30 setembro 2015

Textos dos dias que correm

O instante, a graça e a «escolha decisiva»

Podem tornar-se instantes de graça todos os instantes da vida? Ou, pelo contrário, não: há instantes límpidos, incomparáveis, de que não conhecemos as regras, e só estas são portadores da possibilidade de sentido e redenção para a vida?

Não fiz sondagens, mas direi sem muitas hesitações que a maior parte de nós tende para esta segunda hipótese. A vida normal goza de má imprensa, sobre ela recai um imutável descrédito, como se vivêssemos a descobrir que o que nos falta está noutro lado.

Olhamos os dias, o curso dos seus instantes reputados como sem história, estranhamento seguros de que deles não virá o que procuramos. Seduz-nos muito mais o extraordinário: pensamos que, no fundo, a felicidade depende da experiência não habitual, descontínua, de uma visita esporádica, de um lampejo que não se detém.

Se tivéssemos de assinalar, entre as práticas artísticas, um exemplo desta sensibilidade dominante, poderíamos citar as fotografias (extraordinárias, ainda para mais) de Henri Cartier-Bresson.

Na introdução ao primeiro livro de imagens que publicou, ele propõe uma tese precisa sobre o que chamava «o instante decisivo». Hoje é impossível pensar na sua fotografia e, em certo sentido, no que é a fotografia em geral, sem revisitar esse texto que o tempo tornou cada vez mais influente.

O ponto de partida de Cartier-Bresson é uma epígrafe extraída dos volumes de memórias do cardeal de Retz: «Não há nada neste mundo que não tenha um momento decisivo». E o que diz, em síntese? Que quando o olhar do fotógrafo considera o mundo, sabe que exercita um poder: pode modificar perspetivas, colocar a máquina fotográfica próxima ou afastada do sujeito, realçar um detalhe ou recompor a realidade.

Mas ao fotógrafo ocorre também dar-se conta de que estão reunidos todos os elementos para uma excelente fotografia, e todavia ainda falta alguma coisa, e não sabe o quê. Até que acontece alguma coisa de imprevisto a atravessar a cena. O fotógrafo põe-se então a acompanhar o movimento por trás da sua máquina e espera, espera, espera.

Quando, por fim, carrega no botão, sente confusamente que captou algo. Mais tarde, no laboratório, revelando aquele material, dá-se conta de que o que captou era o instante decisivo. Fixou o instante sem o qual aquela imagem seria banal, não possuiria a mesma forma, intensidade, pulsão, mistério e vida.

Por isso, a atividade do fotógrafo e do artista pode apenas consistir numa espera aberta ao momento extraordinário. Será também assim para nós? Será que é isto que talvez suceda no labor interno que desenvolvemos, na vida espiritual que se ativa em nós?

Os ingredientes estão lá todos, mas ainda não é suficiente. O quotidiano é opaco, demasiado preso àquilo que conhecemos, que nos é familiar. «De Nazaré pode vir alguma coisa de bom?» (João 1, 46), perguntamos incessantemente. Consumimo-nos na espera difusa daquilo que virá, preferimos sempre o distante ao próximo, o futuro ao presente, e tornamos a existência uma ficção de si própria.

Mas se não é agora, é quando? Se a graça não atravessa precisamente estes instantes cinzentos e contraditórios, esta montanha de emoções dispersas, este movimento que nos parece demasiado concreto, demasiado denso, demasiado obtuso, dificilmente a graça se manifestará de outra forma.

Também aqui o caso de Henri Cartier-Bresson nos pode ajudar de novo. Porque a sua história é, no fim de contas, mais complexa. A curadora de uma grande mostra sobre a sua obra trouxe à luz elementos novos relativos ao seu modo de trabalhar, até então desconhecidos.

Aquilo que a sua investigação nos mostrou é que, mais do que um «instante decisivo», trata-se com mais verdade de uma «escolha decisiva», pois o fotógrafo fazia vários disparos da mesma cena, por vezes em grande número, mas escolhia só um e eliminava os outros.

O instante decisivo não é, então, um momento exterior irrepetível, nem essa epifania que encontra espaço num fugitivo piscar de olhos: é um instante, qualquer instante, que eu faço tornar decisivo, por nele investir deliberadamente a minha esperança.


José Tolentino Mendonça, tirado daqui 

29 setembro 2015

Duas Últimas

Patti Smith esteve em Portugal há muito pouco tempo. Não tive oportunidade de a ouvir ao vivo, porque a conheço mal e talvez por isso o concerto de Lisboa me tenha escapado. Pelas críticas depois lidas, terei perdido um bom espetáculo.

Entretanto, disse-me um irmão meu que o Syriza, um dos queridos musts da nossa comunicação social, fecha os seus comícios com a música de título revolucionário abaixo postada. Se fosse grego talvez assistisse a esses finais reveladores de algum bom gosto musical, não por certo ao desenrolar do que os antecede.

Por falar em política, as legislativas eleições caseiras aproximam-se a passos largos. Façam um esforço e vão votar, mesmo que não vos apeteça a deslocação ou achem que o voto de pouco vale. É em parte verdade, mas podem crer que há por aí à espreita muito pior do que conhecemos ou até imaginamos.     


fq


28 setembro 2015

Encontros e histórias

Sábado estive neste encontro de famílias. Durante um fim de semana, quase cem pessoas, entre pais, irmãos, crianças doentes, crianças que já estiveram doentes, voluntários e profissionais, reúnem, passeiam pela praia, aprendem a dançar, fazem jogos, conversam do  passado, do futuro, de esperança. Na minha mesa de almoço, onde me sentei por acaso, duas famílias: uma de Sintra, a outra de Fermentelos. Numa delas um rapaz de 18 anos, já recuperado; na outra, um rapaz de 13 anos, recuperado há 10, significando, portanto, que foi apanhado pela doença quando tinha 3. As mães não se conheciam mas a conversa sai fluida, porque ambas sabem o que passaram. Fora o sotaque, são ambas naturais da pediatria de um IPO regional.

Não repetirei o que significam estes encontros para mim. Não o encontro em si, mas a confrontação com tantos pais e crianças que começam agora uma luta, continuam uma luta ou, como no caso de um rapaz de uma mesa ao lado - a visão terrível da injustiça da vida - percebem que a luta vai terminar por KO, e perguntam o porquê do combate, ou porque tarda o KO, que o corpo está cansado e o ânimo tem dias. Ao despedir-me, o pai deste rapaz esboçou um sorriso: até amanhã! Digo sempre até amanhã! Vê-lo-ei na festa de Natal ou imaginar-lhe-ei o Natal. Tudo seguramente já sozinho, sem o filho.

Duas outras histórias, de sinal muito diverso:

Brinco com uma criança de dois anos, pertencente ao mundo da Acreditar que, ao colo da mãe, faz uma birra de sono. Digo-lhe patetices, brinco-lhe com os dedos ou com o cabelo, deixo que me dê palmadas na mão. A criança chora, e não se cansa de repetir: a culpa é minha, a culpa é minha... Todos sabemos, face à desestruturação das famílias, que algumas crianças doentes têm sentimentos de culpa, assumindo uma responsabilidade pela aparente desagregação de uma família que se separa durante os tratamentos. Mas uma criança de dois anos? O que ouvirá ela e que repete, numa birra que se deseja de sono?

