31 julho 2025

Duas Últimas *

A bem da minha consciência, não posso deixar de escrever umas linhas sobre o alarido que uma entrevista recente do cirurgião A. Gentil Martins ao Expresso, em que abordou temas como a homossexualidade e os filhos sem mãe assumida de CR, provocou por aí. E sabemos como o "por aí" pode massacrar e virar a cabeça aos mais incautos....

Não pretendo discorrer sobre as razões, científicas ou outras, que suportam as ideias de GM, aliás já dissecadas ad nauseam: leia-se, defendidas por alguns corajosos, atacadas (elas e o autor) pela grande maioria. Direi apenas que lhe dou absoluta razão na questão de CR. Na outra, que engloba situações as mais diversas, parece-me que não se deve generalizar de forma mais ou menos simplista. Mas isto sou eu a falar, que não sou nem médico nem sequer um curioso na matéria.

O meu ponto tem sobretudo a ver com o espirito marcadamente anti-democrático que vigora na sociedade portuguesa e que sobretudo a esquerda não se cansa de fomentar. Ai de quem se atreva a ir contra as opiniões dominantes dos "donos disto tudo" (em termos ideológicos e não só...), verdadeiros paladinos da verdade e da justiça. E da má criação e falta de carácter. Como se viu no caso presente, para além dos enxovalhos pessoais por que GM teve de passar, uma queixa na Ordem respectiva é garantida. E vivam a democracia, a igualdade, o debate de ideias, o respeito pelo outro.

Quanto a mim, agarro-me quase em desespero de causa a 3 ou 4 personalidades que continuam por aí enquanto os deixarem e que ainda ousam pensar pela própria cabeça: Pulido Valente, Barreto, Ramos, JM Fernandes, Raposo, M Carreira até há bem pouco, mais dois ou três.

Não desisto, procuro não ceder ao unanimismo de opinião que nos impõem, penso nas pessoas tantas vezes exemplares que a vida me deu. Mas na feira mediática com que nos brindam, nesta tirania diária constante, sinto que o estatuto de "minoritário" que sempre possuí se vai reforçando. Sem drama, que não é caso para isso. Pelo contrário, a favor da minha sanidade mental.

Boas férias, quando for a circunstância.

fq


* publicado originalmente a 1 de Agosto de 2017

30 julho 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 LIMITES DO HUMOR NUMA SOCIEDADE BARALHADA 

Significativamente, os alicerces dos regimes autoritários, mesmo sem chegar aos extremos dos totalitarismos, lidam mal com o humor, com a crítica lúcida e o efeito de distanciamento que lhe estão subjacentes. Cedo ou tarde, qualquer tiranete acaba por se desembaraçar dos autores das tiradas cómicas, começando pelas de ressonância política. Nesse sentido, o humor serve de termómetro ao estado de saúde de uma democracia. No seu drama «O Rei Lear», Shakespeare começou por retratar um soberano invulgarmente tolerante com o bobo da corte, bem depois de ter calado as demais vozes da corte. Mas o avançar da cegueira no poder acabou por votar também ao silêncio a voz incómoda do divertido jogral.  

Na sátira do Rei Tigre, um Marajá foi avisado, em profecias, que a sua morte chegaria com o centésimo tigre que caçasse. Para retardar o seu fim, o Marajá avisou os tigres que a caça aos felinos adquirida uma conotação de protecção régia. A lenda indiana retrata o egocentrismo característico dos governantes e a escalada de alheamento da realidade, tudo sendo distorcido e adaptado aos interesses de quem manda. À medida que a percepção da vida se obnubila, cresce a megalomania e concomitante usurpação do poder, prestando-se a toda a sorte de alucinações, em nome da legítima defesa. Mal se sentem em risco (demasiado frequente nas ditaduras), o recurso à força apresenta-se-lhes como legítimo, pelo que dificilmente reconhecem excessos, resvalando para doses de violência desproporcionadas. Neste círculo vicioso, é comum embarcar-se na realidade paralela em que estes comportamentos desviantes colocam o sujeito. E, por azar, são muitos os governantes (mais ainda, em regimes despóticos) que acabam por se mover por razões pessoais, confundindo a sobrevivência e os interesses pessoais com os da sociedade que lhes caberia servir. 

Chesterton realçou a importância vital do humor na vida, até pelo distanciamento necessário para discernir a realidade e uma auto-avaliação saudável. Na sua novela tragicómica «O Napoleão de Nottinghill» comentou que na origem da loucura está a perda do sentido de humor, sempre que alguém descola da vida e perde o pé: «Madmen are always serious; they go mad from lack of humour».

No âmago da questão joga-se a ligação à verdade que, uma vez ferida, favorece o avanço insidioso da tirania. O humor é simplesmente das formas mais incisivas e digeríveis de denúncia e de alerta, com notável capacidade de disseminação. Avisava George Orwell: «In a time of deceit – telling the truth is a revolucionary act. (…) If liberty means anything at all, it means the right to tell people what they do not want to hear.» Outro político, Bill Clinton, observava com acerto: «The road to tyranny, we must never forget, begins with the destruction of the truth».  

Hoje, no Ocidente é indisfarçável e preocupante o boom de justicialismo que se tem instalado, sob a bandeira da justiça para todos. Habilmente, colou-se-lhe o negócio muito próspero dos escritórios de advogados, para alimentar uma indústria de casos e casinhos em tribunal. Acabando por legitimar o lápis azul, disfarçado de lei justa, tornou-se num modo sub-reptício de impor o discurso e o comportamento autorizados ––  i.e., o famoso ‘politicamente correcto’. Em paralelo, cresce o vício de exigir indemnizações para quem melhor se vitimizar, desde que tenha músculo financeiro para a onerosa consultoria jurídica que este jogo exige. 

