31 outubro 2025

Das coexistências pacíficas

 

Utrecht (Países Baixos), Outubro de 2025

A fotografia acima pode ser uma boa metáfora para o que foi a semana que passou. Eu explico a fotografia:

Cheguei a Amsterdão no Domingo, dia 19 de Outubro, para o início de mais uma conferência dedicada à oncologia pediátrica. Cheguei a tempo de um jantar no que é chamada a Chocolate Church. De facto era uma igreja que foi cedida à comunidade e é agora uma sala de espectáculos, ou de eventos. Uns dias. ais tarde fui a Utrecht e fiquei por lá a jantar por amigos. Antes fomos beber uma cerveja a um bar local. Qual não é o meu espanto quando percebo que o bar tinha sido uma igreja... De entre várias curiosidades, o facto de, em paredes contíguas, estar parte da letra de Ne me quittes pas e uma imagem de Nossa Senhora. Cada um faça as interpretações que entender ou que a sua criatividade permitir: Maria, cerveja, Brel. 

O contraste das paredes encontra reflexo no contraste da minha semana. Na verdade, no sábado, dia 25 de Outubro, assistia à última reunião do Board da Childhood Cancer International (CCI) onde servi durante 9 anos, 3 dos quais como presidente. Naquele momento da despedida, entre um abraço e uma piada, percebi que deixava bons amigos, sendo possível que alguns não volte a ver de forma presencial. O que nos distingue das crianças (para pior...) é a sensação do nunca mais. E faz-me alguma confusão perceber que nunca mais verei algumas daquelas pessoas, nunca mais beberei uma cerveja com elas ou trocarei um beijo ou um aperto de mão. 

Tal como me aconteceu em 2006, quando negociei a minha saída da Lever, enchi-me de uma certa tranquilidade, como já aqui escrevi. Tal como há 19 anos, o meu tempo já não é deste tempo: o CCI precisa de pessoas mais novas, com skills diferentes dos meus, com outra agilidade, com outros conhecimentos, com outra linguagem. Eu pertenço a um passado importante - mas passado. 

Se do ponto de vista operacional tudo em mim é tranquilidade, isto é, não vou sentir falta das reuniões constantes, dos mails inadiáveis, das constantes solicitações para isto ou para aquilo, do ponto de vista humano abre-se um certo vazio. Se nem sempre tenho saudades da operação, tenho sempre falta da comunidade. Há 19 anos não senti falta disso, porque já não sentia a Lever como uma comunidade, mas como um conjunto de pessoas, de algumas das quais iria ter saudades. Mas o CCI, em conjunto com o SIOP (organização dos médicos) é(-me) uma comunidade, e um elemento de enorme importância no sentido que quis dar à minha vida. 

Fecho um capítulo da minha vida. Outros se fecharão nos próximos meses. Voltarei a sentir falta da comunidade, das pessoas, do contacto humano, do afecto com que me tratam e da paciência com que aturam as minhas idiossincrasias. O tempo ajudou-me: dentro de mim coexistem pacificamente a cerveja, Nossa Senhora, o ne me quittes pas...

JdB 

30 outubro 2025

Músicas dos dias que correm

 

Deixa eu dizer que te amoDeixa eu pensar em vocêIsso me acalmaMe acolhe a almaIsso me ajuda a viver
Hoje contei pras paredesCoisas do meu coraçãoPasseei no tempoCaminhei nas horasMais do que passo a paixãoÉ o espelho sem razãoQuer amor, fique aqui
Meu peito agora disparaVivo em constante alegriaÉ o amor que está aqui
Amor, I love youAmor, I love youAmor, I love youAmor, I love you
Amor, I love youAmor, I love youAmor, I love youAmor, I love you
Tinha suspiradoTinha beijado o papel devotamenteEra a primeira vez que lhe escreviamAquelas sentimentalidadesE o seu orgulho dilatava-seAo calor amoroso que saía delas
Como um corpo ressequidoQue se estira num banho tépidoSentia um acréscimo de estima por si mesmaE parecia-lhe que entrava enfim
Numa existência superiormente interessanteOnde cada hora tinha o seu encanto diferenteCada passo conduzia a um êxtaseE a alma se cobria de um luxo radioso de sensações
Amor, I love youAmor, I love youAmor, I love youAmor, I love you
Amor, I love you (joga a mão, joga a mão)Amor, I love youAmor, I love youAmor, I love you
Amor, I love youAmor, I love youAmor, I love youAmor, I love you

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A parte a verde é retirada de O Primo Basílio (Eça de Queiroz)

29 outubro 2025

Poemas dos dias que correm

POEMA AO ASSÉDIO

senhor motorista
quando eu era pequena
diziam-me que era mau
ser feminista.
agora dizem-me só que
não é preciso.
mas senhor motorista:
quando disse que me levaria para sua casa,
quando falou em coisas que me deixaram
com medo e
asco
asco
asco
quando disse que eu era tão simpática
e se era tão simpática
e se dizia que não queria
se dizia que não queria
então queria, de certeza.
sei que a culpa não é sua
sou eu que olho nos olhos,
uso batom, vestido curto,
sou educada
e por norma até sorrio
porque me ensinaram assim:
bom dia, boa noite, por favor, obrigada.
senhor motorista:
agora receio as ruas da minha cidade
não gosto que me olhem
fecho as pernas
desvio o olhar
ele a olhar para mim
e agora? agora vou fingir
que vejo a paisagem. ele continua
olha-me pelo reflexo do vidro e agora?
é melhor ver se a saia está baixa, não sorrir, não olhar, não falar,
fechar as pernas,
fechar as pernas fechar as pernas fechar as pernas
e agora?
agora
dou por mim a correr na rua
ao som de um disparo
que nunca aconteceu.
senhor motorista:
não foi por mal que não engracei consigo,
quem sabe numa próxima vez. até lá,
um bom dia, boa noite, por favor,
obrigada.
obrigada.
obrigada.

