31 agosto 2025

XXII Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 14,1.7-14

Naquele tempo,
Jesus entrou, a um sábado,
em casa de um dos principais fariseus
para tomar uma refeição.
Todos O observavam.
Ao notar como os convidados escolhiam os primeiros lugares,
Jesus disse-lhes esta parábola:
«Quando fores convidado para um banquete nupcial,
não tomes o primeiro lugar.
Pode acontecer que tenha sido convidado
alguém mais importante que tu;
então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer:
‘Dá o lugar a este’;
e ficarás depois envergonhado,
se tiveres de ocupar o último lugar.
Por isso, quando fores convidado,
vai sentar-te no último lugar;
e quando vier aquele que te convidou, dirá:
‘Amigo, sobe mais para cima’;
ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados.
Quem se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».
Jesus disse ainda a quem O tinha convidado:
«Quando ofereceres um almoço ou um jantar,
não convides os teus amigos nem os teus irmãos,
nem os teus parentes nem os teus vizinhos ricos,
não seja que eles por sua vez te convidem
e assim serás retribuído.
Mas quando ofereceres um banquete,
convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos;
e serás feliz por eles não terem com que retribuir-te:
ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos.

29 agosto 2025

Textos dos dias que correm

 

Kyoto, Novembro 2018

Não se Reconquista o Amor com Argumentos 

Não te esqueças de que a tua frase é um acto. Se desejas levar-me a agir, não pegues em argumentos. Julgas que me deixarei determinar por argumentos? Não me seria difícil opor, aos teus, melhores argumentos.

Já viste a mulher repudiada reconquistar-te através de um processo em que ela prova que tem razão? O processo irrita. Ela nem sequer será capaz de te recuperar mostrando-te tal como tu a amavas, porque essa já tu a não amas. Olha aquela infeliz que, nas vésperas do divórcio, teve a ideia de cantar a mesma canção triste que cantava quando noiva. Essa canção triste ainda tornou o homem mais furioso.

Talvez ela o recuperasse se o conseguisse despertar tal como ele era quando a amava. Mas para isso precisaria de um génio criador, porque teria de carregar o homem de qualquer coisa, da mesma maneira que eu o carrego de uma inclinação para o mar que fará dele construtor de navios. Só assim cresceria essa árvore que depois se iria diversificando. E ele havia de pedir de novo a canção triste.

Para fundar o amor por mim, faço nascer em ti alguém que é para mim. Não te confessarei o meu sofrimento, porque ele te faria desgostar de mim. Não te farei censuras: elas irritar-te-iam justamente. Não te direi as razões que tu tens para amar-me, porque não as tens. A razão de amar é o amor. Também não me mostrarei mais, tal como tu me desejavas. Porque tu já não desejas esse. Se não, amar-me-ias ainda. Mas educar-te-ei para mim. E, se sou forte, mostrar-te-ei uma paisagem que fará de ti meu amigo.

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"

28 agosto 2025

Em memória de JdC, dois anos volvidos

Faz hoje dois anos que recebi a mensagem, infelizmente já esperada, que me informava da morte do JdC. Terminava ali uma amizade próxima que se estendera por mais de 50 anos.

A minha amizade com o JdC - como acontecerá, aliás, com a generalidade das amizades - atravessou várias fases que se ligam, inevitavelmente, às várias fases da vida de cada um. Ser amigo de alguém aos 18 anos não é - ou pode não ser - o mesmo que ser amigo desse alguém aos 60. Somos afectados, não só pelas vicissitudes da vida, mas também por uma sensação de proximidade exclusiva que se vai esboroando. No entanto, apesar de todas estas inevitabilidades, mantive com o JdC uma amizade muito próxima seguramente até 2008, ano em que ele me recebeu no Zimbabwe.

Um dia destes, a conversar com alguém sobre um tema que me é caro, ouvia esta partilha: não tenho qualquer memória da cara do meu Pai. Já aqui escrevi sobre o que morre quando nos morre alguém. O que nos morre quando morre alguém cujo formato dos olhos, desenho da boca, implantação do nariz não perdura na lembrança dos que lhe foram próximos? É só uma questão de nitidez fotográfica que se vai esfumando, como um retrato demasiado exposto ao sol, ou é uma espécie de purga da alma?

Se o JdC tivesse morrido em 2008, o que teria morrido em mim? E o que morreu em mim pelo facto de ter morrido em 2023, quinze anos depois dessa minha breve mas impressiva estadia em África? Para muitos estas dúvidas não têm razão de ser, ou são meio patetas: lembrar uma pessoa é, na verdade, lembrar uma pessoa. Mas não é assim - melhor dizendo, não é sempre assim. Olho para a minha galeria de mortos: pais, irmão, filha, avó, sogros, cunhado, um ou outro amigo, familiares mais ou menos próximos. O que morreu em mim naquele minuto em que fecharam os olhos é, provavelmente, o que teria morrido em mim se tivessem fechado os olhos 15 anos depois. Com o JdC isso não acontece. Morreram em mim algumas coisas, mas morreu em mim, também, a memória de algumas coisas, ou de tempos que não voltariam, mesmo que ele tivesse vivido até aos 100. 

Por estes dias sento-me a ler notícias, a ver telejornais, a programar viagens, a pensar na vida. Por vezes - talvez com muita frequência - lembro-me dele e da falta que me faz ou que me fez. Gostaria de ouvi-lo sobre a Ucrânia, sobre o conflito israelo-palestiniano, sobre o embaixador que está no Chile ou sobre uma ou outra preocupação mais prosaica. Era um homem bem informado, culto nos seus interesses, que discorria bem sobre os seus temas ou sobre alguns aspectos da vida. 

Heráclito terá dito mais ou menos isto: Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem! Sendo isto verdade, talvez o seja, sobretudo, noutras áreas da vida onde algumas pessoas, todas voltadas para a memória e para o ritual, como eu, se confrontam com o fim das coisas, mesmo antes do fim das coisas. E alguma coisa do que foi não voltará, também porque já não somos os mesmos.