Começámos por assistir ao crescer desta onda nas produções importadas de Hollywood. Entretanto, o surto de processos mediáticos envolvendo gente conhecida, fez chegar a onda ao lado de cá do Atlântico e espraiar-se neste jardim à beira-mar plantado. Bastou beliscar interesses de réus poderosos. De seguida, contagiou-se como fogo na pradaria por cidadãos menos famosos, mas suficientemente abonados. É ilustrativo o insólito pedido de indemnização à humorista Joana Marques pelo duo Anjos. Pouco importa o montante e a discutível qualidade da interpretação do hino nacional, entoado com especial liberalidade num encontro de motards. Diz tudo, o post divertido da comediante portuguesa, com excertos daquela interpretação, ter alcançado mais sucesso do que alguma das actuações do grupo. Segundo observava Rui Ramos, explicando de forma meridiana a falácia deste processo judicial: alguém imagina que a Joana Marques pudesse ter sabotado a carreira de Amália? Indo mais longe e exemplificando com lendas do rock: quem ficaria penalizado, se alguém gozasse com as actuações dos U2 ou de Bruce Springsteen ou de Tina Turner ou de Bob Dylan, etc. –– os músicos ou o/a comediante?... Sabemos quão ácido é o estilo humorístico de J.Marques, criticável e nem sempre apreciado por todos. Mas, ironicamente, a queixa bizarra dos Anjos em nada ajuda a balizá-la, tendo-a antes reforçado com uma onda solidária anti censuras, face à desproporcionalidade e à falta de cabimento do processo judicial que a visou.

Infelizmente, este caso português não é único e está longe de ser o pior. Quer nos EUA, quer no Brasil, comediantes de renome estão a ser silenciados. Na Terra de Veracruz, o processo está a ganhar proporções graves, com ameaça de prisão para um cómico que afronta o politicamente correcto, de modo discutível, por vezes roçando a rudeza e a falta de humanidade. Mas isso não justifica a pena de prisão.

Sabemos como o wokismo tem instituído a censura, já em níveis insanos nalguns temas, em especial nas ‘questões fracturantes’. Naturalmente, nunca ajuda o zelo e as vistas curtas da generalidade dos manuseadores do lápis azul de todos os tempos. Um bom retrato do grau de perseguição descabelado a que se chegou é traçado pelo sketch escrito por Bruno Nogueira (aqui, especialmente certeiro). Um grupo de bons comediantes portugueses dá corpo ao texto, destacando-se o excelente desempenho da actriz que protagoniza a Comissão definidora dos limites do humor (!), numa mistura explosiva de paternalismo, autoritarismo e doses cavalares de burocracia kafkiana, com boas pitadas de um subjectivismo cavernícola. Mau demais para o humor, mas bom demais para revelar o desnorteio de parte da sociedade, por azar, dos que pontificam e mais impactam no dia-a-dia de todos:    

 

Não é bom sinal um país vergar-se a estes coletes de força, impostos por responsáveis acolitados por exércitos de burocratas semi-anónimos, tiranetes escondidos atrás de leis inaceitáveis, depois aplicadas à letra com descarado desrespeito pela liberdade individual. O poder sempre temeu a liberdade, porque sempre desejou controlar os cidadãos, um a um. Porém, consentir nestes assomos de despotismo meio acéfalo, sustentado em preconceitos, apenas agrava a espiral de decadência.  Ainda bem que o humor continua a cumprir a função de denúncia e de alerta, aqui e ali atrevendo-se a mostrar que o “rei vai nu”. 

Estamos todos a precisar de férias, para desintoxicar de estultices perigosas, que, a pretexto de defenderem causas maiores, costumam surfar as ideologias da moda para reduzir ao mínimo qualquer expressão livre, diferente do main stream. Boas férias, com muitas e boas gargalhadas! 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

29 julho 2025

Poemas dos dias que correm

 

Algarve, Julho de 2025

A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos 


Sophia de Mello Breyner Andresen
Dual (1972)

27 julho 2025

XVII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 11,1-13

Naquele tempo,
Estava Jesus em oração em certo lugar.
Ao terminar, disse-Lhe um dos discípulos:
«Senhor, ensina-nos a orar,
como João Baptista ensinou também os seus discípulos».
Disse-lhes Jesus:
«Quando orardes, dizei:
‘Pai,
santificado seja o vosso nome;
venha o vosso reino;
dai-nos em cada dia o pão da nossa subsistência;
perdoai-nos os nossos pecados,
porque também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende;
e não nos deixeis cair em tentação’».
Disse-lhes ainda:
«Se algum de vós tiver um amigo,
poderá ter de ir a sua casa à meia-noite, para lhe dizer:
‘Amigo, empresta-me três pães,
porque chegou de viagem um dos meus amigos
e não tenho nada para lhe dar’.
Ele poderá responder lá de dentro:
‘Não me incomodes;
a porta está fechada,
eu e os meus filhos estamos deitados
e não posso levantar-me para te dar os pães’.
Eu vos digo:
Se ele não se levantar por ser amigo,
ao menos, por causa da sua insistência,
levantar-se-á para lhe dar tudo aquilo de que precisa.
Também vos digo:
Pedi e dar-se-vos-á;
procurai e encontrareis;
batei à porta e abrir-se-vos-á.
Porque quem pede recebe;
quem procura encontra
e a quem bate à porta, abrir-se-á.
Se um de vós for pai e um filho lhe pedir peixe,
em vez de peixe dar-lhe-á uma serpente?
E se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á um escorpião?
Se vós, que sois maus,
sabeis dar coisas boas aos vossos filhos,
quanto mais o Pai do Céu
dará o Espírito Santo àqueles que Lho pedem!».

25 julho 2025

um verão que ainda arde *

 fogo sobre fogo, escreves,
numa manobra de aproximação
votada ao mais do que óbvio fracasso. 

não haverá nunca palavras exactas
para verter em linguagem o fósforo
de dois corpos, incendiados incendiários, 

numa luta corpo a corpo,
o mercúrio estoirando o termómetro,
tudo ou nada - mas nunca morno. 

ou seja: novamente vivos estamos,
levantando em glorioso vôo picado
do que ainda há pouco jazia morto.

gi.

* publicado originalmente a 21 de Outubro de 2011

23 julho 2025

Do quotidiano *

Formava-se a primeira comunidade de seres humanos na Terra. Só algum tempo depois, já esta comunidade dominava o vocabulário, a construção das frases e a técnica do neologismo, é que surgiu a palavra quotidiano. Até então as actividades eram ocasionais, avulsas, impulsivas: a caça, o cumprimento das necessidades fisiológicas ou a satisfação das pulsões sexuais, a atenção ao céu como lugar geométrico de todos os mistérios. Só algum tempo depois, repete-se, é que o avulso se tornou em quotidiano, e se definiram momentos certos e regulares para as coisas.  