Francisca Camelo, A IMPORTÂNCIA DO PEQUENO-ALMOÇO, edição Fresca. Tirado daqui

28 outubro 2025

Campanhas dos dias que correm

 

Num momento em que a preocupação dos pais deveria estar centrada no acompanhamento ao filho doente, as dificuldades económicas trazidas pelo cancro são um peso adicional e injusto.

Para mitigar estas dificuldades, e em nome dos pais que representa, a Acreditar dirige esta Carta Aberta aos decisores políticos onde propõe medidas concretas para garantir condições justas a quem cuida.

Conheça e subscreva a Carta: 

https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSfg42AXTb1IEROosbSY5kv_gI7mVOd8Y_tLXxydC0RikFBwLA/viewform?pli=1

E já agora, se puder divulgue.

JdB

26 outubro 2025

XXX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 18,9-14

Naquele tempo,
Jesus disse a seguinte parábola
para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros:
«Dois homens subiram ao templo para orar;
um era fariseu e o outro publicano.
O fariseu, de pé, orava assim:
‘Meu Deus, dou-Vos graças
por não ser como os outros homens,
que são ladrões, injustos e adúlteros,
nem como este publicano.
Jejuo duas vezes por semana
e pago o dízimo de todos os meus rendimentos’.
O publicano ficou a distância
e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu;
Mas batia no peito e dizia:
‘Meu Deus, tende compaixão de mim,
que sou pecador’.
Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa
e o outro não.
Porque todo aquele que se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».

25 outubro 2025

Pensamentos Impensados

Para os ilusionistas a frase-chave é ABRACADABRA. Já para a morgue é ABRACADAVER.

Quando alguém fala em Produto Interno Bruto estará a referir-se às fezes?

O primeiro homem a pôr a "boca no trombone" foi o Calígula; deu "calígula nos dentes".

O Dr. Watson passava a vida aboletado em casa do Sherlock Holmes; para agradecer dizia: Holmes sweet Holmes, there is no place like Holmes.

SdB (I)

24 outubro 2025

30 anos: somos o que fomos, o que somos e o que seremos *

Dois momentos de importâncias muito diferentes motivam a escrita deste artigo: o 31º aniversário da Acreditar, que corresponde ao fim de um ano de celebrações; e, muito provavelmente, o meu último texto para o SAPO enquanto Presidente da Acreditar. 

Vamos ao que importa. A celebração dos 30 anos de existência da Acreditar marca um momento no tempo – e nada mais do que isso. Em bom rigor, a diferença para festejar os 29 anos ou os 31 está no redondo do número. A relevância do festejo não está no algarismo, mas, de uma certa forma, no que sustenta o algarismo: festejamos uma vida, mais do que um aniversário; festejamos um percurso, mais do que um momento. A frase temos 30 anos, se não vier acompanhada do que é tangível (mas também intangível), é apenas uma frase publicitária, ou um convite para uma festa.

Como muitas pessoas que passaram pelo desafio da oncologia pediátrica – seja como doentes, seja como cuidadores – tomei conhecimento da Acreditar pelos piores motivos: o diagnóstico de cancro numa filha com 6 anos. Em 2001 / 2002 a associação era ainda uma entidade pequena, com poucos recursos financeiros ou humanos, a fazer o que podia e sabia – e que era muito! Tive a sorte de acompanhar (no sentido de espectador, mais do que de actor) o movimento estratégico que já era palpável em quem estava à frente da associação: temos de fazer mais e melhor, temos de nos profissionalizar. Esta frase é visionária e generosa: implica um olhar para o futuro e um olhar para dentro. E implica perceber que o tempo que chegou pode já não ser o nosso tempo. 

Na Acreditar, e com a Acreditar, mudou quase tudo em 30 anos – o logótipo, a sede, a presença na sociedade, os conhecimentos, as condições, a informação, o reconhecimento. Construímos casas, influenciámos a criação e revisão de legislação, acompanhámos milhares de famílias, reunimos com decisores políticos ou com administrações hospitalares, tornámo-nos interlocutores privilegiados, atribuímos bolsas de estudo e prestámos apoio psicológico, levámos crianças às suas viagens de sonho. Um dia a Acreditar adaptará o nome, mudará de presidente, ou de director-geral, ou de membros da comissão directiva. Mesmo quando muito mudar - para que sejamos mais eficientes no serviço à nossa comunidade - nunca poderemos dizer que mudámos tudo. O quase não é sinal de que falta mais mudança, mas sinal de que a inspiração inicial se mantém imutável: o espírito de serviço a doentes, famílias e sobreviventes; a dedicação ao nosso próximo através de gestos que nascem num coração, não num manual; a par do tangível – daquilo que se vê e mede – o toque de uma mão que revela disponibilidade interior e escuta activa.

Falar dos 31 anos da Acreditar é falar de uma imensa obra feita que se materializa, não só em mudanças importantes e visíveis, mas em sementes que ficam para o futuro. Somos o que fomos, o que somos e o que seremos. Festejar os 31 anos é, também, celebrar a certeza de um futuro melhor para quem ultrapassou a doença, para quem ouve o diagnóstico de doença cedo demais na vida, e para quem cuida de todos. Utilizando uma metáfora conhecida, estamos confiantes de que muitos se sentarão – felizmente – à sombra de árvores que plantamos agora; ou que plantámos há 31 anos, quando alguns Pais deitaram mão à empreitada. 