Encontro duas miúdas pretas (ou negras, se preferirem): cabelo afro, caras giras, despachadas, conversadoras, simpáticas, sociáveis. Converso com uma e pergunto-lhe o nome, um nome tipicamente africano, como ela é, a irmã e a mãe. Pergunto-lhe: donde é que és?  A resposta veio pronta: de Vila Franca. O mundo será isto: uma criança preta, de Vila Franca, que casará com um rapaz africano de uma cidade próxima. Um dia encontrarei os filhos dela. Terei de subir até à geração dos avó (eu sou de Muge, o meu pai de Alverca do Ribatejo) até que me digam: somos de Angola... Os cabelos, esses serão afro, como será o menear das ancas, completamente separadas do resto do corpo, porque ela ainda não é bem de cá: por enquanto só nasceu cá...

JdB

27 setembro 2015

26º Domingo do Tempo Comum

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
João disse a Jesus:
«Mestre,
nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
Jesus respondeu:
«Não o proibais;
porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim.
Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que crêem em Mim,
melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas pró um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,
deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

26 setembro 2015

Pensamentos Impensados

Literatura
Estou a trabalhar num livro cujo tema é como chegar aos 90 anos parecendo ter 89.

Desinfecções
Pasteur foi um euro-assético.

Manipulação
O acto de comer à mão chama-se mani-come-o.

Restauração
Em qualquer parte do Mundo se come bem desde que haja três estrelas na algibeira.

Vocativos
Em Portugal, para se chamar uma pessoa diz-se: oh Manel, oh Jaquim....
Na Irlanda usa-se O'Connor, O'Shea.

3 em 1
Paulo Portas tem sido ouvido
Paulo Portas tem nariz
Paulo Portas tem garganta.

Selogane
Com promessas e favores se enganam os eleitores.

Surtos e sustos
A gripe vai ser ouvida na Ministério da Saúde no âmbito do tráfico de influenza.

SdB (I)

25 setembro 2015

"Onde diabo está Deus?"

Já aqui neste estabelecimento abordei o tema por várias vezes, seguramente com menos competência, mas não menos emoção: entre mortes e doenças graves - tudo de gente relativamente nova e próxima - o meu mundo, como o de todos nós, vai-se povoando de dor.  Ontem, ao visitar um amigo nessas condições, confrontei-me com este sentimento de injustiça: não é só o sofrimento no próximo, mas também nos outros, danos colaterais numa guerra que não quiseram. Na boca de muitos, crentes num Deus que não é senão amor, a interrogação feita com voz fragilmente humana: onde está Ele?

Ontem também, depois de um almoço onde fui, mais uma vez, confrontado com a finitude de tudo, encontrei este texto aqui. Um texto simples, que gostei de ler.

***

Tocado pelo acidente que deixou quadriplégica a sua irmã, antes dos 30 anos, o padre jesuíta Richard Leonard aborda algumas das questões mais duras colocadas pela aparente "ausência" de Deus, precisamente quando Ele é mais preciso.


Introdução
In "Onde diabo está Deus?" (Editora Paulinas)
Richard Leonard

A maior parte dos livros filosóficos ou teológicos sobre o tema de como encontrar Deus no sofrimento humano tende a ser bastante académico. Sempre os achei muitíssimo importantes, mesmo quando discordei dos seus argumentos ou conclusões. Tenho até sentido que a distância intelectual que estabelecem pode ser útil para dissecar uma interrogação que é tudo menos distante.

Embora eu espere que este livro seja inteligente, ele não foi pensado para os académicos. Não vou reciclar as inúmeras facetas dos veneráveis argumentos da investigação intelectual a que atualmente chamamos teodiceia. Este livro emerge da experiência, da forma como eu tive de lutar corpo a corpo com uma tragédia familiar que me obrigou a confrontar com algumas interrogações fundamentais que têm a ver com o agarrar-me à minha crença num Deus de amor frente ao mal. Não tenho pretensões excessivas acerca desta obra acessível. Ela pertence claramente à área da chamada teologia especulativa. Ao longo dos séculos, mentes maiores do que a minha têm-se debruçado sobre estas questões e chegaram a conclusões diferentes acerca das mesmas. Sinto-me feliz por isso. O problema é que quando mais precisei de ser ajudado pelas suas intuições, mais as suas respostas me pareceram inadequadas. Não estou a acusá-las. A grande maioria desses autores não teve o benefício dos estudos bíblicos, da teologia, da ciência e da psicologia contemporâneas para lhes dar uma mão.

A Igreja sabe, também, que não pode dar respostas definitivas acerca de tais questões porque, do lado de cá do túmulo, simplesmente não sabemos onde ou como Deus se encaixa em relação ao sofrimento do mundo. Por isso, não tenho outras pretensões neste meu trabalho, senão dizer apenas que ele me ajudou a guardar a fé num Deus de amor, enquanto caminhava no «vale das lágrimas» e na «sombra da morte». (...)

Jill ligou à minha mãe por volta da uma e meia da manhã, para dizer que Tracey tivera um acidente, e que, embora desconhecessem a extensão das lesões, a minha mãe devia ir logo para lá. A continuação da história é um «momento mãe». A minha mãe enviuvara quando tinha 32 anos. O meu pai morreu de um AVC fulminante, aos 36 anos, e a minha mãe passou a ser a única progenitora do meu irmão, de sete anos, da minha irmã, de cinco, e minha, tendo eu dois anos. A minha mãe, que nessa altura vivia sozinha, decidiu que, em vez de acordar o Peter e a mim, seria melhor que nós os dois tivéssemos uma noite bem dormida, pois não havia nada que qualquer um de nós pudesse fazer até de manhã. Não ligou a ninguém. Ficou sentada a beber cafés e a fumar cigarros até ao alvorecer.

Pelas nove horas, a minha mãe e eu já estávamos num avião para Darwin. Se o leitor alguma vez foi atingido por uma tragédia na sua própria vida, entenderá a negação em que ambos estávamos: naquela viagem de avião, tudo nos pareceu histericamente divertido. Ambos desatámos a rir pensando que, à nossa chegada, veríamos Tracey sentada na cama a comer um bife e a beber uma cerveja, e a troçar de nós, por sermos tão melodramáticos. Esse final feliz não viria a acontecer.

Ao chegarmos, havia tantas religiosas de véu e de hábito no aeroporto, que eu pensei que o Papa devia vir no avião seguinte. «Os médicos dir-vos-ão tudo quando lá chegarmos. » Levaram-nos até junto de Tracey, que tinha um longo lençol puxado até ao queixo. Tinha os braços esticados sobre extensões de madeira colocadas dos lados da cama, e havia dois enormes espigões enterrados no seu crânio com pesos suspensos na parte de trás da cama para manter a sua cabeça imóvel. A partir de então, nunca mais consegui olhar para um crucifixo da mesma maneira.

A minha mãe assumiu uma linguagem muito clínica, começando a perguntar a Tracey o que é que ela conseguia mexer. Com duas grandes lágrimas a escorrerem silenciosamente de cada lado do rosto, a minha irmã simplesmente respondeu: «Não passo de uma quadriplégica, mãezinha. Desloquei a quinta vértebra cervical e fraturei a sexta e a sétima vértebras. É tão mau como parece.»