Há actividades quotidianas que nos acompanham desde o homem das cavernas, ou desde os homens que começaram por dar sons identificadores às coisas, sons esses que redundaram em palavras que, alinhadas, formaram um todo inteligível que permitiu a comunicação, a troca comercial, o primórdio do afecto. Com o tempo, e com aquilo que pensamos ser a evolução da espécie, o quotidiano foi-se alterando: já não caçamos, mas mantemos o desejo sexual; temos mais hábitos de higiene, mas o céu pode ser apenas, e só, a folha de papel onde plasmamos mistérios: projecções matemáticas, tendências probabilísticas, caracterização das núvens.

***

A tecnologia relativamente barata e ao alcance de um dedo gerou milhões infindos de fotografias nos últimos 20 ou 30 anos. Fotografaram-se as crianças na praia, no banho, na primeira festa, no primeiro jogo de futebol; fotografou-se a namorada, o primo, o almoço de sardinhas assadas numa mesa gordurosa, o desafio do Sporting, a festa de Carnaval, ou ainda Chicago, esse espectáculo de amor e traição que alguns colégios fantasiaram pelo Natal; fotografou-se uma fralda cheia de cocó que se mandou à mãe de férias, a boca suja da primeira sopa de legumes, a viagem de comboio pela Europa com aromas de suor, má comida e desejos de jovem adulto; fotografou-se o grupo de amigos bêbedos, as amigas com ar provocante, as roupas práticas e ligeiras que mataram uma certa elegância feminina. Por último, cada um fotografou-se a si próprio: num grupo a rir, mascarado de fantasia, com adornos de photoshop, em frente de uma cascata tropical, de uma igreja rococó ou de um prato pejado de calorias e triglicéridos. Tudo se fotografou, ninguém deixou de ser fotografado. Milhões e milhões de fotografias sem direito ao esquecimento a circular no éter, a revelar um quotidiano moderno, semi-líquido, volátil, prático, existente.     

Por motivos que não vêm ao caso, andei de roda de fotografias relativamente antigas, com 50 ou 60 anos, talvez - muitas antes ainda de eu existir. São de uma época em que a tecnologia se revestia de uma máquina cara, usada em momentos específicos, porque o resto não interessava ser fotografado - havia o custo da fotografia, mas havia, também, uma certa sensação resguardada das coisas. 

Imaginemos que o tempo passado só poderia ser decifrado por meio de escritos e de imagens da época e que, munido desses artefactos, decifrávamos um estilo de vida. Olho para aquelas fotografias que fui retirando avulsas de uma caixa e o que encontro? Elegância, cuidado, pouco improviso; mas também encontro uma certa gravitas, uma adultez precoce face aos nossos tempos. Não são fotografias do quotidiano, mas fotografias de festas, de jantares, de comemorações, de encontros. São fotografias que permitem recordar uma certa estética, mais do que uma certa realidade.  

Entre o quotidiano do homem das cavernas e o quotidiano do século XX a diferença está, essencialmente, no pudor. Mantêm-se os desejos, as pulsões, as necessidades de sustento, o céu como interrogação, o projecto de amor. Mudou a forma e, nalguns casos, o espaço desse mesmo quotidiano. O que mudou para o século XXI? A tecnologia que permite revelar tudo, a vontade humana que pretende mostrar tudo. As fotografias que eu vi não eliminavam a existência do quotidiano - o bebé de boca suja, o cocó na fralda, a sardinhada gordurosa, o desejo carnal, a informalidade de uma noite mais excessiva. As fotografias que eu vi revelavam, acima de tudo, a importância das coisas, não a existência das coisas.  

JdB  

* publicado originalmente a 4 de Dezembro de 2017

22 julho 2025

Poemas dos dias que correm

 À espera dos bárbaros


- Que esperamos na ágora congregados?   

         Os bárbaros hão-de chegar hoje.

- Porquê tanta inactividade no Senado?
- Porque estão lá os Senadores e não legislam?

        Porque os bárbaros chegarão hoje.
       Que leis irão fazer já os Senadores?
       Os bárbaros quando vierem legislarão.

- Porque se levantou tão cedo o nosso imperador,
  e está sentado à maior porta da cidade
  no seu trono, solene, de coroa?

         Porque os bárbaros chegarão hoje.
        E o imperador espera para receber
        o seu chefe. Até preparou
        para lhe dar um pergaminho. Aí
        escreveu-lhe muitos títulos e nomes.

- Porque os nossos dois cônsules e os pretores
  sairam hoje com as suas togas vermelhas, as bordadas;
  porque levaram pulseiras com tantas ametistas,
  e anéis com esmeraldas esplêndidas, brilhantes;
  porque terão pegado hoje em báculos preciosos
  com pratas e adornos de ouro extraordinariamente cinzelados?

         Porque os bárbaros chegarão hoje;
         e tais coisas deslumbram os bárbaros.

- E porque não vêm os valiosos oradores como sempre
  para fazerem os seus discursos, dizerem das suas coisas?

          Porque os bárbaros chegarão hoje;
         e eles aborrecem-se com eloquências e orações políticas.

- Porque terá começado de repente este desassossego
  e confusão. (Como se tornaram sérios os rostos.)
- Porque se esvaziam rapidamente as ruas e as praças,
  e todos regressam às suas casas muito pensativos?

    Porque anoiteceu e os bárbaros não vieram.
    E chegaram alguns das fronteiras,
    e disseram que já não há bárbaros.

E agora que vai ser de nós sem bárbaros,
Esta gente era alguma solução.

Konstandinos Kavafis (tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis)

20 julho 2025

XVI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 10,38-42

Naquele tempo,
Jesus entrou em certa povoação
e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa.
Ela tinha uma irmã chamada Maria,
que, sentada aos pés de Jesus,
ouvia a sua palavra.
Entretanto, Marta atarefava-se com muito serviço.
Interveio então e disse:
«Senhor, não Te importas
que minha irmã me deixe sozinha a servir?
Diz-lhe que venha ajudar-me».
O Senhor respondeu-lhe:
«Marta, Marta,
andas inquieta e preocupada com muitas coisas,
quando uma só é necessária.
Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada».