Durante este ano organizámos concertos e conferências. À volta de uma orquestra ou de uma mesa-redonda festejámos três décadas de existência e falámos do que nos pareceu mais importante para a comunidade para a qual existimos: o cancro longe de casa, o modelo futuro dos cuidados na oncologia pediátrica, os direitos dos Pais, ou os adolescentes e jovens adultos. Debater e cantar são duas faces da mesma moeda: constitui-nos como actor imprescindível na sociedade para todas as discussões sobre a doença, e a forma como afecta doentes, famílias e sobreviventes; e cria um sentimento de pertença que reforça laços e garante um futuro mais coeso.

Termino com uma nota mais pessoal.

Sou presidente da Acreditar há 18 anos, cargo que deixarei muito em breve. Ser-se presidente da Acreditar é, acima de tudo, um privilégio, uma parte do qual poderá parecer – e talvez o seja – egoísta. Enquanto Pai, o mundo das crianças ou jovens doentes com cancro era a minha casa; ao tornar-me presidente da Acreditar alarguei os horizontes e, ao olhar para o País, o meu mundo ficou mais vasto, humanamente mais rico, apesar dos desafios que vi em tantas famílias. Ao ter podido ascender a um cargo internacional, representando outras associações como a Acreditar, o meu mundo ficou ainda maior, e a sensação de urgência tornou-se mais evidente. Tomar conhecimento destes três círculos - casa, país, mundo - pode salvar-nos. Salvou-me.     

Em Junho desse 2007 já longínquo, quem me antecedeu deu-me um testemunho virtual; cabia-me guardá-lo e entregá-lo, quando o tempo chegasse, a quem me sucedesse. Não me cabe dizer o que fiz ou o que se conseguiu com, ou durante, a minha presidência. Na expressão o seu a seu dono, o dono é, seguramente, a equipa que levou a Acreditar onde está agora e para onde caminha. A mim, enquanto presidente cessante, só me resta agradecer o que os outros sabem que agradeço, e o que só eu sei, dentro de mim, que agradeço. 

João de Bragança,
Ainda Presidente da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro. 
Pai, acima de tudo.

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23 outubro 2025

cadernos andaluzes *

 IV. alhambra, setembro de 2010 

a tabuleta, foi assim que a li (ou tresli):

"ao entrares aqui, esquece as agruras do mundo,
as injustiças do tempo e as desilusões dos homens.
porque este é o verdadeiro palácio, a chave do reino,
intemporal estrela que iluminará os céus dos teus descendentes."

nesses dias largos [como os braços do meu avô],
namorando noites serenas [como o rosto da minha avó],
protegido do mundo, e de mim próprio, [como no quarto da minha tia],
olhando só o futuro risonho [como tu, outrora]

só eu e o tempo, planando neste plano espaço,
semeando luminosas palavras.

umas (as palavras)
e outro (eu ou o tempo? eu ou o espaço?)
à procura de um laço
e de um regaço.

gi.

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publicado originalmente a 15 de Outubro de 2010

22 outubro 2025

Vai um gin do Peter’s ?

O BARROCO SERÁ UMA OVERDOSE?

Numa curta-metragem, um especialista de arte e antigo leiloeiro, que depois foi ordenado e é hoje sacerdote na Catedral de Westminster, explica-nos o sentido e a origem do barroco, que provém de um termo português. Nesta gravação, o Pe. Patrick van der Vorst, nascido em Bruges, na Bélgica, baseia-se em duas obras memoráveis de um conterrâneo seu dos séculos XVI-XVII – Peter Paul Rubens (1577-1640). Ambas pertencem ao acervo do museu de Londres ‘Wallace Collection’ e ambas estão impregnadas da tensão e do dinamismo que esta escola introduziu na arte, conferindo-lhe uma vivacidade cinéfila. 

Numa das telas, retrata-se o momento emblemático em que «Cristo entrega as Chaves a Pedro» (c. 1616): uma negra relativa às coisas da terra e outra dourada para franquear o acesso ao Céu. 


Na outra, mostra-se a «Sagrada Família com Santa Isabel e S. João Baptista» (1614) como num instantâneo familiar, com poses naturais carregadas de movimento e de vitalidade. Embora ainda de tenra idade, os dois primos já revelam traços claros de personalidade e as marcas da sua especial vocação na História. 

A ligação profissional do Pe. van der Vorst às artes e a sua facilidade de comunicação tornam estas visitas guiadas numa descoberta do universo algo encriptado da pintura. Qual detetive dos incontáveis pormenores que recheiam cada tela, desfia-nos a narrativa densa que se esconde nas obras de Rubens. A pergunta com que nos explica o barroco é sumamente interpelativa: «Did Baroque go too far?». O termo tem origem na língua portuguesa e aplicava-se às pérolas com irregularidades. Nos séculos XVII e XVIII, os críticos de arte usaram-no para desprestigiar o novo estilo, que consideravam excessivamente ornamentado, ostensivo e teatral, num desvio imperdoável à harmonia clássica que caracterizava a arte do Renascimento. Demorou até o estilo barroco ser reconhecido e apreciado pela capacidade de expor o dramatismo da vida, os claros-escuros da existência, os paradoxos da realidade. No fundo, tivera a audácia de pintar o pulsar das tensões humanas e as perspectivas multifacetadas da realidade:   


Um escultor português, amigo de família, contava que tinha descoberto e começado a apreciar o barroco, em Roma, na belíssima Basílica de S. João de Latrão. Teve a sorte de entrar, quando decorria uma celebração, onde um coro magnífico entoava cânticos gregorianos, enchendo o templo de beleza. Segundo aquele escultor, os dourados que revestiam as paredes e o tecto ganharam uma luminosidade festiva, mas não excessiva, arrebatadora, mas não ofuscante. Naquele conjunto sumptuoso, a harmonia não se perdera; apenas mudara de escala e tornara-se mais corpórea, fazendo-o sentir-se imerso no brilho envolvente que jorrava em rios luminosos por toda a Basílica. Encontrara uma harmonia nova, mais cintilante e fogosa, que lhe enchera a alma. Aquele testemunho confirmou-me como em Itália a arte parece encontrar um contexto muito favorável.    