JdB        

27 agosto 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 VISITAS SURPRESA REVELADORAS 

Apenas volvidos três meses no Vaticano e começam a conhecer-se traços curiosos e significativos do temperamento de Leão XIV e da forma como entende a sua missão pontifícia. É, aliás, invulgar a combinação de características: de semblante e modos pacíficos, surpreende com gestos ousados e originais, como as visitas surpresas a gente ‘anónima’ e outros desvios ao apertado protocolo do Vaticano. Invulgar também o misto de sobriedade algo tímida, a par da empatia que ressalta nas frequentes expressões de ternura, comovidas e comoventes. De certo modo, essa capacidade ficou patente na primeira aparição na varanda da Praça de S.Pedro, a 8 de Maio, logo que terminou o conclave. Como invulgares são a enorme simplicidade e a notável abertura aos outros, sobretudo aos mais necessitados. Invulgar também tem sido a audácia com os VIP, desdobrando-se em diligências corajosas ao mais alto nível, (ex: junto do Presidente russo e do Primeiro-Ministro israelita). Mas, à semelhança do Papa Francisco, a prioridade de Leão XIV são os abandonados, afadigando-se a chegar às periferias ignoradas, como algumas das suas visitas surpresa revelam. 

Um caso ilustrativo decorreu no início do Jubileu da Juventude, quando antecipou a sua aparição pública às centenas de milhares de jovens reunidos em Roma. Salvou, aliás, a frustração compreensível de uns quantos miúdos, menos atentos à programação, que não previa a presença do Papa no primeiro dia. Mas Leão XIV resolveu ir ao encontro da multidão no formato mais acessível e divertido: no papamobile descapotável (muito exposto), bem visível e disponível para cumprimentar e demorar-se com uns e outros. O pormenor mais delicioso (creio) foi a escolha do trajecto, irrompendo a partir da periferia mais distante de S.Pedro, para poder dedicar mais tempo aos que não tinham conseguido lugar na Praça, espraiando-se pela Via della Conciliazione e pelas ruas adjacentes!  

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Desde 8 de Maio, Leão XIV tem também somado visitas surpresa, sempre tendo por denominador comum o facto de privilegiar os periféricos e em maior sofrimento. Assim tem aproveitado a ‘mobilidade pontifícia’ para percorrer os trilhos menos cómodos, mais longínquos, para alcançar quem acabou excluído dos grandes acontecimentos festivos. 

Um Papa que se multiplicou em banhos de multidão festiva, para viver com os jovens peregrinos o Jubileu da Juventude (AP Photo/Andrew Medichini).

Leo XIV numa das celebrações em Tor Vergata (Roma

Um episódio recente ocorreu durante o Jubileu da Juventude, quando acrescentou às intenções da Missa as duas jovens (espanhola e egípcia) que tinham encontrado a morte, em Roma. Pediu também a oração de todos pelo espanhol de 15 anos, internado de urgência com um linfoma grave. Não se ficou por aqui, decidindo aparecer de surpresa ao jovem espanhol, que estava em coma, rodeado pela família, num quarto do hospital romano Bambino Gesù. 

Percebe-se como foi um momento tocante para a família de Ignacio Gonzálvez, a começar pela sofrida mãe-coragem, que pôde receber a atenção e o abraço fraterno de Leão XIV, ali mesmo junto à cama do filho, talvez já próximo da Partida. Diz muito a razão confidenciada pelo Papa à mãe, por aquela visita inesperada: «[Leão XIV] disse-me que, se o Ignacio veio até Roma, ele poderia vir até ao hospital para o ver. Foram palavras simples, mas cheias de carinho.»  As notícias sobre essa visita estão cheias de detalhes comoventes, que transmitem a grandeza humana de um encontro imprevisto, que depois despoletou uma onda de solidariedade e de apoio generalizados à família de Múrcia. Segundo os próprios, foi reconfortante verem-se rodeados de mimos, numa hora tão dolorosa e a tantos quilómetros de casa para poderem acompanhar Ignacio. Quando faltam as palavras, esses são os gestos de carinho e de consolo, que valem por mil frases e revelam a face mais luminosa da humanidade, na hora da dor mais funda:

«O ABRAÇO DE LEÃO XIV À FAMÍLIA DO JOVEM ESPANHOL HOSPITALIZADO:
 "CONFORTADOS NA DOR"

Pedro Pablo e Carmen Gloria Gonzálvez, um casal de Múrcia, rezavam por seu filho de quinze anos, internado no Hospital Bambino Gesù com um caso grave de linfoma, quando viram o Papa chegar inesperadamente. "Foi um sinal de que Deus não me abandonou", afirma a mãe. O pai, por sua vez, diz estar comovido com as palavras do Pontífice: "Somos feitos para o céu". O irmão e a irmã também se comoveram com o gesto do Pontífice, que fortaleceu toda a família: "Ele realmente entendeu a nossa dor".

Estávamos todos a rezar na unidade de terapia intensiva — Pedro Pablo, Carmen Gloria, Pedro Pablo Jr. e Adela — por seu filho e irmão, Ignacio, que parece estar nas últimas horas de vida. Como estavam com os olhos fechados, um sacerdote, que os acompanhava, teve de tocar-lhes no braço, quando o Papa Leão chegou ao Hospital Bambino Gesù, sem avisar, para oferecer o seu conforto ao jovem espanhol de quinze anos, por quem havia pedido a todos os presentes, em Tor Vergata, que rezassem na noite da vigília do Jubileu da Juventude.

ACORDADOS HÁ DIAS, REZAM PEDINDO UM "MILAGRE"

Ignacio está sedado; não viu nem ouviu nada. Tem um linfoma que afeta as vias respiratórias; uma situação muito delicada que suscita os piores temores, não apenas da morte, mas também do sofrimento.»