18 julho 2025

Poemas dos dias que correm

 Memória

Nasci cautelosa, sob o signo de Touro.
Cresci numa ilha, próspera,
na segunda metade do século XX;
a sombra do Holocausto
mal nos tocou.
Tinha uma filosofia do amor, uma filosofia
da religião, ambas baseadas na
experiência inicial no seio da família.
E se, ao escrever, usava muito poucas palavras
era porque o tempo sempre me pareceu curto.
como se me pudesse ser retirado
a qualquer momento.
E a minha história, seja, como for, não era única
embora, como toda a gente, tivesse uma história,
um ponto de vista.
Precisava de muito palavras:
alimentar, manter, atacar.

Louise Glück * *Prémio Nobel de Literatura em 2020
(1943 - 2023)
In "As Sete Idades"
(Tradução de Inês Dias)

16 julho 2025

Vai um gin do Peter’s ? 

 VAN GOGH ETERNIZOU MOMENTOS FUGAZES 

Sabemos que até à invenção da fotografia cabia à pintura o registo de episódios relevantes para a posteridade, fosse por homenagem, fosse para memória histórica, fosse por motivos pedagógicos, entre outros. Mas claro que nunca se esgotou apenas nestas finalidades, impondo-se também por uma imagética comunicada com mestria artística, eloquência e beleza (até ao séc. XIX). Porém, a partir do século XIX, quer por força dos avanços tecnológicos (como o cinema e a fotografia), quer pelas alterações de paradigma da expressão artística, a arte revolucionou-se, emancipando-se da evolução mais contida e gradual da tradição clássica. 

Van Gogh (1853-1890) alinhou pelo vanguardismo dos impressionistas, e pela novidade da arte japonesa, criando composições inovadoras, para serem observadas à distância, como um todo riquíssimo, sabiamente formado por mesclas de pinceladas que, ao perto, se assemelham a traços ininteligíveis. Embora sem pretender reproduzir a realidade de forma directa, a arte do holandês partiu da observação intensa, quase laboratorial (para alguns, obsessiva) do mundo natural, que perscrutava incansavelmente, preferindo pintar ao ar livre. Estava fascinado com a natureza, pelo que se ambientou rapidamente à sua nova vida no Sul de França, depois de se mudar de Paris para Arles.

Em Junho de 1888, na nova morada, viveu uma fase muito prolífica da sua produção artística, pintando sofregamente 10 óleos e 5 desenhos, numa semana. Essa série, intitulada «Colheita», capta a fertilidade do campo gaulês, mas também a precariedade daquela paisagem imponente. Nesses dias, sob um calor escaldante, o holandês inundou as telas dos dourados e dos azuis que, poeticamente, descobriu nas pujantes searas do Sul de França. O sol abrasador daquela semana apenas se adivinha pela prevalência dos amarelos torrados, que Vincent enriqueceu com tonalidades de ouro e fez sobressair sob a frescura e a magnificência de uma linha de horizonte em gradações de azul. 

Curiosamente, a pacífica tela «A Colheita» resulta, pela sua génese, num expoente da fragilidade do dia-a-dia, da voragem do tempo, do vertiginoso ciclo nascimento-morte, a que está sujeita toda a natureza, seres humanos incluídos. De facto, a paz e a harmonia na paisagem pintada esvaíram-se em horas, depois de os campos serem devastados por uma tempestade violenta. Aquele esplendor da fecundidade dos cereais do vale de La Crau, prontos a ser colhidos, não passou de um momento, apenas eternizado na composição de Vincent. Faz pensar como uma realidade bela e opulenta pode ser tão efémera. 

De algum modo, é o inverso da biografia do holandês. Marcada pela instabilidade e dor, pelos reveses e um dia-a-dia fugidio, embora intenso, apagando-se aos 37 anos, contrasta com a imponência da sua arte, a profundidade do seu olhar de pintor, a positividade da sua leitura sobre a realidade. As suas telas estão impregnadas de uma luz inspiradora, fervilhante e incrivelmente criativa.         

«A Colheita», de Vincent Van Gogh, de Junho de 1888; óleo sobre tela de linho.
Do acervo do Museu Van Gogh, em Amsterdam

Não é novidade que a vida é fugaz e o tempo valiosíssimo. A arte de Van Gogh tem “só” o mérito de o lembrar da melhor maneira. 

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


15 julho 2025

Marinela Muñoz Balducci *

Atenhamo-nos numa parcela da estante de Marinela Muñoz Balducci, uma porteña de 67 anos, pernas finas e curtas, braços com tendência para o grosso, peito proeminente, olhos verdes e uma cara considerada de uma beleza rara e surpreendente. Digamos, ainda antes de nos fixarmos nos livros que são sua compra e sua herança, que à D. Marinela faz sentido vê-la de baixo a alto, porque se dá início à viagem com ligeiro desinteresse e se termina a mesma viagem com espanto. 

Livros, então:

- Gymnopedies: há um Richard Strauss por trás de um Eric Satie?
- Música rock - um estudo comparado entre o movimento e o crime organizado;
- A ópera bufa: dos primórdios ao rap, sempre a descer;
- 100 librettos de óperas que tem de ler antes de morrer;
- Wagner - a intemporalidade de um homem para todas as ocasiões;
- A prevalência dos meios tons nas óperas alemãs, russa e italiana;
- Música clássica como auto-ajuda: uma visão holística e terapêutica.

Se uma estante fala mais de um indivíduo do que o seu cônjuge, de D. Marinela está tudo dito: é a ópera, a música clássica, o ódio ao rock e à modernidade e às atonias dos cantautores, o fascínio evidente - e algo maçador, porque imposto a quem a visita - pelo belcanto, pelos românticos, pelo minimalismo de Satie ou pela gravidade de Mussorgsky. Entre os livros há pequenos nadas, bibelots que confirmam, mas não se impõem: um postal de Bayreuth e de Salzburgo, uma dedicatória da Schwarzkopf, um busto de Beethoven em marfinite, uma fotografia com Jacqueline du Pré ou da sua récita no conservatório antes de uma variz, persistente e demolidora, a ter atirado para uma cama com vista de esguelha para o cemitério da Recolecta e, com isso, ter visto a cremação da sua própria carreira. 

