Num gin anterior (22 de Abril), a exposição «360º Ciência Descoberta»(1) teve uma primeira abordagem, valendo a pena
retomar o tema, numa outra perspectiva: a da revolução de mentalidades despoletada pelos Descobrimentos, que se
repercutiu na ciência. Esta mostra resulta numa reposição justa e
extraordinária da história portuguesa, ao revelar a achega dada pelos
Descobrimentos marítimos dos séculos XV e XVI para a evolução da ciência
moderna. Este reconhecimento, hoje aceite pela historiografia actual, data
apenas de há uns 12 anos, tendo começado com historiadores espanhóis
conceituados e logo contagiado os especialistas norte-americanos.
De todos os feitos
associados à maior gesta da história pátria, o contributo para o saber costuma
ser ignorado, embora naquele tempo tenha sido diferente. Só que não deixou
rasto. Exemplo disso é o comentário de Kepler ao ímpeto revolucionário dado à
ciência por Galileu, considerando-o o «Colombo» (sic) do século XVII.
Um parêntesis curioso: nesta
exposição encontra-se matéria de sobra para romances históricos empolgantes,
envolvendo as intrigas do poder; ou os inúmeros segredos de estado relacionados
com mapas, técnicas náuticas, instrumentos marítimos inovadores, etc.; ou a
guerra de espionagem à volta dos segredos cobiçadíssimos pelas potências
estrangeiras; ou as peripécias ligadas à conquista de um planeta desconhecido,
que passou a ser mapeado a 360º; ou o entusiasmo com as novas propriedades da
fauna e flora exóticas, assim como o modus vivendi tão original de civilizações
longínquas ou ainda o fascínio com as paisagens inimagináveis para um europeu; ou
toda a aventura humana impulsionada pelos fluxos migratórios no seio de um
império nascente, onde o sol não se punha, do Extremo Oriente à América do Sul.
Sobre as façanhas e
roubos dos espiões, a exposição (e catálogo) alude ao célebre desvio do Planisfério de Cantino (1502), levado
para Itália por um agente do Duque de Ferrara – Alberto Cantino – que o adquiriu
ao arrepio das ordens régias, especialmente restritivas neste campo. Além de
decorativo, era muitíssimo informativo, com o continente americano e a Ásia
devidamente cartografados, o meridiano de Tordesilhas, a indicação de portos e
pontos de apoio para a navegação.
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Dimensões confortáveis para a consulta,
com óptima legibilidade: 22ocm X 105cm.
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Será exagero afirmar que um novo mundo originou uma nova ciência, como sugere a exposição?
Na exposição, vê-se o
salto qualitativo dos mapas, operado em poucas décadas, passando-se de uma
focagem centrada na bacia mediterrânica para a cartografia total do planeta. Finalmente, a terra toda, como se
afirma na Gulbenkian.
Se as mudanças ao nível da quantidade inusitada de novos dados foram,
só por si, impressionantes (geografia, ciências naturais, astronomia, cosmografia,
matemática, medicina, economia, etc.), não foi menos relevante o avanço nas
mentalidades, como talvez nunca antes a humanidade terá vivido, em tão curto
espaço de tempo. Nunca como agora se provava o alcance vital do conhecimento,
conforme Platão precocemente descortinara (aludindo ao auto-conhecimento mas
extensível a todo o saber): «A coisa mais indispensável a um homem é
reconhecer o uso que deve fazer do seu próprio conhecimento». O
alargamento da Terra conhecida e agora integralmente traçada nos planisférios
reflecte-se no alargamento das ideias. O espaço globaliza-se, o tempo ganha uma
escala inédita, os povos das proveniências mais remotas começam a aproximar-se.
O mundo lança-se num processo de globalização sem precedentes e sem retorno.
Do saber certificado pela
autoridade das figuras incontestadas do antigamente, com escritos que
sustentavam toda a base do conhecimento, passa-se ao saber comprovado através
da experiência e pelo olhar presencial, que põe em causa as fontes antigas.
Acresce ainda que os novos observadores não possuem estatuto especial, valendo apenas
por serem as testemunhas das novidades achadas. Novidades essas, que
emprestavam poder a homens comuns, agora capazes de desafiar referências até
ali consagradas. Por isso, acabaram por ser gentes anónimas a denunciar o
limite gritante do saber milenar, afinal tão parco. No fundo, o próprio poder começava
a estender-se a mais actores, descentralizando-se sub-repticiamente, num
contínuo firme e galopante.