Salvatore Cernuzio - Cidade do Vaticano

* * *

«PAPA VISITA JOVEM ESPANHOL HOSPITALIZADO NO BAMBINO GESÙ

Na noite de 4 de agosto, o Papa Leão XIV visitou Ignacio Gonzálvez, um jovem espanhol que veio a Roma para o Jubileu dos Jovens.

Seus pais, seu irmão de 24 anos e sua irmã de 17 anos estão acordados há dias, desde que o jovem, que havia vindo com sua comunidade do Caminho Neocatecumenal de Múrcia (Espanha), a Roma, para o evento do Jubileu, e há quatro dias sentiu como que uma "explosão" no peito, seguida por desmaios, o que o levou a ser internado com urgência num hospital pediátrico. Em casa, ele fazia atividades físicas e tinha apenas um pouco de tosse leve, nenhum pré-aviso, nenhum alarme. No entanto, se o tivessem internado algumas horas depois, ele já teria partido, afirmam os médicos.

Diante deste quadro, pais e irmãos rezam incessantemente, clamando a Deus para realizar "um milagre". E também estão comovidos com a demonstração de solidariedade e proximidade, que receberam após o apelo do Papa Leão.

"SOMOS FEITOS PARA O CÉU"

"Um homem simples", diz Adela sobre o Papa Leão. Ele passou cerca de meia hora com a família antes de visitar alguns pacientes na ala de oncologia e se encontrar individualmente com outros jovens pacientes e a equipa do hospital. Com os Gonzálvez, o Pontífice rezou a Ave-Maria e o Pai-Nosso, deu a cada um sua bênção e falou sobre o Evangelho, a vida eterna e a vontade de Deus. Ele lhes disse: “somos feitos para o céu”.

"Ele ajudou-nos muito, deu-nos uma palavra. Foi incrível", conta o pai emocionado, ao falar por telefone com a Rádio Vaticano, enquanto aguarda a sua vez para estar ao lado do filho. Leão XIV, explica Pedro Pablo, "disse-nos que o importante é fazer a vontade de Deus, que o nosso verdadeiro lugar é a vida eterna no céu. Isso confortou-nos, porque somos pessoas que buscam viver a fé e sabemos que é a verdade. Em momentos em que alguém sofre assim, saber que o Papa vem e te dá uma palavra como essa é... a melhor coisa que nos poderia ter acontecido."

PRESENÇA DE DEUS

Carmen Gloria também está convencida disso, repetindo com a sua voz cristalina, que às vezes falha ao explicar a condição do jovem que, mesmo com quinze anos, continua a ser o seu "menino". Ninguém pode imaginar o oceano de dor em que uma mãe pode mergulhar ao ver o filho enfrentar tal doença. No entanto, ela, assim como o marido, fala de fé e de consolo. E agradece ao Papa pela "surpresa": "Ele disse-me que, se o Ignacio veio até Roma, ele poderia vir até o hospital para o ver. Foram palavras simples, mas cheias de carinho."

"O Papa - enfatiza ela – disse-nos que isso é um mistério e que, apesar de muitas coisas que não entendemos, sabemos que Deus está presente e quer o melhor para todos. Como mãe, vi Jesus Cristo aproximar-se de mim e dizer-nos: 'Não estás sozinha'. Foi isso que a presença do Papa no hospital significou para mim: a confirmação de que Deus não nos abandonou."»

Vatican News - 4 de Agosto de 2025

Depois de Ignacio, Leão XIV estendeu a visita aos outros acamados na ala pediátrica de oncologia, que nem queriam acreditar no abraço e na bênção recebidos de um Papa tornado próximo num momento especialmente sofrido e frágil.  

Como bem lembra e testemunha, em carne-e-osso, o Pontífice americano-peruano: é no calor do encontro pessoa-a-pessoa que a humanidade mais se diferencia e suplanta a inteligência artificial. Grande dom estes gestos de bondade, que ajudam a encurtar a distância da Terra ao Céu.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

26 agosto 2025

Poesias dos dias que correm

Casa de amigos em Alcácer, Domingo que passou

Almoço do trolha 

Pobríssimos
as cabeças cortadas
mas tão felizes
homem mulher e bebé
de um tijolo
do patrão
fizeram um assento
o Estado Novo impede-os
de tirar os sapatos
o Partido Comunista também
desce sobre eles
o Espírito Santo
do almoço
vão comer língua?
 
 
adilia lopes
clube da poetisa morta (1997)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004

24 agosto 2025

XXI Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 13,22-30

Naquele tempo,
Jesus dirigia-Se para Jerusalém
e ensinava nas cidades e aldeias por onde passava.
Alguém Lhe perguntou:
«Senhor, são poucos os que se salvam?»
Ele respondeu:
«Esforçai-vos por entrar pela porta estreita,
porque Eu vos digo
que muitos tentarão entrar sem o conseguir.
Uma vez que o dono da casa se levante e feche a porta,
vós ficareis fora e batereis à porta, dizendo:
‘Abre-nos, senhor’;
mas ele responder-vos-á: ‘Não sei donde sois’.
Então começareis a dizer:
‘Comemos e bebemos contigo
e tu ensinaste nas nossas praças’.
Mas ele responderá:
‘Repito que não sei donde sois.
Afastai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade’.
Aí haverá choro e ranger de dentes,
quando virdes no reino de Deus
Abraão, Isaac e Jacob e todos os Profetas,
e vós a serdes postos fora.
Hão de vir do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul,
e sentar-se-ão à mesa do reino de Deus.
Há últimos que serão dos primeiros
e primeiros que serão dos últimos».


22 agosto 2025

Das fasquias altas *


Imagem tirada da net

Nada fez mais pelos obsessivos do que a expressão fasquia alta. Percebi esta ideia muito depois de ter entendido, com dose igual de fascínio e terror, o que eram obsessões: pela pontualidade, pela limpeza, pela arrumação, pelo controlo das agendas ou das vidas alheias. Falo de trivialidades no que concerne à salvação das almas, não me refiro a taradices ou coisas quejandas, puníveis pela lei ou pelos bons costumes.