D. Marinela tem rotinas: de manhã são as óperas italianas, pela alegria; em dias de chuva e ventania conforta-se com os russos, cuja gravidade da voz lhe dá segurança e conforto perante a natureza em exibição. De tarde, nas tardes muito alegres, vai a um Lehar, não sem antes informar a empregada, uma índia da Bolívia que sorri numa vacuidade de dentes: é opereta, percebe a diferença? Nos dias certos de luto e saudade, corre os Requiem - ou música semelhante - por ordem alfabética: Berlioz, Brahms, onde se demora chorosa, Mahler, Mozart, durante o qual debica um alfajorre de maicena com os lábios espetados e os olhos a piscarem muito num ritmo de gula pecaminosa. Raramente, porque a arrogância é uma constante citadina não assumida, embora exibida, chama a boliviana e explica-lhe com acinte: está a escutar este Confuntatis? Notou a declinação latina? Sabe quem é o paráclito? 

Às primeiras terças feiras do mês, qualquer que seja o clima, Marinela Muñoz Balducci sai de casa pela escuridão da noite, demorando-se na porta de entrada, perscrutando o horizonte silencioso de uma cidade que vai adormecendo. Apanha um táxi e o destino sai-lhe com um misto de tremor e convicção, porque em ambos os sentimentos não há incompatibilidade. Volta duas horas depois, chorosa e nostálgica, coxeando levemente porque a variz não lhe dá tréguas, muito pelo contrário. Olha para a estante: acerta o postal de Salzburgo com a esquadria da biografia de Mozart, ajeita o busto de Beethoven para que não tape a dedicatória da Schwartzkopf. Depois deita-se, rememorando tudo: os sons, os movimentos, o palco com a fotografia reconfortante ao fundo, a decoração do recinto e a memória do contacto com quem ainda sabe ensinar. Por fim, já de camisa de noite cor de rosa, muito abotoada e até aos pés, enrosca-se na cama abraçada à fotografia de Gardel e chora copiosamente, não porque a variz a incomode sobremaneira e a aula de tango e de milonga tenha sido exigente, mas porque o mestre já partiu, levando para o túmulo a sensualidade que a Lacrimosa não lhe dá. Reza uma avé-Maria sentida, lembra os seus mortos, as crianças que sofrem e os velhos abandonados e, antes ainda de adormecer, tem lucidez para cantar el dia que me quieras, sabendo que uma letra de música pode ser um prenúncio de desejo.    

JdB   

* publicado originalmente a 22 de Maio de 2017 

13 julho 2025

XV Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 10,25-37

Naquele tempo,
levantou-se um doutor da lei
e perguntou a Jesus para O experimentar:
«Mestre,
que hei de fazer para receber como herança a vida eterna?»
Jesus disse-lhe:
«Que está escrito na lei? Como lês tu?»
Ele respondeu:
«Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma,
com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento;
e ao próximo como a ti mesmo».
Disse-lhe Jesus:
«Respondeste bem. Faz isso e viverás».
Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus:
«E quem é o meu próximo?»
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Um homem descia de Jerusalém para Jericó
e caiu nas mãos dos salteadores.
Roubaram-lhe tudo o que levava, espancaram-no
e foram-se embora, deixando-o meio morto.
Por coincidência, descia pelo mesmo caminho um sacerdote;
viu-o e passou adiante.
Do mesmo modo, um levita que vinha por aquele lugar,
viu-o e passou adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem,
passou junto dele e, ao vê-lo, encheu-se de compaixão.
Aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho,
colocou-o sobre a sua própria montada,
levou-o para uma estalagem e cuidou dele.
No dia seguinte, tirou duas moedas,
deu-as ao estalajadeiro e disse:
‘Trata bem dele; e o que gastares a mais
eu to pagarei quando voltar’.
Qual destes três te parece ter sido o próximo
daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?»
O doutor da lei respondeu:
«O que teve compaixão dele».
Disse-lhe Jesus:
«Então vai e faz o mesmo».

10 julho 2025

Dos abismos

Paredão do Estoril, um dia destes pelas 7.30h da manhã

A vida é uma casa com duas portas. Há uns que entram e que têm medo de abrir a segunda porta. Ficam girando, dançando com o tempo, demorando-se na casa. Outros se decidem abrir, por vontade de sua mão, a porta traseira. Foi o que eu fiz, naquele momento. A minha mão volteou o fecho do armário, a minha vida rodeou o abismo. 

Mia Couto

***

Li esta frase, que me foi enviada por uma mão quase desconhecida, há muitos anos. Regresso ao pensamento volta e meia, não apenas para lembrar tempos que já foram, mas para lembrar tempos que são, ou serão.  

O que é o abismo que a nossa vida deve rodear? Anteontem conversei com duas pessoas diferentes sobre gratidão, sobre a importância de agradecer, não só a cortesia do obrigado a quem nos serve um café ou segura uma porta, mas a a cortesia da amizade em tempos difíceis, a cortesia da presença firme e segura, mesmo que nem sempre manifestada da melhor forma, a cortesia de um conselho que faz repensar o caminho. Ontem ouvia um podcast de um jovem chileno de quem sou amigo e que resistiu a 3 ou 4 cancros diferentes quando tinha meia dúzia de anos. Consciente de que a sua sobrevivência deve muito à sorte, pois pôde ser tratado nos EUA, dizia em resposta à pergunta quais são as tuas prioridades? que era importante devolver la mano

Os abismos da nossa vida nem sempre são mortes, perdas afectivas, desempregos, doenças incuráveis. Esses são abismos, mas há mais: a ausência da gratidão, o excesso de palavras críticas, o orgulho constante, o negativismo permanente, a incapacidade do perdão, o horror à escuta. Tenho, como muitos dos que me leem, a minha dose de abismos mais ou menos dramáticos - perdas, rupturas, pedidos de desculpa que faltaram a quem já não pode ouvi-los. Os outros, porém, continuam por cá, e é preciso enfrentá-los e dizer-lhes que não todos os dias, em função desta certeza, também, de que a vida é precária. E por vezes enevoada. 