Combater e fugir são duas reações comuns ao choque. Optámos pela segunda. Tracey diz que não percebeu quem saiu mais depressa porta fora, se a minha mãe ou eu. A irmã da pastoral da saúde conduziu-nos a um quarto, onde nos deixou sozinhas. Eu sentei-me a uma secretária e, numa das primeiras vezes na minha vida, fiquei sem palavras. A minha mãe começou a andar de um lado para o outro. Estava zangada. Era como se uma das crias daquela leoa tivesse sido abandonada, para morrer, e ela quisesse apanhar a pessoa responsável por isso. Enquanto andava assim, a minha mãe começou a fazer uma série de perguntas:

Como é que Deus pôde fazer isto à Tracey?
Como é que Deus nos pôde fazer isto?
Que mais quer Deus de mim, nesta vida?
E, pior de tudo: onde diabo está Deus?

Eram perguntas retóricas, mas eu era um jesuíta. De Deus entendia eu e, por isso, arrisquei uma resposta. Mas de cada vez que começava a falar, a minha mãe respondia-me com aspereza. Em momentos assim, muitas vezes descarregamos sobre as pessoas mais próximas de nós. Quis então recordar à minha mãe que também era uma das suas crias!

Contudo, enchi-me de coragem e desenvolvi, provavelmente, o debate teológico mais doloroso e mais importante que jamais terei na minha vida. Disse à minha mãe que, se alguém me conseguisse provar que Deus, na noite anterior, se sentou, no Céu, e pensou consigo «preciso de mais uma quadriplégica, e Tracey serve, pelo que vamos provocar um acidente de automóvel para que isso aconteça» – se aquilo fosse a vontade de Deus –, então deixaria o sacerdócio, os Jesuítas e a Igreja. Eu não conheço esse Deus, não quero servir esse Deus nem ser seu representante no mundo. Nesse momento, a minha mãe arremeteu de novo contra mim: «Então onde é que está Deus?» E eu respondi-lhe, delicadamente: «Penso que Deus está tão devastado como nós, neste momento, pelo facto de uma rapariga generosa e altruísta, que já percorreu o mundo inteiro a tratar dos pobres, se ter transformando na pessoa mais pobre que conhecemos.» Não tinha nada a ver com dinheiro. Eu não tive de escolher entre um Deus de amor e um Deus que nos inflige coisas cruéis. Como o Deus que geme frente a cada perda, em Isaías, ou Jesus que chora diante do túmulo do seu melhor amigo, em João 11, Deus não estava fora da nossa dor, mas acompanhava-nos nela, segurando-nos nos seus braços, partilhando o nosso desgosto e a nossa dor.

Nos meses seguintes, recebi algumas das cartas mais terríveis e assustadoras de alguns dos melhores cristãos que conhecia. Alguns escreveram: «A Tracey deve ter feito alguma coisa que ofendeu profundamente a Deus, por isso teve de ser castigada aqui na Terra, pois com Deus não se brinca!» E prosseguiam: «Agora a única forma de ter paz com Deus é aceitar a sua vontade.» Eles acreditam, de facto, que Deus se volta contra nós. De 1988 para cá, descobri que essa teologia é muito mais comum do que alguma vez poderia imaginar. Tenho encontrado pessoas com cancro, casais com problemas de fertilidade e pais cujo filho morreu, que me perguntaram o que terão feito para merecer a maldição divina de que julgam ter sido alvo. Dá-me vontade de chorar só de pensar neles.

Outros escreveram: «O sofrimento da Tracey está a enviar tijolos gloriosos para o Céu, para construir a sua mansão celeste quando ela morrer.» Esta é a habitualmente chamada «teologia da recompensa no Céu, quando morreres». Eu não sabia que no Céu, nos inúmeros quartos da casa do Pai, há suites de primeira classe, executiva e económica. E, se assim for, quer dizer que o Céu será o primeiro guiché da minha vida em que não andarei à procura de um lugar melhor! De facto, se para chegar do bairro de lata, logo à entrada dos portões celestiais, ao melhor bairro do Céu significa ter de ser lavado, alimentado, virado, limpo e vestido por outra pessoa todos os dias durante mais vinte anos, então eu não posso pagar o preço da deslocação através da cidade. E acho que poucas pessoas poderão.

Finalmente, recebi montes de cartas e de postais que diziam: «A vossa família é verdadeiramente muito abençoada, porque Deus só envia as maiores cruzes àqueles que as conseguem suportar.» Acho sempre graça à forma como algumas pessoas, que não estão a receber essa bênção particular, a conseguem ver claramente como tal no sofrimento das outras pessoas. Mas detenhamo-nos um pouco a pensar nesta frase. Ouvimo-la com frequência. Se for verdade, então todos nós nos deveríamos ajoelhar de manhã, à tarde e à noite, proferindo uma única oração: «Eu sou um fraco, eu sou um fraco, eu sou um fraco, meu Deus. Não me consideres uma pessoa forte.» Porque se essa teologia for verdadeira e Deus pensar que somos fortes, teremos de ser abençoados com uma grande cruz.

Além dessas reações, havia pessoas bondosas que me tentavam confortar, dando o habitual trio de respostas frente às más notícias: «É tudo um mistério»; «os meus caminhos não são os vossos caminhos»; e «só no Céu descobriremos qual era o plano de Deus». Há uma certa verdade em cada uma destas afirmações, mas eu não estou nada convencido de que sejam completamente verdadeiras no sentido que algumas pessoas lhes atribuem. Muitas vezes são utilizadas por pessoas boas para dizer algo que esperam ser reconfortante. Não tiveram esse efeito em mim. Por exemplo, embora seja completamente verdade que os caminhos e os pensamentos de Deus são infinitamente maiores do que tudo o que podemos esperar ou imaginar, evocar Isaías 55 no meio do sofrimento das pessoas tende a colocar Deus fora do nosso drama humano, como um observador que tudo sabe e que, no entanto, não se preocupa com o curso da nossa vida. No entanto, penso que um dos aspetos mais extraordinários da encarnação, de Deus se fazer um connosco em Jesus Cristo, é precisamente que Deus nos quer revelar os seus caminhos e pensamentos, quer ser conhecido, sobretudo naqueles momentos em que por vezes nos entregamos ao maior desespero. A vida, morte e ressurreição de Jesus mostram-nos que Deus se insertou na história humana da mais íntima das maneiras. Nós não acreditamos nem amamos um ser indiferente que se revela de forma misteriosa e que, depois, deserta quando a ação das nossas vidas se torna demasiado dura. A encarnação mostra-nos claramente que Deus está empenhado em participar na aventura humana em toda a sua complexidade e dor.

Por isso estou muito grato aos correspondentes que me escreveram depois do acidente da minha irmã. Eles alertaram-me para a frequência com que ouvimos alguma teologia terrível, que não nos aproxima de Deus nos piores momentos da nossa vida. Aliena-nos. Alienou-me, por algum tempo, acreditar num Deus que quer que nós travemos um inteligente debate acerca das complexidades de onde e como a presença divina encaixa no nosso frágil universo humano. Por isso aqui estão os meus sete passos para a sanidade espiritual, quando somos tentados e cedemos à tentação de perguntar: «Onde diabo está Deus?»

1. Deus não envia, diretamente, dor, sofrimento e doença. Deus não nos castiga.

2. Deus não envia acidentes para nos ensinar coisas, embora nós possamos aprender com eles.

3. Deus não quer terramotos, inundações, secas ou outros desastres naturais. A oração pede a Deus que nos mude para mudarmos o mundo.

4. A vontade de Deus manifesta-se mais na totalidade de uma situação do que nos seus detalhes.

5. Deus não precisava do sangue de Jesus. Jesus não veio apenas «para morrer», mas Deus usou a sua morte para anunciar o fim da morte.