Antes de haver a noção de fasquia alta, as pessoas eram obsessivas por isto ou por aquilo. Depois, num dia de particular felicidade para o equilíbrio das sociedades, alguém inventou o conceito e disse: eu, obcecado pela limpeza? De todo, tenho é a fasquia muito alta, sou pessoa para dar muita importância a isso. Quem diz a fasquia alta para a limpeza diz a fasquia alta para a pontualidade: não sou nada obcecado, tenho é um grande respeito pelas pessoas - a fasquia está muito alta.

Uma obsessão é uma obsessão, não é uma fasquia. As nossas manias não são provas de salto em altura ou à vara. Dentro de nós não existe o rolamento ventral versus o fossbury flop. A indignação por três minutos de atraso quando se vai almoçar com alguém, ou um pano esfregado num fórmica onde se descortinam dedadas vagas não são respeito ou higiene - são maluquices que nos invadem o cérebro e as mãos e a boca e o estômago. Estas maluquices são perniciosas ao equilíbrio das vidas? Não. Antes isso do que a droga ou, como me disseram um dia, uma infecção urinária. 

Eu sei quais são as minhas obsessões. São tão doentias como outras com que convivo diariamente, isto é, não fazem uma mossa desmedida. Tudo em mim se atira para dizer que ah, e tal, a fasquia alta. Infelizmente, estou numa fase que se situa no grau acima do excesso ponderal, pelo que a fasquia alta e o editor deste estabelecimento são, no fundo, impossibilidades, incoerências, ajustes impensáveis, casamentos nulos. Fasquia alta, para mim, é uma vara de alumínio ao nível dos artelhos. 

Talvez por isso, e só por isso, eu reconheça as minhas obsessões. Faço tudo, menos saltar para chegar à fasquia.

JdB

* publicado originalmente a 4 de Dezembro de 2014

21 agosto 2025

a nossa geração *

 às vezes,

é como se conduzisse um carro,
mantendo um olho na estrada que leva ao futuro
e o outro no retrovisor.

emparedado, entre uma coisa e outra,
fácil é ficar estrábico (que me desculpem os estrábicos),
até porque não podemos deixar de continuar
a olhar também para o painel de instrumentos,

seus manómetros, indicadores, luzinhas vermelhas a piscar,
toda uma panóplia de tempos presentes
reclamando atenção
e urgência.

inspiro-me na beat generation,
para brincar aos poemas,
na vã esperança de que não me saia ao caminho
uma outra geração (a nossa, temo bem):

the beaten generation.

outra forma de dizer que também nós (nos) perdemos.

gi.

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* publicado originalmente a 27 de Junho de 2012

20 agosto 2025

Textos dos dias que correm

No Meu Tempo não Era Assim

Ficar velho deve ser, presumimos, ficar preso a noções e ambições que constituíram a aposta do tempo da juventude. Mas as pessoas esquecem que, enquanto vão aplicando essas noções e ambições, outras pessoas nascem e se fazem homens, tendo do mundo uma visão diferente. E é a visão mais recente - até que outra mais nova ainda a venha substituir - que garante a sobrevivência espiritual e material do homem no mundo. Assim, aos que se não encontram em estado de vigilante disponibilidade será recusada a compreensão sempre refeita da realidade. É essa mesma massa humana que se torna um peso para o próprio desejo humano de progressão, que se faz obstáculo ao dinamismo natural da vida. Por mais argumentos que julgue encontrar, a velhice nunca tem razão. Não há plano de realidade, nem tipo de actividade, onde isto não seja assim. (…) O mal das sociedades que se orgulham de uma grande tradição cultural é que supõem haver encontrado a forma definitiva de resolver os problemas todos. Passa-lhes desapercebida a qualidade dinâmica da realidade e a exigência que esse mesmo dinamismo tem de instrumento, que da tradição apenas aproveitem aquilo que não morreu e que normalmente é muito menos do que se pensa. Em todos os domínios, há Velhos do Restelo, que ficam à borda de água meneando sabichonamente a cabeça e falando da loucura do mundo. Dizem eles: no meu tempo não era assim. Pois não era, senhores cadáveres.

Herberto Helder, in 'Em minúsculas'

19 agosto 2025

Onde está Deus nestes dias?

Escrevi, no passado dia 4 de Novembro, um texto (pode ler-se aqui) em que os protagonistas, para além de mim, eram três mães que se tornaram minhas amigas: uma grega, que perdeu um filho, e duas outras, uma chilena e uma australiana, cujos filhos sobreviveram a um cancro enquanto crianças. No domingo recebo uma mensagem com carácter de urgência de uma delas: o marido da Kate (australiana) morrera inesperadamente durante o sono. A Kate anda à roda dos 50 anos e tem filhos menores (a mais velha andará pelos 18, se tanto) um dos quais com limitações. 

Por onde quer que se olha para este evento, qualquer que seja a forma como se olha, só se lerá uma palavra: tragédia. Habituado que estou a uma comunidade que aprendeu a tirar um sentido para aquilo que lhe acontece (o sofrimento e por vezes a morte de filhos pequenos para um cancro) não consigo ver nada nesta morte, a não ser a repetição das palavras da Bíblia - vigiai, porque não sabeis dia nem hora - para daí reforçar a ideia de que temos de ter a nossa vida resolvida, sobretudo com aqueles que nos estão mais próximos. Fora isso, nada: nem uma história para contar, nem um ensinamento enriquecedor, nem um momento de inspiração. A ela, depois de um filho pequeno com cancro e uma viuvez precoce, talvez só lhe ocorram as palavras de Bento XVI em Auschwitz-Birkenau: onde estava Deus naqueles dias?