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

21 outubro 2025

De mais uma (e talvez a última) conferência

 


Estou em Amsterdão para mais uma conferência sobre oncologia pediátrica que junta Pais, médicos / profissionais de saúde, sobreviventes, investigadores, voluntários ou profissionais de organizações não governamentais / IPSS. Como sempre, revejo amigos de longa data, conheço pessoas novas, cruzo-me com conhecidos. Talvez seja a minha última conferência, depois de ter começado em 2009. De lá para cá mudei de mundo - de uma visão muito local, da minha própria realidade, passei para uma visão nacional e depois global.

Dificilmente conseguiria explicar - embora já tenha mencionado este aspecto várias vezes neste estabelecimento - o que foi o enriquecimento humano que me foi proporcionado durante estes anos todos: muito para além de ter feito amigos que ficarão para a vida, cruzei-me com uma comunidade solidária, disponível, mesmo "operando" em condições muito difíceis, seja na Ucrânia, na Síria ou no Zimbabwe. Pessoas que marcaram a diferença nas suas próprias comunidades, reinventando-se e reinventando as circunstâncias em que vivem. 

Saio daqui sempre mais rico, sempre consciente de que recebi muito mais do que dei. Dei o que sei, mas recebi os ingredientes para contar a história que me salva.

JdB  

19 outubro 2025

XXIX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 18,1-8

Naquele tempo,
Jesus disse aos seus discípulos uma parábola
sobre a necessidade de orar sempre sem desanimar:
«Em certa cidade vivia um juiz
que não temia a Deus nem respeitava os homens.
Havia naquela cidade uma viúva
que vinha ter com ele e lhe dizia:
‘Faz-me justiça contra o meu adversário’.
Durante muito tempo ele não quis atendê-la.
Mas depois disse consigo:
‘É certo que eu não temo a Deus nem respeito os homens;
mas, porque esta viúva me importuna,
vou fazer-lhe justiça,
para que não venha incomodar-me indefinidamente’».
E o Senhor acrescentou:
«Escutai o que diz o juiz iníquo!…
E Deus não havia de fazer justiça aos seus eleitos,
que por Ele clamam dia e noite,
e iria fazê-los esperar muito tempo?
Eu vos digo que lhes fará justiça bem depressa.
Mas quando voltar o Filho do homem,
encontrará fé sobre esta terra?»

18 outubro 2025

Pensamentos Impensados

 Cortiça

A Lei da Rolha, para os bombeiros, terá sido inventada por Américo Amorim?  

Comisxões
Vai ser criada uma Comissão de Inquérito para averiguar o que fizeram as outras Comissões de Inquérito. 

Tradu...sons
Too late em português é tu leite.

Falares
Se há políticos que não prestam declarações é porque as declarações não prestam.

Fogos e factos
No tempo da outra Senhora não havia incêndios como há agora. A culpa seria da PIDE ou da censura. 

Satélites
Astronautas sofrem interrupção involuntária da gravidade.

SdB (I) 

17 outubro 2025

O que é que nos domina?

Paredão do Estoril, um destes dias de manhã cedo

Com as minhas diversas leituras para o doutoramento perco-me quanto ao que li, onde li, porque li, de quem li. Para o caso pouco importa. Alguém, perante uma família que se desmoronava, terá escrito: talvez lhes falte alguma espiritualidade. 

3ª feira, à procura de informações para o post sobre o centenário do meu Pai cruzei-me com um texto (cujo autor conheço relativamente bem) de apresentação de um livro comemorativo dos 50 anos da Faculdade de Teologia da Universidade Católica. A certo ponto diz o autor deste texto: (...) a [intuição] de que uma pessoa que acha que a sua vida é a coisa mais importante do mundo provavelmente não se interessa por teologia, e também com grande probabilidade não será uma pessoa religiosa. A teologia, entre outras coisas, é uma ocupação intelectual que nos lembra constantemente que não somos o que mais importa, de que não somos o centro ou o fim deste mundo.

Vou apropriar-me de ambas as citações - com diferentes profundidades, obviamente - para elaborar um raciocínio que nada tem de científico, talvez apenas ignorantemente intuitivo. Relativamente à primeira, vou assumir que o termo espiritual se deve ler como religioso, embora, em bom rigor, se possa ser espiritual sem ser religioso, sendo que a inversa não será forçosamente assim.   

Penso que conseguimos olhar para uma pessoa que conhecemos relativamente bem e identificar os principais defeitos ou qualidades. Será que podemos olhar para uma pessoa e, identificando esses defeitos e qualidades, identificar também aqueles pelos quais essa pessoa pauta a sua vida? Conseguimos dizer de fulano que é motivado pelo amor, mas que beltrano é motivado pelo combate? O bom ou mau feitio que atribuímos a alguém é o resultado de um somatório de características ou é a evidência de uma característica dominante?  

O ser-se religioso não é garantia de que se é boa pessoa. Há, seguramente, pessoas boas e más nas fileiras do religiosos e dos ateus. No entanto, a pessoa religiosa é, de alguma forma, um estudante de teologia: tem uma vida de escuta que o lembra constantemente de que ele não é o que mais importa, nem de que é o centro ou o fim do mundo. Ser-se este estudante de teologia (e aproprio-me despudoradamente da expressão) é ser-se lembrado constantemente de que a característica pela qual devemos pautar a vida é o amor, na sua expressão mais abrangente.  