6. Deus criou o mundo que é menos que perfeito, e no qual o sofrimento, a doença e a dor são realidades; se assim não fosse, estaríamos no Céu. Alguns desses problemas somos nós que os provocamos a nós mesmos, e culpamos Deus.

7. Deus não quer acabar connosco.

24 setembro 2015

Preces dos dias que correm

Prece

Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha não.

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu filho copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de Pai ainda não pode ser.
Mas lembra-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.
   
Vitorino Nemésio, O Verbo e a Morte (1959)

***

Prece

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem - ou desgraça ou ânsia -,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistamos a Distância -
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Fernando Pessoa, Mensagem

***

Prece

Talvez que eu morra na praia,
Cercado, em pérfido banho,
Por toda a espuma da praia,
Como um pastor que desmaia
No meio do seu rebanho…

Talvez que eu morra na rua
- Ínvia por mim de repente –
Em noite fria, sem Lua,
Irmão das pedras da rua
Pisadas por toda a gente!

Talvez que eu morra entre grades,
No meio duma prisão
E que o mundo, além das grades,
Venha esquecer as saudades
Que roem o meu coração.

Talvez que eu morra dum tiro,
Castigo de algum desejo.
E que, à mercê desse tiro,
O meu último suspiro
Seja o meu primeiro beijo…

Talvez que eu morra no leito,
Onde a morte é natural,
As mãos em cruz sobre o peito…
Das mãos de Deus tudo aceito.
- Mas que eu morra em Portugal!

Pedro Homem de Mello

23 setembro 2015

Duas Últimas

Hoje, mas há oito anos, estava na Beira. Respigo parte do que então escrevi:

Beira, Moçambique, hoje, mas há exactamente 8 anos


























Descrever a Beira talvez seja falar – por mais disparatado que isto possa parecer – no que imagino ter sido a cidade antes da independência. Agora é uma metrópole suja, mal conservada, estragada, mostrando a face visível do que são as consequências de uma guerra civil prolongada e as quezílias partidárias levada ao extremo. 

Imagino a Beira de há 34 anos, sem que esta descrição tenha o que quer que seja de um saudosismo colonialista, já que é a primeira vez que visito este país. 
Talvez o comércio fervilhasse, talvez a zona do Macuti (que garantem locais e estrangeiros ser a mais bonita da cidade) estivesse pejada de gente passeando ao calor da noite, comentando os dias que passavam, sentando-se numa esplanada a comer camarões, a beber cerveja, a rir e a gozar uma vida diferente, um clima diferente. Imagino as crianças na praia banhada pelo Índico – nalguns casos a dez passos de suas casas – a correrem inocentes atrás dos caranguejos, num cansaço que não vinha, mesmo depois das aulas de natação no Clube Náutico. 
Agora já nada disso existe. As casas de algumas famílias felizes que por lá passaram deram lugar a orfanatos de crianças com futuros improváveis, a terra batida que separa as vivendas do areal parece um trilho do mato, as árvores que debruam a praia do Náutico afiançam-me estar quase secas, o tecido habitacional da cidade carece de uma operação plástica urgente – ainda que não profunda.

Agora deixo-vos com Mc Roger. Agitem-se!

JdB


22 setembro 2015

Do rugby como microcosmos de...

Entre as expressões 'microcosmos', 'família', 'rugby' e 'país' poderia estabelecer-se um raciocínio, diferenciado apenas por um verbo: 'a família é um microcosmos do país' ou 'o rugby deveria ser um microcosmos do país'. Poderia ainda enveredar por uma solução intermédia: 'o rugby deveria ser um microcosmos da família'. Daqui poderia sair, então, um silogismo: se o rugby deveria ser um microcosmos da família e a família é um microcosmos do país, logo, o rugby poderia ser um microcosmos do país. 

Parece-me óbvia a afirmação da família versus país. Se introduzíssemos todas as famílias numa máquina para daí retirar uma fórmula resultante, veríamos Portugal. O país é o conjunto dos agregados familiares em toda a sua diversidade: cultura para o civismo, ética, responsabilidade, educação, honestidade, força anímica, ambição, altura, massa gorda, gostos alimentares, cor do cabelo, apreço pelo Carnaval ou pela observação de obras na via pública. 

Por outro lado, o rugby é um jogo de cavalheiros. (Não queria percorrer esta alameda do lugar-comum mas deu-me jeito). Alguns exemplos: no fim do jogo, o capitão das ilhas Fidji, apesar da derrota, começou por agradecer a Deus o magnífico dia que lhes tinha proporcionado para aquele jogo. E reconheceu que o oponente merecia ganhar. Dois dias depois, um jogador da Nova Zelândia foi punido com uma expulsão de 10 minutos. O que fez? Esticou uma perna displicente para que o adversário tropeçasse. Não esboçou qualquer reacção perante a decisão do árbitro que tem, aliás, esta pedagogia de explicar detalhadamente as faltas que assinala. Aliás, ninguém discute as decisões do árbitro encostando um peito suado a uma camisola tamanho M.

Uma equipa de rugby é uma massa brutal de jogadores com um aparente potencial destrutivo grande, dadas as suas força e velocidade. E no entanto, tudo é feito em nome da equipa ou (lá vou eu pela alameda...) do colectivo. Em bom rigor, o potencial destrutivo da equipa, ou dos jogadores individualmente, não está no metro e muito e mais de cem quilos de peso, mas na perna distraída que se estica para que o adversário, depois de ter ganho a bola, se possa estatelar no chão. O potencial destrutivo de um jogador de rugby não está no físico imponente, mas na pequenina matreirice.

Se o rugby fosse um microcosmos da família e a família o microcosmos do País, viveríamos seguramente melhor, mesmo que gostássemos de Carnaval ou de perder horas infindas observando três técnicos a ensinarem um trabalhador braçal a usar a picareta: agradeceríamos a Deus os dias oferecidos e não rasteirávamos o oponente por raiva de ele nos ter sacado a bola oval.

JdB         

21 setembro 2015

Vai um gin do Peter’s?

Nos idos anos 50 do século passado, Joly Braga Santos (1924-1988) compôs a IV Sinfonia (Op. 16), cujo quarto andamento inclui uma ária coral de homenagem à juventude musicando um poema de Vasconcellos Sobral (creio). 



Na década seguinte esteve para ser consagrada como Hino Mundial da Juventude. Quando se ouve, percebe-se que teria sido uma óptima escolha, tal a frescura e vitalidade daquela peça musical, impregnada de enorme jovialidade e de uma tonalidade muito estimulante e luminosa, sem resvalar para o triunfalismo simplista ou infantil. Infelizmente, o ambiente político internacional penalizou Portugal, que se mantinha uma potência colonial cobiçadíssima, além de muito criticada por não se render à democracia. Factores vários, alguns totalmente estranhos aos critérios artísticos que deveriam imperar, não favoreceram o reconhecimento da qualidade da produção nacional (em geral), menos ainda de as consagrar internacionalmente, ainda que algumas fossem merecedoras de distinções supra nacionais. Ainda assim, em 1969, foi-lhe atribuído o Prémio Internacional da UNESCO pela sua V Sinfonia, além do reconhecimento como sinfonista notável. Teve o mérito acrescido de conciliar a riqueza sinfónica com a capacidade de construir obras que «não desdenhando as conquistas do século XX, falassem ao homem comum com simplicidade e clareza», segundo o próprio. 