Curiosamente - presumindo que a minha tese não tem importância suficiente para confirmar a ideia Jungiana de coincidência significativa - estou de volta de um capítulo intitulado Sofrimento e Deus. Explicado de forma simplista aqui, nele discorro sobre a forma de conciliar a ideia de um Deus omnipotente e bondoso com a existência do sofrimento de gente inocente, como crianças. Se Deus é bom, como é possível que crianças sofram ou morram? Se Deus é infinitamente bom, como é possível que o marido da Kate tenha morrido, deixando-a viúva e com quatro filhos menores? 

Até onde sei, esta minha amiga australiana está afastada da igreja anglicana, ou nunca esteve muito próxima. Talvez por isso não seja atormentado por esta pergunta existencial de Bento XVI que permanece sem resposta visível, a não ser no coração de cada um. Ou, talvez também por isso, não encontre desconsolo nas frases que se dizem (o paraíso, está num lugar melhor, Deus só dá o que podemos aguentar, etc.) e que nada acrescentam a quem sofre uma perda brutal. Talvez não haja palavras certas para consolar alguém nestas condições. Talvez apenas manifestar uma presença, uma compaixão, e rezar para que a vida retome a normalidade possível com a brevidade possível. 

Onde está Deus nestes dias? é uma pergunta legítima que não sei se se fará do outro lado do mundo. A forma como se responde marcará o ritmo do trabalho de luto da Kate e dos filhos. 

JdB 

17 agosto 2025

XX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 12,49-53

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Eu vim trazer o fogo à terra
e que quero Eu senão que ele se acenda?
Tenho de receber um batismo
e estou ansioso até que ele se realize.
Pensais que Eu vim estabelecer a paz na terra?
Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão.
A partir de agora, estarão cinco divididos numa casa:
três contra dois e dois contra três.
Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai,
a mãe contra a filha e a filha contra a mãe,
a sogra contra a nora e a nora contra a sogra».


15 agosto 2025

Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria

 EVANGELHO - Lc 1,39-56

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naqueles dias,
Maria pôs-se a caminho
e dirigiu-se apressadamente para a montanha,
em direcção a uma cidade de Judá.
Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel.
Quando Isabel ouviu a saudação de Maria,
o menino exultou-lhe no seio.
Isabel ficou cheia do Espírito Santo
e exclamou em alta voz:
«Bendita és tu entre as mulheres
e bendito é o fruto do teu ventre.
Donde me é dado
que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?
Na verdade, logo que chegou aos meus ouvidos
a voz da tua saudação,
o menino exultou de alegria no meu seio.
Bem-aventurada aquela que acreditou
no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito
da parte do Senhor».
Maria disse então:
«A minha alma glorifica o Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações.
O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas:
Santo é o seu nome.
A sua misericórdia se estende de geração em geração
sobre aqueles que O temem.
Manifestou o poder do seu braço
e dispersou os soberbos.
Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes.
Aos famintos encheu de bens
e aos ricos despediu de mãos vazias.
Acolheu a Israel, seu servo,
lembrado da sua misericórdia,
como tinha prometido a nossos pais,
a Abraão e à sua descendência para sempre».
Maria ficou junto de Isabel cerca de três meses
e depois regressou a sua casa.

14 agosto 2025

Textos dos dias que correm

 O Mal da Cidade

O Homem pensa ter na Cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles como trapos, de nervos trémulos como arames, com cangalhas, com chinós, com dentaduras de chumbo, sem sangue, sem fibra, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na cidade findou a sua liberdade moral: cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência: pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; rico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimónias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que os dum cárcere ou dum quartel... A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ela recompensa os Santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro!

Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o Amor na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho Deus do Himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da Paixão a apertada carteira do Dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhados em que os Faunos amam as Ninfas na boa lei natural, e busca tristemente os recantos lôbregos de Sodoma ou de Lesbos!...

Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de Ideias e Fórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já exprimidas: - ou então, para se destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um mostrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; - e alguns são macacos, saltando no topo de mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o Céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela Cidade! 

Eça de Queirós, in 'A Cidade e as Serras'

13 agosto 2025

Vai um gin do Peter’s ?

 SEGREDO DO NOME DE BOMBONS MÍTICOS

Alba é uma pequena cidade de Piemonte, situada no Nordeste de Itália, linda como quase tudo em Itália, declarada património da UNESCO pela excelência gastronómica, região demarcada de vinhos famosos, trufas de primeira água e origem da próspera multinacional Ferrero S.A.  A criatividade, ousadia, e gratidão misturam-se na história da marca e da família Ferrero, mostrando quanto as pessoas fazem a diferença.  

Na Europa devastada pela Segunda Guerra Mundial, os irmãos Pietro e Giovanni Ferrero descobriram oportunidades, onde apenas parecia reinar pobreza e ruína. Herdeiros de uma pastelaria de sucesso, em Alba, empenharam-se em inventar uma receita, que aproveitasse a abundância de avelãs da região para criar uma iguaria acessível e deliciosa, numa altura em que o chocolate se tornara um luxo e a fome afligia grande parte da população. A proeza culinária coube ao artífice e artista dos dois – Pietro – que concebeu um creme de chocolate de preço muito acessível e uma consistência invulgarmente compacta, que recomendava o uso da faca para barrar o pão com o ‘Super Creme’. O truque para contornar o custo proibitivo do cacau residira na fórmula mágica de enriquecer o doce de avelã com a dose certa de cacau, para lhe dar cor e afinar o sabor. 

A pastelaria lendária dos Ferrero

O êxito do novo recheio para o pão, simultaneamente nutritivo e barato, levou os irmãos a criar uma marca própria, em 1946, com o nome de família – Ferrero – para comercializar um produto revolucionário, em larga escala. Se Pietro valia pelas façanhas culinárias, Giovanni era o génio do marketing e do negócio, que montou uma poderosa rede comercial, de Norte a Sul de Itália, para escoar melhor o Super Creme. 

Mal passara uma década sobre a Segunda Guerra, quando se aventuraram na internacionalização da produção familiar, abrindo uma fábrica no país mais destruído da Europa, mas também de maior tradição industrial – a Alemanha, dividida e em escombros. Dois anos depois, lançavam uma fábrica em França e não mais pararam de crescer além-fronteiras. 