JdB

09 julho 2025

Duas Últimas (ou da gestão das amizades) *

Como formamos amizades? Melhor ainda, como as mantemos? Poderíamos falar na antiguidade, no manancial de memórias comuns que revestem os amigos de um capa que os protege da erosão do tempo. Poderíamos falar na semelhança de interesses, sangue, percursos, que juntam seres humanos e lhes conferem um relacionamento mais ou menos duradouro. Poderíamos falar ainda da intensidade com que as pessoas convivem umas com as outras, o grau de intimidade, de proximidade, de partilha.

Não haverá, estou certo, argumentos que se excluam. Talvez a resposta à pergunta inicial seja apenas uma: tudo é possível, tudo é aplicável - a antiguidade, a semelhança, a proximidade, outras. Talvez uma resposta à pergunta inicial não esteja tanto na generalização do universo, mas na redução ao indivíduo: como formo eu as amizades, como as mantenho eu? Mesmo com este afunilamento do espectro não haverá, seguramente, respostas únicas. Se calhar a forma como criamos e mantemos os nossos amigos é mais uma vez díspar - a antiguidade, a semelhança, a proximidade, outras

Em momentos da vida de um indivíduo - e falo, sobretudo, da minha faixa etária - há escolhas que se fazem, porque somos amigos da maria e do manel e um deles desapareceu, porque somos amigos da maria e do manel e os dois estão desavindos, porque somos amigos da maria e do manel mas  aproximamo-nos naturalmente de um ou de outro. O que nos faz pender para a maria ou para o manel? O que nos faz continuar com um quando o outro desapareceu? Haverá respostas certas? Não sei, mas estou em crer que a proximidade é um factor importante. Não falo apenas da proximidade inerente a amizades antigas e militadas mas, sobretudo, da proximidade que advém da partilha da intimidade, da quantidade de vezes que abrimos a alma a quem, à nossa frente, aprecia um café e uma bola de berlim enquanto ouve as nossas angústias, as nossas incoerências, as nossas inseguranças.

Em momentos de viragem, dificilmente as amizades resistirão à antiguidade e à semelhança se a relação não tiver sido alimentada com outras coisas. Um pouco como se houvesse uma estética e uma rotina no relacionamento que não sobrevivem à eventualidade das escolhas, dos tempos difíceis, do desejo de interlocução e de intimidade, do lugar único à mesa que se prefere ocupar com um coração que se abriu connosco, e não com a finura de umas mãos ou com o porreirismo de uma conversa. 

Nicolas de Chamfort, francês e poeta, entre outras coisas, terá afirmado: M. dizia: "renunciei à amizade de dois homens, um porque nunca me falou de si, o outro porque nunca me falou de mim."   

Deixo-vos com Pavarotti and friends, porque me pareceu a propósito...

JdB

   

* publicado originalmente a 30 de Julho de 2013

08 julho 2025

Poemas dos dias que correm

Paredão do Estoril, um dias destes pelas 7.30 da manhã

soneto do amor e da morte 

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

***

Quanto Morre um Homem

Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

06 julho 2025

Carta a um anjo

Nasceste hoje, mas há 31 anos.

***

A semana que agora termina abalou Portugal e o mundo do futebol: Diogo Jota e o irmão, André Silva, ambos jogadores de futebol, morreram num brutal desastre de automóvel. 

Um acontecimento deste tipo suscita um olhar imediato de todos: o drama familiar, as qualidades profissionais das vítimas, a falta que fará à selecção ou ao seu clube, a consternação de colegas, políticos, dirigentes, artistas de várias proveniências. 

Um segundo olhar é sobre a precariedade da vida, um tema que me persegue desde há muito. No seu livro O ano do pensamento mágico (um livro sobre a morte súbita do seu marido) diz Joan Didion: [s]entamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba. Num certo sentido, esta frase poderia ser dita por todos os protagonistas da semana que passou: a massa humana que se condoeu com a morte dos dois irmãos poderia dizê-la; as famílias que perderam maridos, pais, filhos, primos, poderiam dizê-la. Mas também poderiam dizê-la o Diogo Jota e o André Silva que se sentaram para uma viagem de carro e a vida, tal como eles a conheciam, acabou. Ironicamente, vem-me à memória o verso de Fernando Pessoa: [a] morte é a curva da estrada.  

*** 

Deambular pela comunidade da oncologia pediátrica, como o faço há 24 anos, é conviver com a frase [s]entamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba. Há um tempo que começa quando os Pais ouvem o diagnóstico de cancro num filho pequeno - e esse tempo que começa marca o fim de uma vida, tal como a conhecemos; há outro tempo que começa - e que marca outro tempo que acaba - quando tudo se suspende num alívio, ou quando tudo termina numa dor. Todos estes tempos são marcados pela precariedade. O mundo no qual [a]inda víamos felicidade e saúde e amor e filhos bonitos como ‘dádivas vulgares' (Joan Didion, Noites Azuis) é um mundo precário, onde uma viagem de carro, uma saída de barco ou um exame que se manda fazer determinam uma tragédia imprevisível: não é suposto morrer-se aos 28 anos, não é suposto morrer-se aos 56 anos, não é suposto ter-se cancro aos 6 anos.

Para a precariedade da vida não há solução. Os desastres de carro não acabarão, as saídas de barco não acabarão, o cancro pediátrico não acabará. À ciência cabe desenhar carros mais seguros, barcos mais seguros, tratamentos mais eficazes. A nós, mortais na condição de Pais, filhos, irmãos, cônjuges, cabe-nos a preparação constante para a precariedade inevitável. Todos os dias teremos de pensar que este dia, este hoje, poderá ser o último para nós, ou para aqueles que amamos. E agir em conformidade. A morte do Diogo Jota e do irmão é um kind reminder (para usar uma expressão moderna) desta necessidade de vigilância afectiva. Por vezes hoje não é o primeiro dia da minha vida, mas hoje poderá ser o último dia da minha vida.  

Termino este texto com uma frase que usei há um ano e que já tinha usado no ano anterior: não somos os mesmos, não seremos os mesmos. A frase aplica-se ao dia de hoje, mas de há 31 anos, mas também se aplica ao dia de hoje, na evidência dramática da precariedade da vida.

***

Na sua bondade sem fim
Quis Deus olhar para mim
Dar-me um pouco do que é seu
Deu-me uma estrela pequena
A quem chamou Madalena
Que é uma das santas do Céu 

JdB, em nome de todos os que te lembram.

