficou (quase) tudo na memória.

A memória tem estas coisas estranhas - ou eu tenho uma memória estranha, porque fixo o que me diverte, não o que é importante. Trabalhei 20 anos numa multinacional e nunca fixei exactamente o volume de facturação. Porém, ainda me lembro de músicas que não oiço há 40 anos, frases de li há 30 anos, versos com que me cruzei há décadas. Não sendo neurologista ou cientista da área, não sei como funciona a memória. A minha é assim que funciona: fixo o que me diverte (e grande parte do que fixo é informação inútil) e não o que poderia parecer importante.

Revejam uma parte de Um Violino no Telhado, se tiverem essa nostalgia.

JdB


21 agosto 2019

Duas Últimas

Há músicas fantásticas que deram versões muito diferentes, cantadas por gente muito diferente. Lembro-me, em particular, de Falling Leaves / Les Feuilles Mortes, cantada por Yves Montand ou Eric Clapton. No domingo conheci uma versão de What a Wonderful World, tornada famosa por Louis Armstrong, cantada desta feito por Mark Knopfler. Vale muito a pena ouvir.

JdB 

20 agosto 2019

Poemas dos dias que correm

Os justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.
O que acarinha um animal adormecido.
O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

Jorge Luís Borges

19 agosto 2019

Moleskine

Óbitos
Morreu Alexandre Soares dos Santos. Não acrescentarei nada ao que se disse dele enquanto empresário ou enquanto pessoa. Igualmente interessante (ou nalguns casos mais interessante ainda) é ler as caixas dos comentários. Gostei de um leitor do Observador que insistia várias vezes em que ele não estava morto, que tinha fugido para a Suíça por um motivo qualquer. Se o comentarista acreditar nisso, é tonto; se não acreditar e mesmo assim se der ao luxo de escrever, é tonto. Em qualquer dos casos, os jornais deviam considerar a hipótese de acabar com as caixas de comentários, pela ordinarice do que lá se escreve, pela total alarvidade de forma e conteúdo. Refiro-me sobretudo ao Observador, jornal que leio muito. 

Regresso a Soares dos Santos, sobre quem não farei comentários, para além de reconhecer a sua indiscutível qualidade de empresário. A ele, ainda que muito indirectamente, liga-me o facto de ter trabalhado 20 anos na Unilever que tinha, em Portugal, uma pareceria antiga com a Jerónimo Martins. Ainda um destes dias reconhecia a grande escola que era o grupo Fima-Lever-Iglo (a designação era esta, em 1986) em Portugal. Aqueles 20 anos ensinaram-me quase tudo o que sei profissionalmente: a necessidade do rigor, do planeamento, da organização, do trabalho em equipa.

Fumos
Janto no Clube House de Praia del Rey. Sala pejada de clientes, 99% estrangeiros, talvez ingleses (ou americanos). Crianças algumas, a fazerem o barulho que lhes é normal, adolescentes de minissaia e permanentemente ao telemóvel. Olha-se à volta (e não é preciso olhar, basta cheirar...) e percebe-se o prato que mais sai: bife na pedra, com o cheiro invasivo que lhe é característico. O estrangeiro come bife na pedra com a mesma motivação com que deglute pastéis de nata: pela invulgaridade do pitéu, pelo facto de não existir na sua terra. O facto é interessante; menos interessante é entrar num restaurante onde vários clientes se entretêm a grelhar pedaços de carne numa pedra muito quente. Imagine-se o fumo e o desejo de fuga...

JdB    

18 agosto 2019

20º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO - Lc 12,49-53

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Eu vim trazer o fogo à terra e que quero Eu senão que ele se acenda? Tenho de receber um baptismo e estou ansioso até que ele se realize.
Pensais que Eu vim estabelecer a paz na terra?
Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão. A partir de agora, estarão cinco divididos numa casa: três contra dois e dois contra três.
Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra».

17 agosto 2019

Pensamentos Impensados *

Publicidade
Gosto daquele anúncio em que uma velhota diz eu conto com a continência.

Asilo de 3ª idade
Diz uma enfermeira para a outra: eu conto com a incontinência.

Bola
Os 3 grandes do futebol português são o Porto, o Benfica e os outros.

Justiça
Isaltino Morais tem muitos recursos mas continua preso.

(des) Fiat lux
Os que decidem fazer apagões consideram-se iluminados.

Big foot
Calçava 45; era homem com P grande.