Vinte anos depois, o novo CEO da Ferrero, filho de Pietro, arriscou reinventar a receita do Super Creme, para o modernizar e rebaptizou-o de Nutela. O resto é história, sobejamente conhecida. 


Slogan oficial: «O que seria o mundo sem a Nutela?»

Mantendo o ímpeto expansionista dos fundadores, quer em termos geográficos, quer na variedade de produtos, Michele Ferrero explorou novas combinações de texturas e de sabores de chocolate, misturados com avelã, para dar origem a outro segredo de sucesso – o bombom Ferrero Rocher, patenteado em 1982. Teve também o mérito de continuar fiel ao princípio-base da empresa, de oferecer produtos de alta qualidade com sabores originais e únicos, mas a preços muito acessíveis. 

O nome do bombom mais natalício do mundo – reconhecível pelo contorno irregular, que lembra um pedaço de rocha embrulhado em papel dourado enfaticamente amachucado – junta o apelido da família a uma referência subtil, indicada no termo francês ‘rocher’, para evocar a gruta rochosa onde Nossa Senhora apareceu em Lourdes, no ano de 1858. 

Formato evocativo da rocha de Massabielle, em Lourdes, situada no Sul de França, onde decorreram as Aparições a Bernardette Soubirous, em 1858.

Árvore de Natal formada por Ferrero Rocher, que enche Centros Comerciais e lojas, sobretudo em Itália.

Numa data mariana de relevo, como é o 13 de Agosto, celebrado na Cova de Iria e marco da construção do Muro de Berlim (em 1961), que materializou no coração da Europa o que profetizara a mensagem de Fátima sobre a brutalidade da ‘Cortina de Ferro’ (na expressão de Churchill), os Ferrero Rocher ajudam a festejar este dia e a antecipar um feriado mariano importante, a 15 de Agosto.

Na empresa de origem italiana é conhecida e explícita a devoção de Michele a Nossa Senhora, atribuindo-lhe o sucesso rotundo da marca e procurando homenageá-la através de sinais subtis, como a designação dos célebres bombons. Peregrino assíduo do Santuário de Lourdes, mandou colocar uma imagem de Maria nas fábricas do Grupo espalhadas pelo mundo.  

O marketing da Ferrero também explica parte do êxito da empresa, sempre criativo e capaz de levar cada novo produto (mais de 30) aos quatro cantos do mundo, marcando presença em 170 países. O crescimento meteórico dos ‘bombons rochosos’ revelou uma habilidade comercial que, nalguns casos, antecipou em anos os morosos processos de abertura política de países mais fechados. Um par de datas é eloquente: depois de conquistar a Europa, em 1982 e de aterrar nos EUA, logo em 1988, entrou na China em 1994 e na Rússia em 1996!

   

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Bem se aplica aos manos Ferrero a máxima romana de que ‘a sorte favorece os audazes’.  Todavia, menos óbvio e mais incomum é juntarem tamanho talento à criação de delicatessen apreciados universalmente, com especial sentido de gratidão. Vale-lhes também conseguirem preservar as receitas prodígio no segredo dos deuses. E já vão na terceira geração, com a quarta a aproximar-se.  

São sempre inspiradoras as pessoas criativas, mais ainda quando dotadas de sensibilidade humana e humanista, além de antevisão, que as impulsiona a gizarem soluções forjadoras de novidades boas, neste caso, deliciosas. Grande contributo dos Ferrero para a dolce vita

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

12 agosto 2025

Da vida militar *

 

Fotografia tirada da net

Gosto de filmes de guerra, ou de uma espécie de filmes de espionagem, confesso. Mas, devo também afirmá-lo, não sou movido pelo jorro de sangue nem pelos ruídos de uma metralhadora que dispara sem cessar; não sou movido por um belicismo fardado, nem pela ideia do fundo moral dos filmes que manda que os bons acabem por triunfar; não sou movido pela tecnologia usada em combate nem pelos efeitos especiais do realizador. No fundo, o que me motiva, por mais estranho que possa parecer, é a dimensão fabril por trás de uma guerra ou de uma operação especial / militar. O que quero ver é a organização dos 4 M's - Men, Machine, Material, Method - ao serviço de um objectivo. Nesse sentido, tanto se me dá que sejam os bons a ganhar como os maus. Não há moral nem ética na ficção, pelo que a organização mais eficaz é a que me suscita maior interesse. 

(Vi duas vezes, uma por curiosidade e a outra por desfastio, o filme que retrata a detenção (?) e morte de Bin Laden. O que queria mesmo era ter visto a organização da operação militar algo que é, quanto a mim, muito pobremente retratado.)

Sempre pensei que uma parte do que sou conviveria bem com uma vida militar. Talvez até por isso havia quem achasse que eu tinha um ar empertigado e marcial. Não tendo nenhum antecedente próximo na vida castrense, sempre me questionei de onde poderia vir esta vaga tendência. Agora percebo: é o meu lado de engenheiro de fábrica. Não me interessam (no sentido de não ser uma motivação forte) as guerras, os mortos, a defesa da Pátria, a luta contra um inimigo manhoso e traiçoeiro que ameaça os nossos valores, a praxe ao recruta ou as ordens dadas aos gritos. Interessa-me a norma, o planeamento, a regra, a uniformidade voltada para a máxima eficácia, a flexibilidade dinâmica, ponderada e arrumada mentalmente, a rotina que dá segurança, a constância dos padrões. Ser-se engenheiro numa fábrica ou um oficial numa unidade militar são, para esse efeito, equivalências.  

Talvez nunca tenha querido ser tropa, mas apenas um elemento numa organização onde a hierarquia fosse uma virtude, a organização uma condição de sobrevivência e o rigor uma ferramenta imprescindível. Podia ser uma fábrica ou um quartel. Coube-me a fábrica.