XIV Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 10,1-12.17-20

Naquele tempo,
designou o Senhor setenta e dois discípulos
e enviou-os dois a dois à sua frente,
a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir.
E dizia-lhes:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao dono da seara
que mande trabalhadores para a sua seara.
Ide: Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos.
Não leveis bolsa nem alforge nem sandálias,
nem vos demoreis a saudar alguém pelo caminho.
Quando entrardes nalguma casa,
dizei primeiro: ‘Paz a esta casa’.
E se lá houver gente de paz,
a vossa paz repousará sobre eles:
senão, ficará convosco.
Ficai nessa casa, comei e bebei do que tiverem,
que o trabalhador merece o seu salário.
Não andeis de casa em casa.
Quando entrardes nalguma cidade e vos receberem,
comei do que vos servirem,
curai os enfermos que nela houver
e dizei-lhes: ‘Está perto de vós o reino de Deus’.
Mas quando entrardes nalguma cidade e não vos receberem,
saí à praça pública e dizei:
‘Até o pó da vossa cidade que se pegou aos nossos pés
sacudimos para vós.
No entanto, ficai sabendo:
Está perto o reino de Deus’.
Eu vos digo:
Haverá mais tolerância, naquele dia, para Sodoma
do que para essa cidade».
Os setenta e dois discípulos voltaram cheios de alegria, dizendo:
«Senhor, até os demónios nos obedeciam em teu nome».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago.
Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões
e dominar toda a força do inimigo;
nada poderá causar-vos dano.
Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem;
alegrai-vos antes
porque os vossos nomes estão escritos nos Céus».

04 julho 2025

"Furriel não é nome de pai"

Vi 4ªfeira, na RTP1, o primeiro episódio de uma série intitulada Furriel não é nome de pai* sobre os filhos que os militares portugueses deixaram na Guerra Colonial. O episódio de ontem passava-se na Guiné-Bissau e, penso eu, é aí que surge o nome: um rapaz pequeno terá perguntado à mãe como é que se chamava o pai dele. A mãe ter-lhe á respondido: furriel. Foi um amigo mais tarde que lhe ensinou que furriel não é nome, mas posto. 

Há vários pontos por onde olhar para o episódio de ontem. Podemos ver o drama de crianças pequenas que são mais claras do que os amigos e família e que, por isso, são discriminados. Uma das crianças referiu que, quando havia visitas em casa, a mãe a colocava debaixo da cama por vergonha. Se as visitas se demorassem uma tarde inteira, a criança passava uma tarde inteira debaixo da cama, para onde lhe levavam comida ou água. Uma das crianças falou nos maus tratos de um tio que lhe puxava os cabelos e batia. Outra falava dos insultos na rua: és resto de tuga ou coisa semelhante.

Podemos também ver o episódio de ontem pela lente do afecto. Todas as pessoas entrevistadas (não sei se uma maioria ou uma minoria desta comunidade) falaram no gosto que teriam em conhecer o Pai, no orgulho que o Pai teria neles, no desejo de abraçar o Pai e mesmo de serem portugueses pela lei, uma vez que se sentem portugueses pelo afecto. Rezam o terço, depõem flores num cemitério local onde há campas de militares portugueses, falam na tristeza que sentem por lhes faltar uma fatia da família, têm confiança de que o governo da República repare este injustiça.

A guerra terminou há 50 anos. Alguns militares (pais destes restos de tugas) terão hoje 75 ou 80 anos, talvez até mais. Como reagirão se alguém lhes disser conheci o teu filho na Guiné, diz que gostava muito de te conhecer. Um Pai, parece-me, nem quis falar sobre o assunto. Alguns militares conviveram algum tempo com os filhos e as crianças têm memória desse tempo - a chegada no jipe, a carne que traziam do quartel, as promessas de que, chegando à metrópole, mandariam vir o filho e a mãe. Nada aconteceu.

Como seria o encontro destes Pais e filhos? O que diria um reformado de Oliveira de Azeméis ou de Beja ou do Funchal a um rapaz ou rapariga da Guiné com quem nunca conversaram? Como se estabelecem relações de afecto em pessoas que tiveram 50 anos sem saber uns dos outros, talvez porque uma das partes não quisesse? De que falariam, como falariam?

JdB

* quem estiver interessado no livro com o mesmo nome basta seguir este link


03 julho 2025

Poemas dos dias que correm

Genève, Maio de 2025

Humildade

Tanto que fazer!
livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tanto quanto se esquece. 

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis. 

E os pássaros detrás de grades de chuva,
e os mortos em redoma de cânfora. 

(E uma canção tão bela!) 

Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê

Cecília Meireles

02 julho 2025

Vai um gin do Peter’s ? 

 GENEROSIDADE EM BARCELONA E MAGIA EM PARIS

Há 20 anos que a neta do mítico oftalmologista catalão Barraquer viaja com uma equipa de médicos especialistas, até aos locais mais remotos e pobres do planeta, para oferecerem os seus préstimos e salvarem da cegueira quem não tem meios para, sequer, ir ao médico, quanto mais avançar para a sala de operações.

O título da entrevista «Ver con los ojos… y con el corazón» transmite o lema do trabalho missionário da dinastia de oftalmologistas catalães, baseada numa permuta perfeita: para uns voltarem a ver com os olhos, outros precisam de os olhar com o coração, que tanto completa o ofício médico:  


Segundo descreve a neta Elena, o avô tinha uma mentalidade de Robin Hood, com duas portas na sua concorridíssima clínica (onde a minha irmã mais nova foi consultada, em criança), aplicando a lógica de receber de quem podia, para ajudar a pagar por quem não podia e permitir que uma vasta maioria de doentes pudesse beneficiar dos bons serviços da célebre clínica de Barcelona.  

Os números da Fundação Barraquer (https://fundacionelenabarraquer.com/en/) são impressionantes e autoexplicativos sobre o bem imenso que têm espalhado por aqueles lugares omissos nas notícias, pois ninguém com voz os frequenta. As excepções são dois tipos de aventureiros: os ávidos de fazer fortuna com as riquezas e as matérias-primas locais e os generosos, simplesmente para ajudar, porque uns precisam e outros podem, na lógica das duas portas da Clínica de Barcelona…

Estas conversas-entrevistas, que circulam nas redes sociais, sabem um pouco aos bons livros ao serão, porque nos dão a conhecer pessoas cativantes, escolhas magnânimas e originais, olhares que iluminam, neste caso, em todas as acepções. Elena não se fica pelo descritivo das ‘expedições’ além-fronteiras, pois partilha também a sua visão do mundo actual, das diferentes atitudes face ao trabalho, resultando numa grande lição de vida. 