A versão completa da sinfonia vem aqui postada, podendo facilmente ser abreviada movendo-se o cursor da régua em baixo para a direita. Anotação sobre os 4 andamentos: I. Lento; II. Andante; III. Allegro Tranquillo; IV. Lento: 



Se há ponto forte nos portugueses é a internacionalidade, que não é sinónimo de cosmopolitismo, pois tem mais a ver com a capacidade de aculturação a outras culturas e a facilidade de contacto com gentes exóticas, indo além dos atributos do cosmopolita. Aliás, a aproximação de civilizações foi iniciada por Portugal, com os Descobrimentos, inaugurando o longo (e imparável) processo de globalização interplanetária, que encurtou distâncias. 

Embora saibamos que menor distância geográfica pode não se traduzir por menor distância afectiva, sempre ajuda. Pelo menos, favorece a saudável afinidade que decorre da mera entrada de um ser humano no horizonte visual de outro. Sim, aquela cara desconhecida pode ganhar alguma familiaridade. Como diz o ditado: longe da vista, longe do coração, percebendo-se que o inverso também funciona. Aliás, foi esse o sentido do InterRail ou do programa Erasmos, quando se procurou aproximar os povos europeus. 

Também em programas semelhantes, Portugal deu um contributo ímpar e original com o programa Inov Contacto(1)Lançado em 1997 (com a designação abreviada a “Programa Contacto”) proporciona estágios a recém-licenciados em empresas espalhadas pelo mundo. O objectivo é ampliar a oferta de trabalho e de horizonte de vida dos mais novos. Nada menos do que todo o planeta, sintonizando com a definição do português (extensível a qualquer ser humano) verbalizada por um sábio de todos os tempos, nascido em Lisboa, no século XVII –  P.António Vieira (1608-1697): «Para nascer, Portugal: para morrer, o mundo. Para nascer, pouca terra; para morrer, toda a terra.»  

Defensor dos proscritos, acabou ele próprio perseguido, apesar da sua proximidade
com a coroa. Primeiro, foi afastado do Maranhão pelas posições públicas contra a escravatura. Depois, padeceu 2 anos numa prisão (1665-1667) em Coimbra pelas
denúncias à inquisição. Por fim, valeu-lhe a protecção da rainha Cristina da Suécia, aquando da sua estadia em Roma, para onde rumou depois de ser liberto

Claro que foi a frase do imperador da língua portuguesa  (como lhe chamava Pessoa) escolhida para figurar na lápide que assinala a primeira morada do jesuíta, junto à Sé de Lisboa. 

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
_____________
 (1)   Recomenda-se  a consulta ao site www.inovcontacto.pt, com inscrições abertas até 11 de Setembro.

20 setembro 2015

25º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mc 9,30-37

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus e os seus discípulos caminhavam através da Galileia,
mas Ele não queria que ninguém o soubesse;
porque ensinava os discípulos, dizendo-lhes:
«O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens
e eles vão matá-l’O;
mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará».
Os discípulos não compreendiam aquelas palavras
e tinham medo de O interrogar.
Quando chegaram a Cafarnaum e já estavam em casa,
Jesus perguntou-lhes:
«Que discutíeis no caminho?»
Eles ficaram calados,
porque tinham discutido uns com os outros
sobre qual deles era o maior.
Então, Jesus sentou-Se, chamou os Doze e disse-lhes:
«Quem quiser ser o primeiro será o último de todos
e o servo de todos».
E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles,
abraçou-a e disse-lhes:
«Quem receber uma destas crianças em meu nome
é a Mim que recebe;
e quem Me receber
não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou».

19 setembro 2015

Pensamentos impensados

Antigamente a escola era risonha e franca
Sempre apoiei um professor que dava palmatoadas nos alunos; até lhe dizia que nunca as mãos lhe doam.

Tiroteio
 Tomou carvão vegetal mas, mesmo assim, saiu-lhe o tiro pela cloaca.

Aos políticos
Não precisam de honrar a Pátria; a Pátria vos contempla.

Jogos infantis
Dantes brincava-se aos polícias e ladrões; agora, aos políticos e ladrões.

SEF
Não sabe de que país ela é? Observe-a.

Coincidências
Vejo na internet uma notícia da TSF: dois asteroides chocaram ao mesmo tempo e na mesma zona da Terra.
Com que terá chocado o cérebro do redactor? Ele sempre há cada encontro!

Tipo aborto
Portugal pode ter alterações ao clima: basta escrever klima ou quelima.

Viagem inaugural
Vasco da Gama, quando partiu para a India, foi seguido por uma data de passarada. 
Só disse: a primeira milha é dos pardais.

SdB (I)

18 setembro 2015

Músicas dos dias que correm



Meu Portugal Meu Amor

Ai meu país
De onde vens, p'ra onde vais
Com tanta gente a fazer
Dos teus dias os meus ais

Ai meu país
Minha terra portuguesa
De Camões que tu tiveste
Pelo ventre da tristeza!

Todos os dias te canto
A condição de ser tua
Neste fado, neste pranto
Eu por ti ainda canto
Descalça por qualquer rua!

Não sei se te cante ou chore
Não sei se te grite um dia
Que na força deste canto
Rasgo a alma e digo em pranto
Que eu por ti ainda morria!

Ai meu país
Que trazes nos olhos fado
Desse rei que não voltou
Ao seu povo desejado

Na minha boca
Trago sempre o teu sabor
Por isso te canto e digo
Meu Portugal, meu Amor

(música de Fontes Rocha, letra de José Luís Gordo)

17 setembro 2015

Da vida que pode ser uma gaita

10.09.2015 (fotografia de JMAC, o homem de Azeitão)

Conheci-a em 2001, ano de todos os perigos. Já nessa altura tinha uma vida familiar desafiante, fruto de certezas e de interrogações, que estas últimas podem ser piores do que as primeiras. Mesmo assim encontrou tempo para se juntar a dois desconhecidos que se juntavam a tantos outros com um objectivo comum, maior do que todos. Ficámos amigos. Devo-lhe o que me mostrou, o que é, com todas as imperfeições que são inerentes à nossa condição humana. Nos últimos dias voltou a ser abalada por um sufoco, uma interrogação uma visão preocupada do futuro. Mas uma, que já lhe conheci vários. 

A vida de cada um de nós é um desafio muito grande: àqueles a quem a vida corre sempre bem, o que fazer de tanta felicidade; àqueles que são confrontados com um ou dois ou três acontecimentos funestos, como encontrar paz; àqueles para quem a vida é um permanente sobressalto, como seguir em frente. 

Há alturas na nossa vida em que a fé nos salva, a confiança no futuro nos salva; há momentos em que são as nossas redes sociais de apoio, porque nos acontece o mesmo que aos outros, mas esses estão sozinhos, sem ninguém que os oiça ou lhes ampare um desabafo; há momentos em que é a descoberta do sentido para as coisas, seja num amor, num desgosto, num empreendimento. Mas há momentos em que nada faz sentido. Quando morreu o Pe. Ricardo, um homem bom, que tocou uma infinitude de pessoas, que mudou a vida de tantas outras, afirmei isso: não me falem da Páscoa de Jesus, não me falem da vida eterna. Agora quero alguém que me acompanhe na irritação, talvez no estupor com que olho para os dramas que acompanho. 

Às vezes não há nada que nos salve, porque o sentimento de espanto, de injustiça, de cansaço, se sobrepõe a tudo. Às vezes, por mais crentes que sejamos, temos o direito à indignação de olhos postos no alto. Que já chega, que me deixem os meus em paz, que me deixem encher o peito de ar para enfrentar mais uma onda que me engole. 