SdB (I)

---

* publicado originalmente a 11.05.2013

15 agosto 2019

Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria

EVANGELHO - Lc 1,39-56
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direcção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».
Maria disse então:
«A minha alma glorifica o Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre».
Maria ficou junto de Isabel cerca de três meses
e depois regressou a sua casa.

14 agosto 2019

Vai um gin do Peter’s ?

CAPELA EM FORMA DE TENDA TORNOU-SE COQUELUCHE DE ARQUITECTURA

Portugal ganhou, este ano, o International Architecture Awards na categoria de culto espiritual, a par de quatro asiáticos: Japão, Singapura, Coreia do Sul e China(1). Foi, por isso, o único europeu distinguido, por mérito da originalíssima capela inaugurada, em 2017, para acolher um encontro de escuteiros decorrido em Idanha-a-Nova. Para esse concelho, sede do escutismo português, o atelier dos arquitectos Pedro Ferreira e Helena Vieira desenhou uma estrutura em forma de tenda fixa sem portas, orientada de nascente a poente para aproveitar bem os primeiros e os últimos raios solares. Tornaram-se os melhores momentos para estar na capela, iluminada por um sol mais dourado e subtil. Um fio de água corre por um rego em direcção ao altar, no alinhamento da cruz implantada do lado de fora, a Oriente. 


Entre as proezas da obra está o aconchego especial daquelas duas paredes inclinadas para compor um triângulo escancarado sobre o arvoredo esguio que o rodeia. O revestimento em madeira clara faz um contínuo com a mata circundante. Naquele planalto arborizado, a cabana rodeada de céu acolhe os forasteiros da região e os acampados que ali se reúnem, vindos de diferentes pontos do globo.   

A todas as horas, aquele ‘capuz’ forrado de ardósia escura no exterior consegue ser convidativo, no estilo alegre e desportivo dos escuteiros. Até à noite, a luz quente dos focos que iluminam a partir do chão mantêm caloroso o pequeno-grande templo dedicado a Nossa Senhora de Fátima. Respira-se a sobriedade e o encanto da Senhora Guardiã do espaço. A colecção de imagens no site do atelier dos arquitectos explica o efeito:

In https://planohumanoarquitectos.com/capela-de-nossa-senhora-de-fatima



Explicam os projetistas: «A água atravessa todo o espaço da capela, num trilho que se desenvolve em direção ao altar - o lugar central de todo o espaço celebrativo cristão -, e depois para a paisagem, direcionando o utilizador para a cruz, que fica do lado de fora da capela, no mesmo alinhamento».


O prémio mais recente corroborou o reconhecimento internacional da ousada construção, que continua a somar palmarés por todo o mundo. Há um par de anos, recebeu o do Museu de Arquitectura e Design de Chicago na modalidade de edifícios religiosos, e do Centro Europeu para a Arquitetura, Urbanismo, Arte e Design. Seguiram-se os três galardões ganhos no concurso internacional Architizer A+.

Lembrando a frágil tenda de Abraão, uma simples coberta em trapézio de traçado dinâmico continua a ser suficiente para receber quem vem rezar. Será com certeza mais alta e aberta que o resguardo antiquíssimo de há 4 mil anos, mas não menos sóbria nem menos disponível para receber quem se queira aproximar.  


Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________

 (1)   Os premiados asiáticos foram: a igreja anglicana de Luoyuan (China), o templo Golden Pagoda (Singapura), The Spiritual Healing House (Coreia do Sul) e Hasshoden - Charnel House In Ryusenji Temple (Japão).
Curta-metragem à Capela:

13 agosto 2019

Textos dos dias que correm

O Valor do Silêncio

Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. Eu estou precisando desse sonho. Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio.

Clarice Lispector, in Crónicas no 'Jornal do Brasil (1968)'

***

Ouvi-los a Todos, no Silêncio

Detesto a acção. A acção mete-me medo. De dia podo as minhas árvores, à noite sonho. Sinto Deus - toco-o. Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me - não o sei explicar. Terra, mortos, uma poeira de mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta e que tanta força tem...
Como em ti, há em mim várias camadas de mortos não sei até que profundidade. Às vezes convoco-os, outras são eles, com a voz tão sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna: só num silêncio mais profundo ainda, conto ouvi-los a todos.