Vem tudo isto a propósito de, num passeio muito matinal no paredão do Estoril, me ter questionado sobre o que é o sentimento (ou emoção ou sensação, não interessa para o caso) que me move, ou que me domina. Um minuto depois sabia que era mau estudante, mas, adquirido esse facto, o que é que me move? É a vaidade, a fragilidade, o amor, a luta, o orgulho, a paciência, a justiça, a ira, o idealismo (como me dizia alguém ontem)? O que é, na verdade, dominante em cada um d enós?

JdB 

15 outubro 2025

Dos centenários

Se fosse vivo, o meu Pai faria hoje 100 anos. Dou por mim a pensar nisto e a perguntar-me se lembrarei a minha avó paterna no dia 16 de Fevereiro de 2026, dia em que ela faria 130 anos, que também é uma data redonda, ou se lembraria outras pessoas que, tendo morrido cedo, cumpririam o centenário agora. O quê ou quem queremos lembrar, e porque queremos lembrar?

Estou certo de que ele gostaria de festejar o centenário, e tenho a presunção de achar que sei como gostaria de fazê-lo: com a família mais próxima, com os amigos dos almoços de 6ªfeira, com uma ou outra pessoa afectivamente mais chegada, com as pessoas que o divertiam ou que com ele se riam, ou que tinham atenções e provas de amizade, ou que com ele falavam de família, de gravuras e de loiça, e que percebiam os trocadilhos que requeriam perspicácia. Festejá-lo seria fácil; talvez a sua única exigência fosse que não o maçassem nem que ninguém se maçasse. Sempre que oiço discursos em casamentos ou festas lembro-me do seu conselho sábio: nunca dêem um microfone a um homem. Na única vez que o vi pegar num microfone - no lançamento do livro com parte dos seus Pensamentos Impensados, uma simpatia de um primo, que muito o sensibilizou - talvez não tenha falado durante mais de cinco minutos.   

Começou a publicar (com muito gosto) os seus pensamentos neste estabelecimento no dia 9 de Julho de 2017. A última entrada data de 16 de Março de 2019 e tinha por título Pensamentos Impensados (versão convalescente). Morreria em Novembro desse ano, fiel ao seu princípio de deixar a morte para os últimos momentos. Ainda que com algumas falhas de criatividade que tanto o desmoralizavam, manteve um humor fino até ao final, até quando afirmou que evacuar era ar misturado com vácuo. 

Tenho em minha posse um ficheiro que serviu de base ao livro mencionado acima, um livro que, como está escrito no prefácio que ele me pediu para lhe redigir, foi o Manuel que editou, o outro Manuel que escolheu, o Caetano e o Segismundo que ilustraram [todos de apelido Bragança]. Há ainda o Pedro Alvim que, por ter apelido diferente, garante a seriedade da coisa. O ficheiro tem mais de 600 pensamentos (!!!) e foi obra (com muito riso à mistura) ter de escolher o que seria publicado.

Como homem de fé estou certo de que estará no Céu, um espaço virtual que lhe levantava inquietações, nomeadamente quanto às pessoas que iria encontrar. E perguntava-me: será que vou encontrar o D. João IV? A minha resposta era vaga e ignorante: não faço ideia, talvez encontre quem quiser encontrar... Quer encontrar o D. João IV? 

Como singela mas tocante homenagem (uma frase muito dele) voltarei a publicar os seus Pensamentos Impensados a partir deste sábado. Tenho material suficiente, embora com humor variável. Estou certo de que gostará de ver-se publicado. Estou em crer que mostrará esta pérola à D. Catarina de Bragança (será que também a encontra?) esperançada que ela, tendo sido casada com um inglês, ache graça: os dois sexos que trabalham nos correios em Inglaterra são 'mail' e 'femail'

JdB

14 outubro 2025

Cadernos andaluzes *

 III. la posada de manolo 

no topo do mundo, segredavas-me ao ouvido,
instalados nesse maravilhoso pátio
de onde avistávamos o mundo, inteirinho,
como se pela primeira vez, outra vez.
o sol caía sobre as nossas cabeças despenteadas,
o ar próprio da estação inundava-nos daquele
estranho júbilo a que, em dias serenos,
bem podemos chamar paz.
no topo do mundo, como outrora decerto,
os limites do mundo eram automáticos,
o que a vista alcançava,
nem mais, nem menos, nem diferente.
a justa medida é uma ciência, e das finas,
como esse espinhoso caminho
que é sempre o do equilíbrio
(como desenhar os contornos de algo assim abstracto?).
no topo do mundo, existiam cores, aromas,
todos os sentidos fundidos a frio e a quente
como se alta cozinha molecular e sápida cozinha caseira
se encontrassem finalmente, num nec plus ultra improvável.
do prédio ao lado, coisas da vida que nunca entenderemos,
saía o som perfeito de uma juvenil orquestra sinfónica
ensaiando a preceito alguma grande gala.
star warsindiana jones, bandas sonoras cinéfilas assim,
inundavam ruas, praças, veredas - até o topo do mundo
que neste preciso momento recupero e reivento
para fugaz deleite de dois ou três leitores.
em toledo, na posada de manolo,
recebi uma lição nada menosprezável:
até às cidades feias deves dar a tua oportunidade.
em toledo, no topo do mundo,
tudo isto aconteceu de verdade,
como se este poema enxuto de metáforas
fosse um quase relato da vida tal e qual.
tudo isto aconteceu. ou quase tudo.
não me segredaste ao ouvido,
porque não estavas lá.
sozinho, no topo do mundo,
- que triste e certeiro remate para um poema.

ou para uma vida.

gi.