A fé salva-nos, mas a vida por vezes é uma gaita. E está muito longe de ser justa...

JdB      

16 setembro 2015

Poemas dos dias que correm

Roma, Setembro de 2015 (fotografia de TdB)


soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

***

Quanto Morre um Homem

Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

15 setembro 2015

Duas Últimas

Este fim de semana, completando uma série intensa desde Junho, estive num casamento. Melhor, em dois, separados por 70 km de estrada alentejana. O primeiro era da filha de grandes amigos - sobretudo de uma grande amiga a quem me liga uma amizade com 40 anos e muitas confidências esperançosas e lamentosas. 

Na homilia, o Pe. Nuno Amador sugeriu três palavras que seriam, segundo me pareceu, uma espécie de legado do nosso Pe. Ricardo para os casamentos: criatividade, persistência, obediência. Se para as duas primeiras palavras não haverá resistência, a terceira será mais difícil de engolir. Temos uma relação menos boa com a obediência, dificuldade essa que se intensifica quando supomos (e a suposição é totalmente errada) que teremos de obedecer ao nosso cônjuge.

Enfim, retornemos à amizade. Há muitos anos, talvez mais de 30, fui com esta amiga e outras pessoas próximas passar uns dias ao Algarve. Nessa altura ouvíamos muito José Feliciano - ou talvez ouvíssemos apenas uma música dele, já não sei. O que sei é que daqueles dias algarvios me saiu uma letra para ser cantada na igreja. Uns versos beatos, portanto. Hoje, por puro acaso, dei por mim a ouvir a música que deu origem à letra - música que não ouvia, por quem a criou, há muitos muitos anos.

Deixo-vos com José Feliciano, na sua primeira visita a este estabelecimento.

JdB  

13 setembro 2015

24º Domingo do Tempo Comum

EVANGELHO – Mc 8,27-35

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus partiu com os seus discípulos
para as povoações de Cesareia de Filipe.
No caminho, fez-lhes esta pergunta:
«Quem dizem os homens que Eu sou?»
Eles responderam:
«Uns dizem João Baptista; outros, Elias;
e outros, um dos profetas».
Jesus então perguntou-lhes:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».
Ordenou-lhes então severamente
que não falassem d’Ele a ninguém.
Depois, começou a ensinar-lhes
que o Filho do homem tinha de sofrer muito,
de ser rejeitado pelos anciãos,
pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;
de ser morto e ressuscitar três dias depois.
E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.
Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O.
Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos,
repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,
porque não compreendes as coisas de Deus,
mas só as dos homens».
E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:
«Se alguém quiser seguir-Me,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.
Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;
mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho,
salvá-la-á».

12 setembro 2015

Pensamentos impensados

Vicios
Até durante o trabalho bebia, era um work alcoholic

Vestimentas alfabetizadas
Uma camisola interior com mangas, é uma T-shirt.
Sem mangas é uma I-shirt.

Eslogam
Determinadas pastilhas poderiam usar como slogan "dura sex sed sex".

Bodas
Partindo do princípio que Adão e Eva casaram, o único convidado foi Deus.

Haja respeito
Sou Católico e tenho o máximo respeito e admiração pelo Papa Francisco. Este intróito é fundamental para o que escrevo a seguir.

Nos Evangelhos não há uma referência a uma risada, piada, trocadilho por parte de Jesus Cristo.
O Papa Francisco está sempre alegre e a rir-se; será o Papa Francisco o anti-Cristo?

Trabalhos de Hércules
Os Esquimós são mais fracos do que os portugueses: não conseguem trabalhar de Sol a Sol.
Mas quando lhes dá para dormir à noite...

Germinação
O Intendente, em Lisboa, vai ser geminado com a sua congénere brasileira: meninas gerais.

Sáu-de-se quem poder
Incontinente - Militar que se recusa a fazer a continência.

SdB (I)

11 setembro 2015

Dos pormenores

Para a T. e para o F.

***

Já aqui escrevi sobre este tema: tenho uma atenção errática aos pormenores. Profissionalmente sempre fui desatento, não tenho imaginação para, num tabuleiro de pequeno-almoço, criar uma nota que dê um toque de requinte. E no entanto sou atento a outros detalhes: uma madeixa descaída sobre um olho, uma cicatriz num pulso, uma curva delicada numas costas, uma sorriso tímido que se revela mediante uma palavra-chave. A minha atenção ao pormenor tem um objectivo - a criação de uma história, a imaginação de uma vida, a suposição de um fetiche numa existência alheia. Não é por romantismo, estética ou outra coisa qualquer. É apenas uma imaginação a querer furar a opacidade de qualquer coisa. É apenas, com um grande pudor pela apropriação da frase, a louca da casa.  

Pessoa que me é muito querida enviou-me esta imagem de um cadeado, tirada na Florença onde estive há poucos anos, na ponte onde estive na mesma altura. Talvez o cadeado já lá estivesse, talvez tivesse sido posto depois por alguém que, de olhos postos num amor que se vai destruindo, num afecto que não subsiste ou numa relação que agora (re)começa, diz ao futuro: não desistirei. A imaginação é infinita, não limitada por legislação ou princípios morais.  


A fotografia pode ser apenas um cadeado - talvez barato, made in China - preso a uma travessa de uma ponte. Mas a fotografia pode ser o fotograma de um filme, um grande plano de duas pessoas que se encontraram fortuitamente no passado, que se olharam, se apaixonaram e decidiram fixar o mesmo ponto no horizonte. O cadeado pode ser apenas a junção engenhosa de peças metálicas, torneadas a preceito e respeitando os parâmetros de qualidade. Mas o cadeado pode ser o lugar geométrico de duas almas presas uma à outra, ligadas para sempre porque a chave que as desprende - o egoísmo, o orgulho, a violência verbal, o rancor - foi atirada à corrente forte de um rio que não pára. Esta chave desprende, não liberta, porque a verdadeira liberdade é a ligação que perdura. Só somos donos das coisas quando delas podemos dispor, e a liberdade que entregamos é o nosso melhor activo.

Esta ponte - se é a ponte que eu imagino - está pejada de cadeados iguais. Um, dois, cem, três mil. Mas só um, este mesmo que foi fotografado, é o protagonista do filme certo, intitulado não desistirei. Porque foi este cadeado que reteve o olhar de quem o quis ver, não com os olhos que vêm o típico, mas com o coração que adivinha o amor.

JdB 

10 setembro 2015

As portas do cerco

O estabelecimento de ensino universitário era reconhecido a nível mundial: o rigor e competência da classe docente, a taxa de empregabilidade, o rácio oferta / procura, a ausência de escândalos, a sobriedade das instalações não obstante a sua dimensão, os princípios de ética subjacentes às matérias ministradas e às conversas regulares entre professores e alunos. 

A escola, malgrado ser teoricamente mista, tinha regras muito próprias, nunca violadas: apesar do internato, dentro das instalações (porque fora delas cada pessoa seguia códigos próprios) rapazes e raparigas nunca se cruzavam, nunca se viam, estavam impossibilitados de qualquer contacto físico ou verbal. E no entanto frequentavam a mesma escola. Se era um professor a ministrar uma certa cadeira, na sala de aula só havia rapazes, sendo que as raparigas acompanhavam a matéria dada por meio de um sistema que as impossibilitava de ver os colegas e o docente; a inversa também se aplicava.