Raul Brandão, in 'Húmus'

12 agosto 2019

Duas Últimas numa espécie de saudosismo

Há cerca de 20 anos, talvez, fomos com os dois filhos mais velhos a Londres. Um dia desafiaram-me para ir jantar KFC, algo que nunca tinha experimentado e que, em abono da verdade, não sabia bem o que era. Impus uma condição preguiçosa: a de não ir para uma fila, pelo que me sentaria numa mesa e eles trariam o almoço. Quando o tabuleiro chegou limitei-me a perguntar: e onde estão os talheres? A risota foi geral e a gordura escorreu abundantemente pelos dedos das mãos.

Dois anos depois, talvez (não me lembro das datas certas) via-se muito o Rei Leão lá em casa. A minha filha mais nova via o filme, rebobinava a cassette (era o tempo do VHS) e via o filme outra vez; e outra vez e outra vez... Via-se muito Rei Leão, falava-se muito de Rei Leão e as memórias que todos temos dela também passam por esse filme.

Ontem fomos com três raparigas que me são próximas (10, 10 e 14 anos) a um programa familiar: jantámos KFC seguido do Rei Leão em 3D. Não tive de ir para a fila encomendar o jantar, voltei a perguntar, por graça, onde estavam os talheres e a gordura escorreu-me abundantemente pelos dedos, tal como tinha acontecido há 20 anos. E voltei a encantar-me, sobretudo pelas memórias, com o Rei Leão, com a história, as músicas, a mensagem, a tecnologia.

Ontem recuei 20 anos, mais ou menos. Num certo sentido o mundo era mais perfeito e, num certo sentido também, poderia lembrar-me de Pessoa, quando ele dizia "eu era feliz e ninguém estava morto." Ontem recuei 20 anos, levado pelo frango gordurento, pelo Timon, pelo Simba, pelo Zazu e outros personagens que fazem parte - ainda que forçosamente pequena - do meu ciclo da vida. Por isso este post lembra as pessoas que povoam essas minhas lembranças, em particular os meus filhos.

JdB

   

11 agosto 2019

19º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lc 12,32-48

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Não temas, pequenino rebanho,
porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o reino.
Vendei o que possuís e dai-o em esmola.
Fazei bolsas que não envelheçam,
um tesouro inesgotável nos Céus,
onde o ladrão não chega nem a traça rói.
Porque onde estiver o vosso tesouro,
aí estará também o vosso coração.
Tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas.
Sede como homens
que esperam o seu senhor voltar do casamento,
para lhe abrirem logo a porta, quando chegar e bater.
Felizes esses servos, que o senhor, ao chegar,
encontrar vigilantes.
Em verdade vos digo:
cingir-se-á e mandará que se sentem à mesa
e, passando diante deles, os servirá.
Se vier à meia-noite ou de madrugada,
felizes serão se assim os encontrar.
Compreendei isto:
se o dono da casa soubesse a que hora viria o ladrão,
não o deixaria arrombar a sua casa.
Estai vós também preparados,
porque na hora em que não pensais
virá o Filho do homem».
Disse Pedro a Jesus:
«Senhor, é para nós que dizes esta parábola,
ou também para todos os outros?»
O Senhor respondeu:
«Quem é o administrador fiel e prudente
que o senhor estabelecerá à frente da sua casa,
para dar devidamente a cada um a sua ração de trigo?
Feliz o servo a quem o senhor, ao chegar,
encontrar assim ocupado.
Em verdade vos digo
que o porá à frente de todos os seus bens.
Mas se aquele servo disser consigo mesmo:
‘o meu senhor tarda em vir’;
e começar a bater em servos e servas,
a comer, a beber e a embriagar-se,
o senhor daquele servo
chegará no dia em que menos espera
e a horas que ele não sabe;
ele o expulsará e fará que tenha a sorte dos infiéis.
O servo que, conhecendo a vontade do seu senhor,
não se preparou ou não cumpriu a sua vontade,
levará muitas vergastadas.
Aquele, porém, que, sem a conhecer,
tenha feito acções que mereçam vergastadas,
levará apenas algumas.
A quem muito foi dado, muito será exigido;
a quem muito foi confiado, mais se lhe pedirá».

10 agosto 2019

Pensamentos Impensados *

Os brilhantes são internos
O Sul da Europa está como está; será que se não houvesse tantos brilhantes economistas (classificação dos comentadores), a Europa seria uma colónia de Burkina Fasso?

Dependências
Os devotos de S. Joana d'Arc serão drogados? Pelo menos gostam da heroína.

Dinheiros
O Governo não consegue acabar com o enriquecimento ilícito e ajuda o empobrecimento lícito.

Restauros
Em 1 de Dezembro de 1640 houve 40 empresários restauradores que levaram a bom termo uma empresa, sem se preocuparem com o IVA da restauração.