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* publicado originalmente a 8 de Outubro de 2010

12 outubro 2025

XXVIII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 17,11-19

Naquele tempo,
indo Jesus a caminho de Jerusalém,
passava entre a Samaria e a Galileia.
Ao entrar numa povoação,
vieram ao seu encontro dez leprosos.
Conservando-se a distância, disseram em alta voz:
«Jesus, Mestre, tem compaixão de nós».
Ao vê-los, Jesus disse-lhes:
«Ide mostrar-vos aos sacerdotes».
E sucedeu que no caminho ficaram limpos da lepra.
Um deles, ao ver-se curado,
voltou atrás, glorificando a Deus em alta voz,
e prostrou-se de rosto por terra aos pés de Jesus
para Lhe agradecer.
Era um samaritano.
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Não foram dez que ficaram curados?
Onde estão os outros nove?
Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus
senão este estrangeiro?»
E disse ao homem:
«Levanta-te e segue o teu caminho;
a tua fé te salvou».

10 outubro 2025

O inteligente *

 Sim, sim. Inteligência, claro. Olha… 

Era de madrugada, e Gaspar ouvira este princípio de frase que se imobilizara no cérebro como uma folha teimosa num remoinho de Outono.

Gaspar, o nosso protagonista, tinha-se formado com seriedade no Instituto Superior Técnico. Como sempre acontecera ao longo daqueles cinco anos, corria para enxergar, em duas pautas, em dois pavilhões, as notas dos dois cursos que tirara em simultâneo. Como costumava dizer

temos dois olhos, dois hemisférios cerebrais, dois ouvidos, duas mãos, duas pernas…

e isso era, para si, argumento bastante para a empreitada. Dupla, diga-se de passagem.

Considerado um homem superiormente inteligente, discorria com propriedade sobre qualquer assunto, vivendo nesse limbo que separa, por vezes, a cultura da informação. Ria pouco e o sorriso, quando se abria, era mais um esgar de espanto por ver amigos e colegas gargalhando com uma série cómica, um filme ligeiro, uma anedota. Mas Gaspar, na sua seriedade, tinha a mente noutro lado. Enquanto os camaradas de curso se afadigavam a ver de onde partia a bola (eufemismo para ilustrar a vida em geral, com as suas tendências científicas, propensões literárias, pendores médicos) Gaspar contraía os olhos que todos temos na mente e sabia para onde seguia o esférico cuja partida os outros descortinavam.

O mundo girava e Gaspar, com um bilhete comprado no carrossel da vida profissional, sentia que tudo era uma espiral ascendente. De estagiário passara a contratado a prazo; num feliz Natal fora presenteado com o ingresso nos quadros; quando o conheci em casa de amigos comuns (moramos todos num raio de mil e quinhentos metros) Gaspar era director-geral da empresa. Continuava a não sorrir, mas talvez achasse isso dispensável face a um carro fabricado ontem, a um cartão do ouro mais fino, a férias em lugares impossíveis, a contactos internacionais ao nível da excelência.

Solicitei-o várias vezes para me resolver pequenos problemas domésticos: uma torneira irrequieta, um gás natural sem chama, uma disfunção num reóstato. Sempre prestável e solícito, percebia-se que observava a dificuldade com um duplo olhar (dois cursos, duas mãos): o olhar do cientista que pré-examina o problema à luz do conhecimento teórico e o do homem que não ri, porque aqueles que riem não sabem o que é um reóstato.

Sim, sim. Inteligência, claro. Olha…

Gaspar atentou na nudez de Marília quando ela se levantou da cama. Uma nudez alva num corpo vagamente franzino mas proporcionado, que o acompanhava em noites lentas de há alguns meses para cá. A rapariga fascinara-se por uma inteligência superior e séria que não se perdia em miudezas quotidianas, porque havia o futuro da humanidade, o aquecimento global, a escassez da água, as radiações nocivas, o trânsito caótico.

Sim, sim. Inteligência, claro. Olha… Mas és capaz de me fazer rir?

Gaspar foi desgraçadamente clarividente. Os outros veriam de onde saía a Marília. Gaspar – com os seus dois hemisférios – já percebia para onde ia a ex-fascinada. Quando lhe viu as costas desnudas por onde gostava de passar uns lábios sérios percebeu que, pela primeira vez, tinha chumbado no exame.

Conheço-o bem. No fundo, no fundo, somos todos do mesmo bairro.

JdB

* publicado originalmente a 19 de Outubro de 2009

08 outubro 2025

Vai um gin do Peter’s ?

TRUQUE DOS MÉDICOS DE ROMA PARA ENGANAR OS NAZIS 

Recuando à agitada primeira metade do século XX, com países a despontar e outros a desaparecer, duas guerras mundiais tremendas e uma nova ordem internacional a surgir das cinzas da Segunda Guerra, Itália esteve no epicentro da turbulência política da época. Açoitada por extremismos de direita e de esquerda violentos e despóticos, acabou por sucumbir à sedução de Mussolini, na miragem de novas oportunidades para os descamisados. 

O Duce nas grandes manifestações populares. Anos mais tarde, com o seu maior aliado.

Rapidamente se percebeu que os sonhos ficavam muito aquém da realidade, pois a economia não arrancou suficientemente, pelo que o Governo passou a recorrer à repressão para se manter no poder, replicando a receita de todos déspotas. Mais do mesmo, não fora outra potência europeia especialmente eficaz e com sonhos imperialistas ter surgido no horizonte, fazendo tremer todo o continente: uma Alemanha nazi reindustrializada, fortemente militarizada e a sentir-se apertada, além de injustiçada, nas fronteiras mais reduzidas impostas pelo Tratado de Versailles (perdera cerca de 13% do território) após a derrota na Guerra de 1914-18.     

Para azar de muitos italianos, o deflagrar da Segunda Guerra conseguiu piorar a situação do país, com a decisão do Duce de alinhar com Hitler, integrando as sinistras Forças do Eixo e entrando em conflito com os Aliados.  Quando as forças anglo-americanas começaram a libertar a península itálica do jugo do Eixo e derrubaram Mussolini, as tropas nazis ocuparam o Norte do país e Roma para estancar o avanço dos aos adversários. Terá sido o Outono mais sombrio da capital italiana, até à libertação aliada, em Junho de 1944. 