O estudo e o registo enciclopédico,
carburados nos gabinetes de outrora, dão lugar ao contacto directo com a
realidade – um novo procedimento que marcará a postura do cientista moderno. Aquela
circulação intensa de conhecimentos, além de criar uma perspectiva global do
saber, gerou um novo olhar sobre a realidade, emergindo a relevância da curiosidade aplicada, baseada na observação
in loco. Uma curiosidade que conseguiu
contagiar toda a sociedade, ávida de também ver a avalanche de seres bizarros que
os viajantes dos galeões descreviam. Os canais do saber começavam a atingir
capilarmente todo o tecido social, deixando de se confinar a um número ínfimo
de privilegiados.
Da pequena elite de
sábios que perdurara até ao final da Idade Média, o saber passa a disseminar-se
por uma classe imensa de artesãos, marinheiros quase analfabetos, favorecendo
ainda o aparecimento de grupos de técnicos, intervenientes na ocupação de lugares
recônditos e no movimento comercial de escala planetária. Assiste-se a uma
democratização gradual (e embrionária) do conhecimento, também apoiada pela eclosão
de uma nova literatura editada em vernáculo, mais acessível à maioria.
É bem expressivo, como
mostra «360º», a mudança dos objectos ora valorizados: do pequeno escritório
atulhado de livros e onde reinava o silêncio, passa-se aos gabinetes de
curiosidades, repletos de espécimen de outras latitudes, instrumentos náuticos,
portulanos e globos, um surto colorido de colecções, artefactos de lugares
remotos, amigos e admiradores, algazarra e animação, a par de um ou outro
livro:
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Um universo livresco, austero e solitário.
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Nos antípodas: um universo
faustoso onde se ostenta a máxima diversidade.
TELA: «The Archdukes Albert and Isabella (of
Habsburg) Visiting a Collector's Cabinet»,
de Jan Brueghel the Elder(1568–1625), no Walters Museum of Art – Baltimore.
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De uma minoria com acesso
aos raros (e caríssimos) instrumentos técnicos existentes, passa-se ao domínio de
instrumentos sofisticados (mas feitos em materiais comuns) pelo pessoal de bordo
das naus portuguesas, que ganharam destreza a manusear o quadrante, a
balestilha, o astrolábio, o anel náutico (de Pedro Nunes), completando a
determinação das latitudes, em pleno oceano, com cálculos matemáticos até ali
circunscritos aos estudiosos. A simples bússola, adequada ao Mediterrâneo,
torna-se obsoleta. Regista-se, então, um crescimento exponencial do público
destinatário dos saberes, conferindo estatuto a uma classe de profissionais
intermédios, capazes de estabelecer a ponte entre os artesãos e os académicos, que
até ali coabitavam em mundos paralelos e apartados um do outro.
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Um instrumento de uso difícil, em mar alto, como puderam
comprovar os convidados da Gulbenkian na expedição náutica
a bordo do veleiro «Polar», realizada no âmbito desta
exposição.
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Do conceito algo
abstracto, mas aceite em todo o Ocidente, de que o planeta era esférico (só na
China se considerava que seria quadrado), passa-se à evidência concreta e palpável desse facto, atestado pelas
multidões envolvidas nos Descobrimentos, que até ali nunca tinham sido audíveis
no segmento selectivo dos sábios. Afinal, coube aos marinheiros dos reinos
peninsulares o mérito de ter dado substância a um dado até ali excessivamente
conceptualizado.
Após as sangrentas ofensivas
no Norte de África e à dureza dos anos de guerra civil e profundas convulsões sociais
em Portugal (fim do século XIV, culminando com o início da dinastia da Casa de
Avis), passa-se a um período de optimismo e festividade, pouco comum na
história nacional. O matemático aclamado além-fronteiras – Pedro Nunes – é disso
porta-voz, confiando no ritmo deslumbrante e aparentemente imparável dos novos
conhecimentos detidos pelos Portugueses: «As navegações deste reino, de cem anos a esta
parte, são as maiores, as mais maravilhosas, de mais altas e mais discretas
conjunturas, que as de nenhuma outra gente do mundo. Os portugueses ousaram
cometer o grande mar aceano (...). Descobriram novas ilhas, novas terras, novos
mares, novos povos e, o que mais é, novo céu e novas estrelas.» (1537)
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Matemático português (1502-1578) célebre na Europa do seu
tempo,
que desenvolveu as técnicas de navegação e inventou
ferramentas de medida
como o anel náutico, o instrumento de sombras e o nónio.