Proibições
Se as armas químicas são proibidas, como é que mato as moscas e os mosquitos?

Metamorfoses
Fazer das strippers furacão, é objectivo dos treinadores das meninas.

SdB (I) 

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Publicado originalmente a 31.08.203

09 agosto 2019

Poema dos dias que correm *

Carpe Diem

Aproveita o dia,
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer que as palavras e as poesias sim podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso. Não te resignes, e nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda a diante.
Procures vivê-la intensamente sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida se passe sem teres vivido...

Walt Whitman, tirado daqui

08 agosto 2019

Textos dos dias que correm

Paredão do Estoril, ontem pelas 7.45h (tirada com telemóvel)

Paredão do Estoril, ontem pelas 7.45h (tirada com telemóvel)

Não Deixes Que Metam o Nariz na Tua Vida

Quando falas ou simulas falar de ti próprio e amalgamas passado, presente, futuro, há sempre os que perguntam se o que contaste é verdade ou não. Nunca indagam se vai ser verdade. O que lhes interessa é saber, com a curiosidade dos intriguistas, se o que se passou (ou parece ter-se passado) se passou mesmo contigo. É um erro de gente vulgar. Parasitários ou não, qualquer invenção ou patranha, qualquer «mentir verdadeiro» é acepipe biográfico, é pretexto para te enfileirarem na nulidade biográfica que é a deles próprios e tecerem incansavelmente histórias a teu respeito.
Não te deixes seduzir pelo gosto da conversa. Essa pequena gente não merece a mais pequena atenção, nem tu precisas de espectadores para o salutar exercício diário de falar por falar.
(...) Não deixes que metam o nariz na tua vida. Caso contrário, vais ficar cheio de gente, com a sua vida escassamente interessante. O tombo da vida vulgar já foi feito por escritores como Camilo. E tenho a impressão de que, no essencial, a vida vulgar continua a mesma.
Desunha-te a escrever (olha que já tens pouco tempo!), mas fá-lo com a discrição e a reserva de quem não se dá às primeiras. É outro exercício salutar.

Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"

07 agosto 2019

Duas Últimas

Este post é uma manancial de dimensões verdadeiras e contraditórias: um esquimó pode cantar o fado? Uma menina de 7 anos consegue cantar o La Boheme do Aznavour? Saberá um português cantar adequadamente as vésperas  de Rachmaninov ou um escocês atirar-se ao fandango?

Taisia Finenkova e Dmitry Astafjev dançam um tango. Não têm nome argentino (ou mesmo uruguaio, para alimentar uma discussão). Não sei se o fazem bem, talvez o façam com garbo e eu seja apenas influenciado pelos nomes, que me soam a uma espécie de contradição em termos.

Por último, mas não menos importante. O nome do tango chama-se el gordo triste. Questiono-me de onde lhe virá essa tristeza? É pré-obesidade ou pós? Nasceu assim ou tornou-se assim? Olho para mim e sei o que digo: nem todo o gordo é triste, nem todo o magro é elegante. A única coisa que sei é que o Verão está estranho - e eu sigo a tendência.

JdB

06 agosto 2019

Versos dos dias que correm (ou fado, canção de vencidos)

Drama de uma velhinha

Senhor Juiz... o meu filho
Não me bateu nem roubou
Com alguém já disse aqui;
Tropecei num empecilho
E ele até me levantou
No momento em que caí

Não tem profissão marcada
Mas na sua triste rota 
Mal ou bem lá se governa
E nunca me exigiu nada
Para perder na batota 
Ou p’ra gastar na taberna

É mentira o que se diz!
Este arranhão sem valor
A marcar o meu desgosto
Não chega a ser cicatriz
É uma ruga maior
Entre as rugas do meu rosto

Senhor juiz... eu sou mãe
E juro que o meu menino
Não me roubou nem bateu
O cadastro que ele tem
Traduz o negro destino
Da sorte que deus lhe deu

Neste conto se adivinha
Mercê de frases tão frias
O destino dum ladrão
E o drama de uma velhinha
Que passa todos os dias
A caminho da prisão

Versos de Carlos Conde

***

Janela da Vida

Para ver quanta fé perdida
E quanta miséria sem par
Há neste orbe, atroz ruím
Pus-me à janela da vida
E alonguei o meu olhar
P´lo vasto Mundo sem fim.