JdB

+ mensagem publicado originalmente a 23 de Maio de 2016

10 agosto 2025

XIX Domingo do Tempo Comum

 EVANGELHO – Lucas 12,32-48

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Não temas, pequenino rebanho,
porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o reino.
Vendei o que possuís e dai-o em esmola.
Fazei bolsas que não envelheçam,
um tesouro inesgotável nos Céus,
onde o ladrão não chega nem a traça rói.
Porque onde estiver o vosso tesouro,
aí estará também o vosso coração.
Tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas.
Sede como homens
que esperam o seu senhor voltar do casamento,
para lhe abrirem logo a porta, quando chegar e bater.
Felizes esses servos, que o senhor, ao chegar,
encontrar vigilantes.
Em verdade vos digo:
cingir-se-á e mandará que se sentem à mesa
e, passando diante deles, os servirá.
Se vier à meia-noite ou de madrugada,
felizes serão se assim os encontrar.
Compreendei isto:
se o dono da casa soubesse a que hora viria o ladrão,
não o deixaria arrombar a sua casa.
Estai vós também preparados,
porque na hora em que não pensais
virá o Filho do homem».
Disse Pedro a Jesus:
«Senhor, é para nós que dizes esta parábola,
ou também para todos os outros?»
O Senhor respondeu:
«Quem é o administrador fiel e prudente
que o senhor estabelecerá à frente da sua casa,
para dar devidamente a cada um a sua ração de trigo?
Feliz o servo a quem o senhor, ao chegar,
encontrar assim ocupado.
Em verdade vos digo
que o porá à frente de todos os seus bens.
Mas se aquele servo disser consigo mesmo:
‘o meu senhor tarda em vir’;
e começar a bater em servos e servas,
a comer, a beber e a embriagar-se,
o senhor daquele servo
chegará no dia em que menos espera
e a horas que ele não sabe;
ele o expulsará e fará que tenha a sorte dos infiéis.
O servo que, conhecendo a vontade do seu senhor,
não se preparou ou não cumpriu a sua vontade,
levará muitas vergastadas.
Aquele, porém, que, sem a conhecer,
tenha feito ações que mereçam vergastadas,
levará apenas algumas.
A quem muito foi dado, muito será exigido;
a quem muito foi confiado, mais se lhe pedirá».

08 agosto 2025

Poemas dos dias que correm *

 

Roma, Setembro de 2015 (fotografia de TdB)


soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

***

Quanto Morre um Homem

Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que só de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?

Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

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* publicado originalmente a 16 de Setembro de 2015

07 agosto 2025

Karaokes dos dias que correm *

O post abaixo foi publicado neste estabelecimento ontem, mas há 16 anos, e lembrava momentos significativos da minha vida dos últimos anos - 17, para ser mais preciso. A lembrança daquele tempo - um tempo marcante, por diversos motivos - traz uma memória dupla, de humor e saudade. Cantar em público foi um momento de humor inédito: já deverei ter feito gente rir, mas a cantar foi a primeira vez. Mas a lembrança teria de incluir o meu amigo JdC, que já não está entre nós, e que foi de uma amizade inexcedível num período mais difícil da minha vida. No final deste mês escreverei sobre ele; por agora fica esta pequena lembrança.

JdB

***

Hoje, mas há um ano, mais dia menos dia, chegava ao Zimbabwe para aí permanecer dois meses. Preparava-me para uma travessia longa - não só o percurso aeronáutico, como também a duração da estadia, além do estado de espírito com que me atirava à jornada. Dizer que adorei lá estar não traduz, nem pouco mais ou menos, as lembranças que me ficaram desse tempo - o fascínio de uma África que eu só imaginava, o conhecimento de gente com quem faria facilmente amizade, uma vida ao mesmo tempo intensa e sossegada que me foi fundamental. Durante estas próximas semanas relembrarei, aqui e ali, episódios mais interessantes desse Verão. Hoje, deixo-vos com o excerto de uma crónica que escrevi sobre sobre a minha primeira experiência de Karaoke. Fica também a toada que atirava toda a gente para a pista de dança.

Adeus, até ao meu regresso...

(…)
Ontem, pela hora de jantar, éramos cinco à volta de uma mesa redonda no Pointe, um estabelecimento de diversão nocturna propriedade do Sr. Quintas, que assegura ter sido, em tempos mais idos, o cantor romântico de maior sucesso na África Austral.

Posso assegurar que foi o local mais interracial que conheci em toda a minha vida: encontrei angolanos, locais brancos e pretos, portugueses, um médico da ex-Jugoslávia, um advogado grego, alemães, brasileiros, iranianos, gente da polícia, indianos, diplomatas, pessoas com ar de leste, homossexuais, um chinês e tantos outros cuja proveniência me é desconhecida.

O estabelecimento serve jantares (classificado, no Michelin que me habita os sentidos, como satisfaz / satisfaz pouco). É um restaurante arquitectonicamente algo degradado, esteticamente indefinível, com pormenores curiosos: no cimo da parede, junto à sanca, um friso de lâmpadas verdes e encarnadas brilha em contínuo, revelando um nacionalismo iluminado; nas paredes, quadros diversos, variando entre o impressionismo, marinhas inglesas, tapeçarias ou óleos locais pendurados sem rigor de esquadria nem de cota; a um canto, um sistema traiçoeiro electrocuta insectos esvoaçantes num ruído de fritura; ventoinhas diversas e em profusão, lutando contra a estagnação dos aromas; no topo do salão principal do estabelecimento, dois semáforos grandes, projectando sem qualquer regularidade uma luz avermelhada forte. Indaguei, curioso, se estaria relacionado com algum código entre patrão e empregados, um morse luminoso que agilizasse o serviço, apressando a rotação das mesas. A resposta de um dos meus colegas de repasto veio imediata:

- não! Indica apenas casa de banho cheia…

Perguntar-me-ão, então, o que lá fui fazer, o que leva ao Pointe todo o mundo de Harare, sem qualquer distinção do que quer que seja. Eu explico numa palavra simples – mas demolidora: o karaoke! Na realidade, é esta espécie de semi-playback com legendas que impele dezenas de pessoas, todas as 6ªs feiras para, à volta de uma feijoada, de uma garoupa, de um chicken piripiri ou, simplesmente, de uma cerveja, se divertirem até ao limite da (sua) decência.