A 16 de Outubro, as SS lançaram-se numa feroz perseguição aos judeus da capital, que se refugiaram em conventos e em hospitais, para evitarem ser embarcados à força em comboios de onde ninguém voltava. Um dos refúgios mais procurado foi o hospital Fatebenefratelli, que estava estrategicamente situado junto ao gueto judaico da Ilha Tiberina, em Roma.  

Gueto judeu da capital italiana.

O magnífico hospital junto ao gueto judeu de Roma.

Com criatividade e enorme coragem, a equipa médica de Fatebenefratelli fez jus ao nome do hospital – Fazei-bem-Irmãos – e forjou um plano para salvar refugiados judeus das garras das SS. Começaram a diagnosticar os fugitivos com «il morbo di K»! A designação do novo síndrome surtiu bom efeito nos alemães, que associaram o “K” à doença de Koch (tuberculose) e ficaram aterrorizados com a perspectiva de uma pandemia em plena guerra. O nome de código da doença fictícia serviu na perfeição para encaminhar os diagnosticados para os circuitos de fuga até locais menos expostos. Para os autores da recém-inventada síndrome, como o professor Giovanni Borromeo, o médico Vittorio Sacerdoti e outros, o “K” era uma alusão aos dirigentes nazis em Itália: Herbert Kappler - chefe da polícia na Roma ocupada, responsável pela campanha de detenção judaica e Albert Kesselring - marechal de campo incumbido de rechaçar os Aliados de Itália. Os dois foram, depois, condenados por crimes de guerra. 

Em tempos difíceis, ensombrados por tensões perigosas, como os actuais, lembrar truques eficazes para salvar inocentes, sem aumentar o clima de pressão, é uma arte! Que bem inventada a maravilhosa doença K, cuja criatividade tão eficaz deveria servir de inspiração aos diplomatas e aos governantes para salvar os inocentes de hoje.   

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

07 outubro 2025

Cadernos andaluzes *

 II. coitadinho dele 

adoro a vida que tenho, não me esqueço de o dizer a mim própria, a cada manhã que Deus me concede. bem sei que sou pouco exigente, para os dias que correm. uma velha pateta, sofrida, pobremente vestida
- decerto que é assim que me retratam, virando costas com a displicência e a alegria que a juventude, a beleza física, o dinheirito no bolso, normalmente trazem consigo. quem os censura? não eu. não eu. todos os dias carrego comigo, como esta cidade que me viu nascer, viver e onde provavelmente morrerei, a memória dos dias de antigamente. como quando, a partir desta cidade, os mouros ou lá o que eram, dominavam parte importante do que hoje é este país. provavelmente tenho sangue deles, talvez sim. nunca estudei, não sei explicar estas coisas, o ar torrado que os rapazes, em nova, diziam que eu tinha. esplendor (aprendi com um senhor, no outro dia, esta palavra) - ou não será esplendor sentirmo-nos jovens e amadas pelos rapazes da terra? cada qual sabe de si, mas, para mim, isso foi o melhor que tive, até hoje. agora a vida é outra, num rame-rame próprio dos velhos, dos que não contam para as contas. graças a Deus que o tino ainda ficou aqui na cabecinha. e é por isso, se querem saber, que ainda me mantenho viva. todos os dias, à força de pernas e braços, desço do bairro e instalo-me nas ruas mais movimentadas, onde vendo os chocolates, os rebuçados, os doces, que turistas (muitos) e companheiros de luta (poucos) me vão comprando. no dia em que parar, não duro duas estações, é como digo. a sorte de ter uma ocupação, a sorte de ter o que fazer, e o dinheirinho que sempre ajuda a manter a casa arrumada, uma roupita limpa, a pôr comida na mesa. coisas que quem me compra os doces provavelmente não entenderá, mas também para que é que seria preciso que entendessem, bem vistas as coisas? cada um na sua, aprendi com a senhora minhã mãe (Deus a guarde, pobrezinha), que uns nascem para serem poucochinho, mas que talvez haja uma razão para isso. cala-te, mulher, que sabes tu da vida? tantas vezes o teu pai (Deus o guarde, pobrezinho) te deu nas mãos, por meteres o bedelho onde não és, nem nunca foste, chamada. cala-te, mulher. adoro a vida que tenho, já vos disse? podia ser melhor, claro que sim. para outros, mas não para mim. gosto de me levantar bem cedo, de cruzar as ruas com os turistas que querem ver o palácio em sentido contrário. não há lá nada, já morreu tudo, mas querem ver, dizem que é um monumento importante. não sei, nunca estudei, mal sei ler. dizem que sim, que é, e eu acredito. levanto-me cedo, desço do bairro, dou uns dedos de conversa a quem calha, monto a tenda devagarinho, numa sombra que dê jeito e traga gente, e sigo o dia, vendendo o que posso. uns euros aqui, uns euros ali, coisa pouca, mas honesta, como aprendi com quem já não está cá (Deus guarde as minhas tias e o meu homem, pobrezinhos).
hoje, vi um rapaz a olhar para mim, tão triste, que nem queiram saber. coitadinho dele. apesar de estrangeiro, ninguém merece tanta tristeza. uma velha tonta, até ao fim, é o que é.

gi.