Vi dar aos ladrões valores
E sentimentos perdidos
Nas que passam por honradas
Vi cinísmos vencedores
Muitos heróis esquecidos
E vaidades medalhadas

Vi no torpor mais imundo
Profundas crenças caíndo
E maldições ascendendo
Tudo vi neste Mundo
Vi miseráveis subindo
Homens honrados descendo

Esse é rico, e não tem filhos
Que os filhos não dão prazer
A certa gente de bem
Aquele tem duros trilhos
Mas é capaz de morrer
P´los filhinhos que tem

Esta é rica em frases ledas
Diz-se a mais casta donzela
Mas a honra onde ela vai
Aquela não veste sedas
Mas os garotitos dela
São filhos do mesmo pai

Por isso afirmo com ciso
Que p´ra na vida ter sorte
Não basta a fé decidida
P´ra ser feliz é preciso
Ser canalha atá à morte
Ou não pensar mais na vida.

Versos de Carlos Conde

05 agosto 2019

Textos dos dias que correm

Tiroide

«O homem é um ser espiritual que sonha a eternidade, e cria obras eternas, mas basta a perda da pequena glândula da tiroide para o transformar num idiota.»

É uma frase algo forte, esta do teólogo e filósofo suíço Emil Brunner, nascido em 1889 em Zurique e falecido naquela cidade em 1966, extraídas do seu ensaio “O homem em revolta”.

No entanto, estas palavras adquirem a sua trágica verdade quando, como várias vezes me aconteceu na minha já longa vida, se têm diante de si pessoas admiradas pela sua inteligência e capacidade, reduzidas a uma sombra humana, por causa de uma doença ou da velhice.

Comove-me sempre a exaustão daqueles que antes falavam em público brilhantemente, escreviam, viajavam de automóvel e avião, e que agora balbuciam com dificuldade palavras mínimas, assinam um documento quase como se fosse tarefa impossível, estão bloqueados numa cadeira de rodas.

A meditação sobre a fragilidade da criatura humana, nobre e gloriosa, mas também frágil como uma cana (para usar a célebre imagem de Pascal), deveria atravessar de vem em quando a nossa mente, sobretudo quando estamos satisfeitos pelo muito que temos e fazemos.

É ainda o grande Pascal a recordar-nos nos seus “Pensamentos” que é precisamente essa a nossa grandeza: «Conhecer-se miseráveis, enquanto a árvore não o sabe. O homem sabe que é miserável; é por isso miserável porque o é; mas é bem maior porque o sabe».

Se este autoconhecimento fosse mais vivo, seríamos mais capazes de dar o justo valor às coisas, cairiam muitas ilusões, atenuar-se-iam orgulho e egoísmo, e compreenderíamos que há valores que permanecem para além da nossa força física, a prestação intelectual, a beleza exterior.


P. (Card.) Gianfranco Ravasi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 02.08.2019

04 agosto 2019

18º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Lc 12,13-21

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
alguém, do meio da multidão, disse a Jesus:
«Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo».
Jesus respondeu-lhe:
«Amigo, quem Me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?»
Depois disse aos presentes:
«Vede bem, guardai-vos de toda a avareza:
a vida de uma pessoa não depende da abundância dos seus bens».
E disse-lhes esta parábola:
«O campo dum homem rico tinha produzido excelente colheita.
Ele pensou consigo:
‘Que hei-de fazer,
pois não tenho onde guardar a minha colheita?
Vou fazer assim:
Deitarei abaixo os meus celeiros para construir outros maiores,
onde guardarei todo o meu trigo e os meus bens.
Então poderei dizer a mim mesmo:
Minha alma, tens muitos bens em depósito para longos anos.
Descansa, come, bebe, regala-te’.
Mas Deus respondeu-lhe:
‘Insensato! Esta noite terás de entregar a tua alma.
O que preparaste, para quem será?’
Assim acontece a quem acumula para si,
em vez de se tornar rico aos olhos de Deus».

03 agosto 2019

Pensamentos Impensados *

Armazém de retém
Sempre quisera ser coleccionador, mas nunca passara de um ajuntador de coisas. Conseguira meter, entre dois vidros, uma dor de cotovelo; numa caixa de ferro (a cause des mouches) tinha três cabelos de Sansão; de dois pesos e duas medidas conseguira comprar um dos pesos; na garagem, rodeado de extintores, tinha o carro de fogo onde Elias subiu aos céus; numa gaiola tinha uma pena das asas de Ícaro; tinha uma lasca da pedra filosofal; ouvira falar em tim tim por tim tim e conseguira um tim; tinha a folha de figueira que tapara as "partes" de Adão; mas a peça de que mais se orgulhava era uma ferradura do cavalo de Tróia.