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No mural ao fundo da
exposição, deparamo-nos com um vasto elenco de nomes praticamente incógnitos, a
confirmar o papel crucial de tantos valorosos omissos (a maioria) nos manuais
de história, mas a quem os grandes cientistas dos séculos seguintes ficaram
altamente devedores, como Copérnico, Galileu, Kepler, mais tarde Newton e muitos
outros.
Entre as perguntas que
nos assaltam e nos fazem procurar as causas do desenvolvimento lusitano tão pujante
quanto precário, «360º» (mais ainda, o catálogo) ajuda-nos a reflectir sobre a
relação directa entre o domínio técnico-científico e os recursos financeiros.
Indissociáveis, revelam-nos a História. Como assinala o catálogo: «E voltaram
(os historiadores clássicos) à antiga e sempre relevante questão da relação
entre actividade económica e produção científica, notando, em particular, como
as linhas de comércio haviam funcionado historicamente como canais de
comunicação científica.» (p.95)
Cabe ainda uma menção final a alguma sedimentação bem
eficaz do saber feita em Portugal, quer através dos «Armazéns da Índia» que, ao
serviço da coroa, inventariavam e geriam os dados recolhidos a bordo, quer do
ensino jesuíta, em especial da matemática, com a célebre «Aula da Esfera», no
Colégio de Sto. Antão (actual Hospital de S.José). Ali se preparavam os mais
jovens para a missionação junto da corte do Império do Meio, onde a presença da
Companhia foi preponderante até à deposição do último imperador chinês, em 1912(2). Isso
permitiu que, até à extinção da Ordem no nosso país, pelo Marquês de Pombal,
matemáticos de renome internacional leccionassem em Lisboa, ao serviço dos
jesuítas.
Convenhamos
que os Descobrimentos foram uma iniciativa algo atípica entre nós, pensada com boa
antecedência e implementada com enorme rigor, organização, além de sentido
prático. Segundo o testemunho directo de Pedro Nunes: «Ora
manifesto é que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se
fizeram indo a acertar, mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e
providos de instrumentos e regras de astrologia e geometria. Levavam cartas
muito particularmente rumadas e não já as de que os Antigos usavam (...).»
Além da Feira do Livro (de 23 a 10 de Junho), até 2 de Junho pode gozar-se esta exposição bem interessante, que se clarifica melhor com o catálogo. «360º» tem a vantagem adicional de nos transmitir alguma da esperança que perpassa no Portugal do século XVI, ali representado. Garcia de Orta condensa-o espantosamente, com a autoridade de ter sido dos principais descobridores, precisamente no campo científico: «O QUE HOJE NÃO SABEMOS, AMANHà SABEREMOS» (1563). Só para interiorizarmos esta convicção bem positiva (naturalmente, a partir de motivos inspiradores), já vale a pena rumar até à Fundação na av. de Berna… Programas não faltam, em Lisboa.
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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A exposição reparte-se por seis grupos
temáticos:
I – O SABER PELA PALABRA
II – O ESPANTO DA NOVIDADE
III – DO MEDITERRÂNEO AO MUNDO TODO
IV – CADA ESTRELA É UM NÚMERO
V – PLANEAR: A GESTÃO DO SABER
VI – DO MUNDO NOVO UMA CIÊNCIA NOVA.
(2) Propriamente, a
saída definitiva da Companhia de Jesus dá-se mais tarde, a 8 de Setembro de
1955, quando o governo comunista prende o Bispo de Xangai e toda a comunidade
católica que sobrevivera às várias reviravoltas políticas. Mas a partir do
afastamento do último imperador, a presença daqueles missionários no país torna-se
problemática e arriscada.
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As
maravilhas do mundo natural exibidas na Gulbenkian voltam a encantar o
Velho
Continente. A vitrina linda, onde estão expostas, ajuda a valorizar as peças.
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