A propina dos rapazes era elevada. A das raparigas era muito baixa, sendo compensada com actividades de carácter doméstico - confeccionar a comida, lavar e engomar a roupa, pôr e levantar a mesa, fazer as camas. Nunca, mas nunca, vendo os destinatários das camisas que tratavam, dos lençóis que esticavam, dos rissois que fritavam. Um sistema de câmaras comunicantes, de portas de sentido único, de vigilância permanente garantiam a segregação absoluta. Uma espécie de apartheid ultra-rigoroso englobando todos os sentidos. Se o regime de internato lhes fosse imposto desde o dia em que nascessem, poucos saberiam que existia algo chamado sexo oposto

Maria frequentava esta escola há dois anos. Raramente ia a casa, pois calcorrear 500 km, qualquer que fosse o meio de transporte, não era coisa fácil - menos ainda barata - pelo que ficava por Lisboa, frequentando alguns bares ou discotecas mais decentes com colegas da escola. Num dia de Inverno rigoroso, a poucos dias do início do Advento, cruzou-se com o Manuel num bar da moda. Ficou estarrecida com o impacto. Não percebeu se era do cabelo grisalho num rapaz jovem, da boca carnuda, das pernas esguias, do tronco bem delineado numa roupa corriqueira, dos olhos peregrinos. Ou talvez fosse, apenas, a visão de um homem no final de um período de estudos e exames onde só se cruzava com mulheres. Talvez fosse tudo isso, ou ainda de um cocktail que a haviam obrigado a provar.

Nessa mesma noite Maria deitou-se a chorar. Na manhã seguinte levantou-se a chorar. Não era a primeira experiência sexual dela. Mas num carro? Com um desconhecido que lhe dizia que ia para Macau de férias, onde os pais trabalhavam? Não era possível! E no entanto tinha acontecido. Pior que tudo, divertira-se, gostara, apetecera-lhe repetir embora a probabilidade fosse baixa, já que o bar ficava fora do seu circuito. Voltou a chorar e agarrou um cesto de roupa suja para por na máquina de lavar. Foi então que se confrontou com um par de boxers de onde sobressaía uma fotografia: as Portas do Cerco e a frase de Camões: "a Pátria honrai, que a Pátria vos contempla...". Percebeu tudo ao identificar um cheiro que também era dela...

JdB           

09 setembro 2015

Duas Últimas

Sérgio Godinho completou 70 anos no final do passado mês de Agosto.

Não é novidade que se trata de personagem multifacetado e controverso. Por ele tenho terçado armas em conversas de interesse duvidoso, pois não fiquei convencido nem muito menos convenci.

Tem obra extensa, com algumas preciosidades pelo meio. E continua a fazer boa música.

Deixo-o com o “irmão” Caetano Veloso, numa música retirada dum magnífico álbum de duetos, de 2003.

fq





08 setembro 2015

Das injustiças

Sábado passado levei uma filha ao altar. Dispensarei pormenores do dia solarengo, da satisfação dos noivos, do divertimento de todos, do meu discurso de cachecol do Belenenses ao pescoço (contrariando muito vagamente uma opção clubística, já que toda a gente gosta do clube do Restelo) da alegria de ter na minha mesa três amigos que, somada a duração das amizades, ultrapassa o século. 

Às tantas falava com pessoas próximas cujas filhas tinham tido primeiros casamentos muito curtos. Meses num caso, dois anos noutro. A primeira vítima de um abandono, a segundo co-vítima de uma escolha desacertada. Ambas as raparigas, ainda que em estágios diferentes, recompuseram  a sua vida - ou estão em vias de - com relacionamentos que poderão durar uma vida. E depois, como sempre, vem-me à lembrança gente que me é próxima e que passou pelo mesmo - um insucesso curto seguido de um sucesso longo. 

Infelizmente, estes insucessos curtos ou são dolorosos ou marcam para a vida. O acesso ao sacramento do matrimónio tem um sinal de proibido, a menos que haja declaração de nulidade dos primeiros casamentos - solução a que nem todos podem, ou mesmo querem, recorrer. O mundo é-lhes por isso injusto (ou potencialmente injusto, vá...) em particular quando a educação cristã que tiveram as impele a uma vida religiosa tão completa quanto possível. É como começar uma maratona já com um joanete infectado... Bem podemos falar entusiasticamente de comunhão espiritual, que todos sabemos ser insuficiente para uma plenitude de prática que passa pela comunhão. Porque foi assim que crescemos - a comunhão é o culminar de tudo. 

O sínodo da família, convocado pelo Papa para Outubro deste ano, proporá soluções para algumas situações tipificadas. Ao que tudo indica, os processos da vulgarmente chamada anulação de casamento serão tornados mais fáceis, transformando-os numa espécie de divórcio religioso. Não o escondo: a via ortodoxa é-me muito mais simpática porque, não eliminando as declarações de nulidade, acolhe as que não se enquadram nesse figurino. Dá uma segunda oportunidade a pessoas que as querem verdadeiramente.

A igreja tem um caminho para fazer. Como sempre, fá-lo-á de forma lenta, ponderada, sustentada, sem presunção de agradar a todos, porque a universalidade é um desafio. Talvez fizesse uma sugestão (uma graça, apenas, pois ninguém, felizmente, me ouve): que acabassem com a palavra 'adultério'. E a seguir com a ideia de 'uniões irregulares'. Um segundo casamento longo, onde há amor, estabilidade, luta pelo sucesso do projecto, educação dos filhos para a ética e para a atenção ao próximo, pode ser apelidado de irregular, ou ser composto por adúlteros? As palavras não valem todas o mesmo e há expressões que são particularmente agressivas, revestidas de um rigor legislativo que aleija.

JdB    

07 setembro 2015

Vai um gin do Peter’s?

Por vezes, é preciso que as conclusões mais óbvias sobre a natureza humana sejam defendidas por cientistas de renome, para voltarmos a acreditar que são possíveis e que fazem sentido. 

Há, pelo menos, dois termos que foram tão glosados e usurpados pelos políticos (sobretudo os piores déspotas do século XX), além de desgastados por modas frívolas e pseudo-libertadoras, que ficaram reduzidos a contos infantis, bons para enganar aqueles idealistas incautos que perseguem sonhos como as crianças gostam de correr atrás de bolinhas de sabão. Depois de se tornarem em terreno fértil para as megas desilusões, sobreveio-lhes o cinismo dos sobreviventes, porque também não era possível ignorá-los. É uma dupla semântica demasiado vital para poder ser banida, apesar de todo o achincalhamento de que foi objecto, entre os equívocos da maioria e a sabotagem de uns quantos manipuladores de serviço. São eles: o amor e a verdade. Intencionalmente, vão sem maiúsculas para evocar a acepção mais universal, extensível a todos os homens de boa vontade, de qualquer latitude ou credo.   

Foi exactamente sobre eles que o Nobel da Economia, John Nash (1928-2015), se pronunciou no discurso proferido na Academia Sueca, em 1994, apoiando-se no seu inegável prestígio de génio matemático, para lhes tentar devolver o antigo significado, quando gozavam de um saudável estado de graça, no alvor da linguagem humana. Provavelmente, foi a necessidade de os verbalizar que esteve na origem da comunicação humana. Nash refere um explicitamente, enquanto o outro está subjacente pois foi o caminho que lhe franqueou o primeiro. 