Guarda pretoriana
Ainda gostava de ver uma passagem de Aníbal sem guarda.

Falhas
As pessoas com memória fraca devem usar uma agenda; o mais natural é esquecerem~se de consultar a agenda.

Homem suite homem
A grande maioria das pessoas é de fabrico caseiro.

Levanta-te e anda
A morte é irreversível; para Lázaro não foi.

Crise
A Segurança Social fechou creches; é caso para dizer creche e desaparece.


SdB (I)

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* publicado originalmente a 22 de Fevereiro de 2014

01 agosto 2019

Textos dos dias que correm

Escutar o silêncio

Falar do silêncio. Dita assim, a frase parece um paradoxo, uma contradição dos termos. Por outro lado, acontece como para todas as realidades grandes e essenciais: só se compreende bem colocando-o em confronto/contraste. Como a vida se compreende bem à luz da morte, assim o silêncio assume sentido se confrontado com a palavra.

Com a qual, contudo, se reconcilia, porquanto silêncio e palavra são duas formas de uma mesma coisa, a linguagem, que é por essência modalidade da comunicação, da relação que se cria entre nós e qualquer coisa que é “outra”, até com aquela parte de nós próprios que sentimos como região “diferente” e obscura para a qual não encontramos palavras. Não falamos nós de “voz” ou “som do silêncio”? Recorda-me uma bela canção, porque o silêncio é também música.

Não quero começar com divagações pseudofilosóficas. Ao escrever sobre o silêncio, vêm à minha mente duas experiências.


Escrevi uma poesia…

A primeira tem a ver com os anos distantes e felizes quando ensinava nos meios de comunicação. Recordo que alguns alunos, quando de alguma forma entravam em confidências, traziam-me bilhetinhos, dizendo-me: «Prof, escrevi uma poesia». Eram uma ternura. Tratava-se quase sempre de textos onde de vez em quando se ia até metade da linha, ou onde por vezes apareciam aqui e ali rimas. Ingenuidade, certamente, mas por trás das quais havia duas intuições importantes.

A primeira é que para fazer uma “poesia” é preciso que as palavras respirem em “espaços de silêncio”, que era a zona “branca” em que estavam imersas. A prosa, a narrativa, e também a descrição, podem ocupar toda a linha: a poesia não, porque a emoção de que nasce precisa de ser “protegida” de espaços de não-palavra.

Também a rima – eis a segunda intuição – tem a sua importância, porque a poesia deve, de alguma forma, “cantar”, e como consegui-lo sem fazer tilintar as sílabas umas sobre as outras? Mais raro é o aparecimento naquelas folhinhas de vestígios de ritmo, mas o essencial estava lá: é o importante é que o silêncio é pedido para fazer cantar os momentos fortes que queremos confiar à poesia.

A outra memória é musical. Aconteceu-me duas vezes nestes meses de escutar na rádio, entre o ofício da Vigília e o das Laudes, um magnífico prelúdio de Debussy, sugestivamente intitulado “De spas sur la neige” (passos sobre a neve), uma música que parece feita de ar, macia como uma névoa luminosa, leve como a própria inconsistência da neve, e – sensibilizou-me pela primeira vez – uma pequena célula de duas notas que se repete com a insistência confortante de uma presença familiar, ou que talvez faz pensar numa pessoa que caminha com ligeireza na neve.

Uma “só” pessoa, todavia, como a pega negra que faz de fulcro à sinfonia de brancos na belíssima “Pie” (a pega) de Monet. Soube depois que o pianista era o grandíssimo Arturo Benedetti Michelangeli. Não me tinha enganado: a execução era demasiado bela, mágica, quase uma experiência visionária! E aqui a ideia do silêncio colou-se a mim sobre aquela de uma leveza delicada, de uma solidão feliz e, ao mesmo tempo, de uma profundíssima paz.

É tempo, agora, de tentar sintetizar alguns significados do silêncio, e portanto o lugar que tem, que pode ou que deve ter na nossa experiência de vida. Terminei recentemente um ensaio sobre a “retórica do silêncio” como “linguagem para dizer Deus” na poesia de R.S.Thomas, e não é difícil fixar algumas conclusões.


O silêncio como entorpecimento

Há momentos na vida em que nos tornamos “mudos”, diante dos quais é-nos instintivo dizer: «Estou sem palavras!». Podem ser uma grande alegria ou um grande sofrimento: o elemento comum é a intensidade da emoção que nos deixa como inebriados, dolorosamente ou alegremente.