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* publicado originalmente a 1 de Outubro de 2010

05 outubro 2025

XXVII Domingo do Tempo Comum

 EVANGEHO - LUCAS 17,5-10

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo,
os Apóstolos disseram ao Senhor:
«Aumenta a nossa fé».
O Senhor respondeu:
«Se tivésseis fé como um grão de mostarda,
diríeis a esta amoreira:
'Arranca-te daí e vai plantar-te no mar',
e ela obedecer-vos-ia.
Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a guardar gado,
lhe dirá quando ele volta do campo:
'Vem depressa sentar-te à mesa'?
Não lhe dirá antes:
'Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires,
até que eu tenha comido e bebido.
Depois comerás e beberás tu.
Terá de agradecer ao servo por lhe ter feito o que mandou?
Assim também vós,
quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei:
'Somos inúteis servos:
fizemos o que devíamos fazer'».

03 outubro 2025

Da saúde mental e do aquecimento global

Contaram-me uma anedota e que tento aqui reproduzir, não fazendo ideia da fiabilidade da minha reprodução. Perguntaram um dia a um nórdico (talvez islandês, não sei): vocês têm Verão no vosso país? A resposta veio pronta: sim; no ano passado calhou a uma 4ªfeira. Tenho o desejo secreto - e dorido - que me façam semelhante pergunta, mas relativamente ao Outono, a estação de que mais gosto. A minha resposta também sairia pronta: sim, este ano calhou a um fim de semana. E aproveitaria para agradecer à tempestade Gabrielle (ressalvando os estragos pessoais provocados).

Anteontem, num almoço com amizades antigas, lamentei-me da persistência do calor e do sol, no que fui, surpreendentemente, secundado por uma conviva. E digo surpreendentemente porque estou habituado a que as pessoas mentalmente saudáveis adorem o sol, o calor, os dias compridos, a alegria da luz e das temperaturas elevadas. Eu, confesso, estou cansado de Verão, deste horário, do Sol invasor, do calor. A ideia de um fato de banho, de areia, de protector solar, de banhos de mar já me provoca uma ligeira ansiedade. Preciso, agora, de dias curtos, de temperaturas máximas abaixo de 25ºC, de roupa de inverno (ou pelo menos de Outono), de guardar os óculos escuros (ou, se os usar, é porque está um dia limpo e claro, mas com 0ºC...) 

Dizem que o clima nórdico convida às depressões mas, estou convencido, faltam estudos científicos que investiguem o impacto do sol e calor persistentes nas gerações - como a minha - habituadas às 4 estações do ano que surgiam com uma pontualidade quase suíça. Agora chove no Verão, vai-se para a praia em Fevereiro, termos de inventar um fato de meia estação para o Pai Natal e repensar a ideia que temos de Dezembro, onde a lareira suscitava convívios caseiros por alturas do nascimento do Menino Jesus. Dizem que há, actualmente, um consumo excessivo de anti-depressivos ou de ansiolíiticos. Talvez se venha a perceber que o aquecimento global afecta também as pessoas, proporcionando-lhes neuras que não tinham quando, em chegando ao Outono se punha uma camisola, em chegando à Primavera se tomavam anti-histamínicos, em chegando ao Verão se arejavam os fatos de banho e, em chegando ao Inverno, se discutia o preço da lenha.

Abaixo o aquecimento global; viva o Outono, viva a saúde mental. Desculpem qualquer coisinha.

JdB 

01 outubro 2025

Do serendipismo

Museu do Dinheiro (Lisboa), Setembro de 2025

Um dicionário online define o serendipismo da seguinte forma: 

1. dom de fazer boas descobertas por acaso; aptidão de atrair a si acontecimentos favoráveis de maneira fortuita

2. acaso feliz; acontecimento favorável que se produz de maneira fortuita; descoberta acidental

A expressão, no original em inglês serendipity, foi cunhada em 1754 pelo romancista inglês Horace Walpole para uma aptidão dos heróis de um conto de fadas chamado Os Três Príncipes de Serendip, usando um nome antigo para o Sri Lanka. A expressão faz parte do meu vocabulário afectivo há quase 25 anos. 

Há uns meses fui a casa de uma prima tratar de assuntos corriqueiros. Como é casada com um cavalheiro que sabe sânscrito, perguntei-lhe se confirmava a ideia de que há uma expressão nessa língua para designar pais que perdem filhos. Disse-me que sim: viloma ou vilomah, que significa algo contra a ordem natural das coisas, algo contra o veio da madeira. Meses mais tarde essa minha prima contou-me que a conversa tinha desbloqueado uma peça escultórica em que tinha estado a trabalhar e que se encontrava parada há mais de um ano por falta de qualquer coisa.

Esta semana conversei com alguém sobre serendipismo, também a propósito do sânscrito e da escultura, que me parecia um acaso feliz. No dia seguinte leio o seguinte post no Linkedin:

"Quando o actor Anthony Hopkins trabalhava para a sua actuação no filme "A Garota de Petrovka", quis ler o livro no qual o roteiro foi baseado. Hopkins foi a Londres e visitou várias livrarias, mas não conseguiu encontrá-lo. Ao voltar para casa, encontrou um livro esquecido por alguém num banco do metro. Era "A Garota de Petrovka"! Essa história já é surpreendente por si só, mas as coincidências incríveis não param por aqui.

Mais tarde, durante as filmagens do filme em Viena, George Feifer, o autor do livro, visitou Hopkins. Feifer reclamou que ele mesmo não tinha nenhum exemplar do seu próprio livro. Ele tinha um, mas infelizmente o escritor emprestou esse exemplar a um amigo distraído, que perdeu o livro em algum lugar de Londres. Hopkins mostrou a Feifer o livro que encontrou e perguntou:

"Esse por acaso não é o seu?" E era realmente o livro de Feifer, com todas as anotações do autor nas margens." 

Se tudo isto - a escultura, a conversa, o post - não são manifestações de serendipismo (ou coincidências significativas, como lhes chamava Jung), então não sei o que é o serendipismo...

JdB

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