John Nash corresponde ao físico e matemático interpretado por Russel Crowe em «A beautiful Mind», vencedor de 4 óscares, em 2001, incluindo o de Melhor Filme. Celebrizado pela Teoria dos Jogos e criador de teoremas vários, padeceu durante décadas de esquizofrenia, acabando por descobrir formas de controlar a doença a ponto de, a dada altura, se considerar curado. 

Estudante brilhante, com apenas 21 anos recebeu o doutoramento na Universidade de Princeton, para onde um professor de Física o tinha mandado com uma carta de recomendação tão sumária quanto eloquente: “este aluno é um génio”. 

O Nobel interpretado por Russel Crowe no filme «Uma Mente Brilhante».

Em Princeton perceberam lindamente a mensagem, pelo que acarinharam o novo estudante, confiando que viria a prestar um serviço maior ao saber. Nash correspondeu por inteiro, enriquecendo inúmeras áreas do conhecimento para lá da ciência dos números. É sua a noção revolucionária sobre a possibilidade, ou melhor, a vantagem explícita (em muitos casos) de dois competidores optarem antes pela cooperação, em vez de exacerbarem o despique, para rentabilizar o benefício de ambos. Mais: é frequente a falta de cooperação resultar em perda, segundo o Nobel. Uma estratégia inovadora, até ali circunscrita à minoria ínfima disposta a levar a sério a magnanimidade e abertura ao próximo, mesmo que ao preço de perdas assinaláveis para a facção generosa. Pela primeira vez, o gesto de cooperação via-se defendido por fórmulas matemáticas e demonstrações claras do lucro. O processo negocial avançava, assim, para a fórmula humana mais fecunda e conciliadora do win-win. De certo modo, a caridade deixava de ficar reduzida à fórmula unilateral de só um lado oferecer sempre a face, disposto a tudo. Designou-se de “equilíbrio de Nash” na sua Teoria dos Jogos. 

Voltando ao discurso proferido em Estocolmo,  o Nobel explicou a correlação entre amor e verdade numa lógica cristalina que, precisamente, uma criança poupada aos malabarismos dos cínicos terá mais facilidade em perceber: 

«Thank you (à Academia do Nobel). I've always believed in numbers and the equations and logics that lead to reason.
But after a lifetime of such pursuits, I ask,
"What truly is logic?"
"Who decides reason?"
My quest has taken me through the physical, the metaphysical, the delusional -- and back.
And I have made the most important discovery of my career, the most important discovery of my life: It is only in the mysterious equations of love that any logic or reasons can be found.
I'm only here tonight because of you [dirigindo-se à mulher, Alicia].
You are the reason I am.
You are all my reasons.
Thank you.» 

O grande matemático será daqueles casos em que a história de vida supera a grandeza do legado científico. Como Russel Crowe disse do casal, ao saber da notícia da sua morte, em Maio deste ano, eram «uma parceria incrível, mentes brilhantes, corações brilhantes.». Esteve longe de viver um mar de rosas, apesar do êxito retumbante nalgumas áreas. 

Para lá da ascensão académica meteórica, na primeira fase da vida, ressentiu-se dramaticamente mal surgiram os sintomas de esquizofrenia, quando a mulher engravidou. Ironicamente, tudo se concentrou em 1958 e 1959, entre o diagnóstico psiquiátrico, o reconhecimento no exigentíssimo mundo universitário norte-americano e o nascimento do primeiro filho. Em menos de nada, a terrível doença fez desabar tudo: primeiro a carreira universitária, tendo de ser internado; depois a relação familiar. Bondosamente, Alicia, com quem casara em 1957 depois de a ter conhecido como aluna quando leccionava no MIT, esperou um ano inteiro antes de dar o nome ao primeiro bebé, porque queria que John participasse na escolha. Em 1963, divorciaram-se de tal modo era difícil um entendimento mínimo. Sempre por perto, a mulher continuou a assisti-lo. Inclusive albergou-o em casa, logo que teve alta hospitalar, já nos anos 70, incentivando-o a superar o estado de alucinação regular que o assaltava. O lema de Alicia resumia-se a proporcionar-lhe um ambiente tranquilo e estável, cheio de afectividade. Fazendo parecer tudo simples, explicou da forma mais modesta, à biógrafa do Nobel, o modo como contribuíra para a cura inimaginável do marido: «it's just a question of living a quiet life».

De facto, a meio dos anos 80, respaldado pela mulher, John começou a melhorar consideravelmente, até se sentir curado. Segundo o próprio «saí do pensamento irracional sem medicação», numa combinação extraordinária de empenho pessoal e milagre de amor por parte da família, heroica no acompanhamento de uma doença gravíssima. Um processo win-win levado à letra, com enorme esforço de parte a parte para haver a desejável colaboração. Por isso, o matemático tinha tanta autoridade para declarar à Academia que o seu maior contributo para o conhecimento se situava numa área inexplorada do saber: «Fiz a mais importante descoberta da minha carreira, a descoberta mais importante da minha vida: É apenas nas misteriosas equações do amor que a lógica ou as razões podem ser encontradas.»

Em 2001, voltou a casar com Alicia, com quem sempre mantivera um relacionamento próximo e muito amigo. No passado Domingo 23 de Maio, encontraram juntos a morte, num desastre de automóvel, à saída do aeroporto de New Jersey, quando o táxi onde viajavam se despistou. Uma vida a dois até ao último minuto, permitindo-lhes superar em conjunto os desafios mais duros, a par de momentos gratificantes.   

John e Alicia Nash


Para lá da lição de grandeza oferecida pelo casal Nash, sobretudo Alicia transmitiu também o valor pouco reconhecido do saudável bom senso, que permite maior adesão à realidade, sem fantasias caprichosas. Sim, aquela qualidade subtil e de aparência comezinha, que funciona melhor nos bastidores, podendo soar a cinzentona para quem esteja viciado num tipo de vida híper mediatizado. A este respeito, o caso anedótico do «teste da banheira» é um bom exemplo sobre a forma como nos deixamos enredar e condicionar pelos modelos pré-fabricados que nos impingem, deixando-nos enfeitiçar por raciocínios pseudo-habilidosos e cheios de pompa, que não levam a lado nenhum, para lá do exibicionismo de egos desmesurados e incapazes de cooperar, na acepção pragmática recomendada pelo Nobel. Um problema muito comum nas sociedades ocidentais. Em último instância, o bom senso tem a ver com uma percepção correcta da vida, facilitando a descoberta da solução mais adequada para cada caso: 

Durante a visita a um hospital psiquiátrico, um dos visitantes perguntou ao
director:
- Qual o critério para decidirem quem precisa de ser
internado?
O director procurou esclarecer:
- Enchemos uma banheira com água e oferecemos ao paciente uma colher,
um copo e um balde e pedimos que a esvazie. Depois decidimos se o
hospitalizamos ou não em função do método que ele utilizar para executar a
tarefa.

- Ah! Já percebi. Uma pessoa normal usaria o balde, que é maior que o copo e a colher. – respondeu prontamente o visitante.
- Não! - respondeu o director. - Uma pessoa normal tiraria a válvula. O
que prefere, quarto particular ou enfermaria?
CONCLUSÃO: quase sempre, a vida tem mais opções do que as oferecidas, basta saber enxergá-las. 

Óptimo Agosto, esperando que alguma eventual falha no teste da banheira não tenha dado pretexto a internamento... Mas mesmo num cenário menos simpático, nada que uma negociação (com os clínicos de serviço), conduzida no espírito construtivo preconizado por Nash, não consiga resolver, a bem de todos.

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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