Pense-se no que acontece quando um luto imprevisto, a morte trágica ou precoce de uma pessoa querida nos tira a palavra, e a comunicação é deixada para os olhos ou para os abraços.

Pense-se quando, quiçá numa volta da estrada, ou após uma curva na montanha, nos encontramos imprevistamente diante de uma paisagem arrebatadora, que nos deixa sem palavras, ainda que talvez se balbuciem ou se “exclamem” monossílabos sem sentido.

Que sentido tem este silêncio? Porque tem sentido. E diga-se já: recorda-nos a pobreza, a “miséria”, para o dizer com S. Bernardo, das nossas “palavras” (veja-se o esplêndido n. 111 dos “Sermões vários”), quando somos excedidos por alguma coisa de tão grande, que o vocabulário, por muito volumoso que seja, se revela um pobre trapo inútil. É um silêncio que nos ensina a humildade, e que denuncia desapiedadamente a radical futilidade de muito falatório que hoje grassa em todo o lado. Paradoxalmente, é o silêncio a ensinar-nos que a palavra é uma coisa séria.


O silêncio como opção

Se se faz a experiência dos “benefícios” do silêncio, chega-se ao ponto de o escolher até ao ponto, em certo sentido, de o programar. Entre as vantagens do silêncio, acompanhado como irmã natural da solidão, há a de nos fazer “atentos” e/ou de nos colocar à “escuta”, não só através dos ouvidos, mas também dos olhos, que nos fazem ler os outros no seu rosto e nos seus gestos, além do que nas suas palavras.

Silêncio como ir ao encontro. Seja evocada a família dos termos que têm o verbo “tender” (do latim “intedere”) como coração: “atender/atenção” (cuidar de, ter em consideração, estar com atenção), “estender” (do interior par o exterior), “entender” (tender para o interior, apossar-se do sentido), “protender” (estender para a frente, alongar), incluindo-se as versões negativas de “contender” e “pretender”, em que a “tensão” se torna belicosa e agressiva.

Este estender-nos para aquilo que é outro e fora de nós é protegido e bem governado só pelo silêncio, essa “pausa” que perscruta sentimentos, instintos, objetivos que evitem recontros ou equívocos, sobretudo com as pessoas para as quais nos “estendemos”.


O silêncio como antena

É outra modalidade da anterior, e trato-a à parte porque não diz respeito tanto à relação com as pessoas (escuta), mas com as coisas e os acontecimentos. Nasce da habituação ao silêncio físico e à solidão como lugar no qual se reencontra, por um lado, o seu centro, e, por outro, como capacidade de colher esses momentos imprevistos e imprevisíveis a que chamamos “epifanias”. Só se não estivermos distraídos pelo ruído, externo e interno, chegaremos sem esforço, impercetivelmente, a descobrir um raio de beleza numa florzinha amarela, grande quanto uma ponta de dedo que desponta da fenda de uma parede de cimento, e talvez nos sugira uma reflexão sobre a força da vida.

Recordo que há alguns dias, durante uma leitura bíblica, o olhar escapou-me para um vaso de flores aos pés do altar, sobre o qual naquele momento tinha chegado da janela um raio de sol que as acendeu, isolando-as da penumbra. Instintivamente disse-me: que belo! A “palavra de Deus” não me dizia nada naqueles instantes, mas Deus estava a falar-me nas flores acesas pelo Sol.

Gostaria de acrescentar que – é sempre o poeta R.S.Thomas que o recorda –, como a solidão, também a lentidão é irmã do silêncio, permitindo-nos dirigir o olhar “para o lado”, onde está a acontecer um milagre. Cada um pense em como, além do ruído, a pressa é outra desgraça do nosso tempo…


O silêncio “con-centração”

Ruído e pressa são duas das coisas, entre muitas, que nos trazem para fora (dis-traem-nos) daquele centro em torno do qual devemos construir a unidade interior da nossa pessoa. O remédio é encontrar a maneira de nos con-centrarmos, porque só assim é possível navegar entre as tempestades da vida.

Quando parece que nos afogamos, pode caminhar-se com a cabeça fora da água que nos envolve apenas se os pés se apoiam sobre um fundo sólido. Esse fundo é garantido pelo silêncio, um “lugar” a construir e enriquecer com uma série de recursos que cada um deve saber encontrar. Porque um “silêncio vazio” é insuportável, e tem como fruto apenas a procura espasmódica de distrações, num círculo vicioso sem saída.