Saltando para Paris, embalados com a música celebrizada por Edith Piaf «Sous le ciel de Paris», percorremos recantos deliciosos e monumentos inconfundíveis da Cidade da Luz, desenhados e montados através da IA. Da Torre Eiffel à ponte de Bercy, das margens do Sena a Notre-Dame e ao coração de l’Île-de-la-Cité, dos boulevards parisienses às livrarias de Rîve Gauche a funcionar noite adentro, de Pigalle e das ruelas da colina de Montmartre às pracetas de onde se avista a Basílica do Sacré-Coeur, refrescamos memórias de uma das capitais mais bonitas do mundo. Percebe-se a fama de cidade dos apaixonados


A beleza e a bondade têm o mérito de desintoxicar e de serem especialmente contagiantes! 

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

01 julho 2025

O dactilógrafo honesto *

 Não havia sido preciso mais nada para que a sua atenção se focasse naquele anúncio. Bastava o título: "cego precisa de dactilógrafo honesto". Não falava em invisuais, em técnicos disto ou daquilo, numa clima de confiança que sempre deve estabelecer-se entre parceiros do mesmo negócio, em contratos ou em evolução da carreira; nem sequer usava a terminologia politicamente correcta do dactilógrafo/a.  As palavras eram claras, curtas e concisas: cego, dactilógrafo, honesto.  

Vítor apresentou-se ao serviço numa segunda-feira em que o calor estalava as pedras da calçada e tudo, mesmo aquilo que seria um oásis, tinha uma vaga aparência de deserto. O calor era de facto brutal, naquela manhã de Agosto. Ao subir as escadas de um prédio velho da Avenida Almirante Reis (e pensou na tristeza de um homem da república - em bom rigor, no limbo entre um regime e outro - de quem não se sabe o nome próprio, apenas que é "almirante" e "reis") imaginou a Deolinda, namorada recente, em topless na costa alentejana, saltitando na arrebentação das vagas mansas. Mais do que imaginar-lhe uma nudez inquietante e uns seios diabólicos, tinha a certeza do olhar devorador do Mário, amigo de sempre que cobiçava a Deolinda como uma criança cobiça um rebuçado - guloso e sem pudor. Amigo - o Mário - que a acompanhara de férias, guiando o seat ibiza verde-claro em direcção ao parque de campismo. Tudo corria mal naquela segunda feira calorenta e enervada.  

- Bom dia, senhor Augusto, como vai hoje? 
- Olhe Vítor, é como vê...
- Está muito calor, senhor Augusto
- Pois está, Vítor; até se vê o sol a fritar as pedras da calçada...

Vítor sentou-se ao computador. Enquanto o windows fazia actualizações (algo que lhe parecia repetido e moroso) esticou e lançou um olhar à casa. Não viu nada, havia de confessar, porque só imaginava os saltos da Deolinda, o peito ofegante e perlado de suor, a toalha a correr aquela pele macia. E o Mário, esse malandro, a cobiçar-lhe tudo - os lábios, o corpo, a infidelidade, os cabelos pintados na Cátia, salão de cabeleireiro do Pragal. 

- Podemos começar, Vítor?
- Claro, Sr. Augusto... 

O sol punha-se no fio do horizonte: grande, alaranjado, lento, inspirador. Miriam recostou-se a uma duna e fechou os olhos para sentir a sua vida a correr-lhe pela frente. O pai autoritário, a mãe doce, a criada fiel, o primo namoradeiro. O mar, na suave rotina das marés, enchia o fim de tarde com um aroma de maresia e saudade. Miriam deixou-se ir e estava certo de sonhar algo igualmente perturbador e censurável: Charles, o maior amigo do seu marido, acariciava-lhe os pés e subia por aquela geografia humana como quem ascende aos céus, feito pecador com ambições de santidade. Oh não! Charles, o que dirá o meu marido? Mas Charles não parava, enchia-lhe a boca de beijos e o corpo de mãos ávidas e sedentas, afagando, desapertando, tocando. Oh Charles, oh Charles...  

Para Vítor, recém despedido de um stand de automóveis em segunda mão, tudo isto era de mais. Miriam era a Deolinda, Charles o Mário, esse malandro de olhos desvairados e mãos descontroladas a cobiçar-lhe a namorada, a espreitar-lhe as pernas bronzeadas ao ritmo de uma janela aberta na planície alentejana. E a sussurrar-lhe, estava certo, frases tentadoras: o Vítor não é para ti, não tem mão que abarque esse corpo... Em rapaz já o gozavam, e à pequenez dos atributos...  E o sacana do cego, que raio de romance havia ele de estar a escrever, um decalque da vida dele. 

Trabalharam mais 1 hora. 

- Leva-me o texto ao editor, Vítor? Vê se fica tudo bem?
- Claro, Sr. Augusto. Pode ficar descansado... 

À medida que o editor lia o texto o semblante carregava-se. Foi isto que ele ditou? E o dactilógrafo honesto, mirando com desinteresse uma ligeiríssima sujidade numa unha. Pois pode crer... Ele não está bem. E o editor entristecido, a ver-lhe fugir um novo concurso de uma câmara nortenha que incentivava escritores de mobilidade reduzida (e um cego não tem mobilidade reduzida?, gritava à administrativa camarária). 

A piscina está suja. Boiam cocós e seringas sujas. Ao lado da cadeira partida um cão mija de perna alçada. Há uma criança que grita e que leva porrada, uma mulher que grita e que também leva porrada. Há um bêbado que prega rasteiras a um cego, um mudo que chama palavrões ao primeiro ministro. Há a Deolinda nua e o porco do Mário que lhe espreita a borboleta tatuada numa bochecha do rabo. Se os apanhasse agora dava-lhes um enxerto de porrada que os virava. Rai's parta tudo, mais o sacana do cego. 

Cego precisa de dactilógrafo honesto. 

JdB  

* publicado originalmente a 25 de Fevereiro de 2016 

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