Os recursos são aquelas formas de “contemplação” que permitem povoar o silêncio até o apreciar, até sentir dele uma necessidade física. São a arte, a literatura, a música, que chamam o silêncio e ao mesmo tempo o alimentam, epifanias de beleza saboreadas a sós ou em conjunto, para lhes partilhar o bem-estar que delas deriva, e cimentar assim a amizade.


O silêncio repouso

Quando se percebe toda a potencial riqueza do silêncio, não é difícil compreender que ele “envolve” a palavra no sentido que é o terreno fecundo que a gera e, simultaneamente, o ponto de chegada mais alto da comunicação, quando as “palavras” acabam por ser inúteis, e até fastidiosas.

Num belo livro dedicado à figura do Card. Martini, intitulado “História de um homem”, o autor, Aldo Valli, conclui reconhecendo quanto é verdade que «amigo é aquele com quem se pode estar em silêncio». Sem embaraço, sem necessidade de mais». É o silêncio em que a ausência de palavras define com felicidade não um vazio, mas um espaço de comunhão profundamente partilhado em que se está bem.

Na poesia “The gap”, R.S.Thomas evoca um Deus que se defende da “agressão” dos homens que pretendem chegar até ele com uma “torre de palavras”. Aqui o silêncio rima com “mistério”, a entender como aquele espaço de sentido que nunca acabaremos de explorar.


O tempo e as férias

Estamos em tempo de férias, e aqui surge-me outro paradoxo, que na realidade é apenas aparente, como o que se declarou ao início na expressão “falar do silêncio”.

E é esse duplo significado que tem em latim o verbo “vacare”, que em francês deriva em “vacance” e em italiano em “vacanza”. Enquanto hoje o termo indica, na maior parte dos casos, um “vazio”, ou um tempo “livre do trabalho”, no latim não se tratava só de uma “liberdade de”, mas sobretudo de uma “liberdade para”, como que a dizer que a primeira podia ser condição para a segunda.

E o segundo sentido de “vacare” era o de ocupar-se de alguma coisa com toda a concentração possível para criar/produzir alguma coisa de belo e de útil. Torna-se assim significativo o contraste tantas vezes evocado na literatura monástica medieval entre “vacatio” e “vagatio”: a primeira é condição para usar melhor o tempo, a segunda é um fútil e estéril perder-se e desgastar-se naquela vã curiosidade que contrasta com a sã.

Não será o caso, antes de ir “de férias”, de perguntar-se, talvez, no silêncio, que uso entendemos fazer do tempo?

Nico Guerini
In Settimana News
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 31.07.2019

Dos discursos



Talvez, em bom rigor, a vida só ensine coisas a quem queira aprender. Parece-me isto um raciocínio de uma vulgaridade indiscutível. Mas, de facto, a vida só ensina quem quer aprender. E como se faz esta aprendizagem? Estando atento como um menino numa aula, porque a professora fala na linha do Oeste para todos os meninos, cita os sábios a todos os meninos, fala no fim da monarquia a todos os meninos. O que acontece é que só uns percebem que um comboio ou uma estação são mais do que uma organização de equipamentos e de espaços, só uns vêm na dinastia brigantina a possibilidade de um chiste maldoso ou de uma devassa invejosa da família alheia.

Ouvir o discurso de Leonard Cohen pode ser apenas ouvir o discurso de Leonard Cohen, um cantor que suscita amores e sentimentos inversos em proporções desconhecidas. Mas ouvir este discurso, proferido quando o cantor recebeu o Prémio Príncipe das Astúrias, é ouvir quase doze minutos de uma imensa sabedoria e delicadeza. Não é apenas um discurso de agradecimento, por mais bonitas que fossem as palavras; é ouvir um discurso de gratidão, que é um agradecimento do coração e da alma, mais do que do cérebro ou da educação; e é ouvir um discurso de partilha daquilo que eu disse acima, e que se descobre por volta do meio do discurso. 

Metaforicamente falando, Leonard Cohen começou numa aula com outros meninos. A professora falou disto e daquilo, e alguns meninos escreveram isto e aquilo. Mas ele foi mais longe, e descobriu que isto e aquilo, que para alguns pouco mais eram do que a banalidade da linha do Oeste ou o fim da monarquia eram, para ele, a chave de uma carreira. Melhor dizendo: tinham sido, no seu olhar sobre o passado, a chave de uma vida. 

Invistam 12 minutos da vossa vida - juro que não se arrependerão.

JdB   

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