A sala não estava ainda quente – embora cheia – e já eu me abalançava para o primeiro teste, sabendo que o clima mundial se altera quando canto. Olhei para uma lista infindável de canções e não encontrei o Requiem de Mozart, espécie musical onde me sinto como peixe na água. Optei por uma toada que conheço, que tem uma letra (na minha imaginação, “assexuada”) que se adequa aos vários mundos em que vivo e que permite aos espectadores cantar em uníssono com o herói que se chega à frente: Che sera, sera.Quando dei por mim, era um artista no palco, com 1,86m, barbudo, um peso a rondar (para cá ou para lá) os três dígitos, pronto a enfrentar o possível arremesso de loiça e de vegetais sobrantes. Quando dei por mim cantava, simplesmente:


When I was just a little girl
I asked my mother, what will I be
Will I be pretty, will I be rich
Here's what she said to me.


Imaginei nos espectadores aquele olhar de espanto que antecede o do nojo ou da fúria – ou simplesmente o da estupefacção. Não sei se terá sido um sonho, mas o facto é que supus alguém, ao ver-me cantar uma música de mulher, a gritar da penumbra do salão:

- canta o like a virgin…

No fundo, dentro de nós vive um cançonetista em permanência, pronto a emergir ao menor sinal de despudor, de descontracção – ou excesso de vinho. Percebi, aos 50 anos, que quem habita o meu canto esmagado de entertainer se chama Doris Day…É isto, meus amigos. O karaoke levou-me, mais tarde, a enfrentar o la bamba e o obla di obla da num dueto de amigos e no recato da mesa.

Entre séries de voluntários (JdC levou uma multidão ao rubro entoando o Here comes the Sun e o Like a Rolling Stone) havia música diversa, para animar uma pista sempre cheia, mista, onde ocupei o meu lugar com a ligeireza que Nosso Senhor me quis dar. No espaço de um instante dançava com gente local e desconhecida uma toada sul-africana, sensual, batida, que me levou ao encanto de uma escultura dengosa e próxima – muito próxima, mesmo - que se contorceu com o à-vontade de quem tem estes sons dentro de si. Entre mim e ela chegou a haver, apenas, os meus óculos de meia-lua. Posso arrimar-me na dança com quem não conheço, roçar o corpo por uma beldade local, mas o facto é que já não vejo bem ao perto. 


* publicado originalmente a 6 de Outubro de 2009

06 agosto 2025

Rei de Copas *

 

(imagem retirada da net)

Nota prévia:


Fujo do frio como o diabo da cruz. Gosto de calor, de roupas leves, de teses queimadas e de brisas mornas. Vou pois ter a honra de inaugurar uma nova rubrica de listas neste prestigiado blogue com o "top ten" dos maiores calores que apanhei até agora. Foram situações extremas, na maior parte dos casos muito desagradáveis e que só confirmam o adágio popular de que "tudo o que é de mais chateia". A classificação tem mais a ver com o incómodo de que me lembro sentir do que propriamente com a temperatura. Todas as situações aconteceram contudo bem acima dos 40ºC.
Os 10 maiores calores (no sentido literal) que apanhei na minha vida e onde

1º Khyber Pass (fronteira entre o Paquistão e Afeganistão)

Se relativamente à maior parte dos outros casos não me lembro da temperatura 
exacta que fazia, neste caso lembro-me bem. Quando saí do automóvel para 
participar numa cerimónia oficial ao ar livre o termómetro marcava 49 graus.
A região, terra de esconderijo do Bin Laden, de terrorismo e de todo o tipo 
de tráficos, é um lugar de uma beleza rara. Desolado, rude e extremo (no 
Inverno as temperaturas descem aos 20 graus negativos), transmite-nos 
simultaneamente uma sensação de encanto. Por lá passaram o Alexandre da
 Macedónia, o Gengis Khan e outros conquistadores mais modernos. Todos se
deram mal. Se calhar foi por causa do calor.



2º Bombaim (Índia)

Também aqui me lembro da temperatura que apanhei: 47 graus. E o pior é que
 às 2 da manhã estavam ainda 37 graus. Acrescente-se uma humidade a rondar os 
100% e temos a antecâmara do inferno. Tive ali a sensação de que o calor 
pode ser insuportavelmente opressivo. Disseram-me que estive lá na altura
pior. Que depois vêm as monções e que, com elas, vem a libertação. Só pode.



3º Manaus (Brasil)

Que me desculpem os brasileiros, mas Manaus é um buraco infecto, pegajoso e
irrespirável. Tem no entanto um povo muito simpático, um teatro lindíssimo e 
umas caboclas de fazer parar o trânsito. Foi importante no curto período em
 que teve o monopólio do comércio da borracha e os seus habitantes acham que 
vai voltar a sê-lo um dia com base nas riquezas ainda inexploradas da
 Amazónia. Tomei banho na piscina do hotel à meia-noite e sequei-me ao ar sem 
precisar de uma toalha. Tal era o calor.



4º Tete (Moçambique)

Moçambique não é propriamente um país frio, mas os moçambicanos consideram
 Tete o pior que lá há em termos de calor. Passei por Tete algumas vezes a
caminho do Malawi e pude confirmar os relatos dos soldados portugueses que lá estiveram em operações militares. Um autêntico forno, garanto-lhes, com 
temperaturas a rondar os 45 graus. Ao que parece, o trabalho nas minas de 
carvão da região é considerado um dos mais difíceis do mundo. Dentro das 
minas as temperaturas ultrapassam, e bem, os 50 graus. 



5º Nicósia (Chipre)

Quando o avião estava para aterrar no aeroporto de Larnaca (que serve a
cidade de Nicósia) o piloto informou que na capital de Chipre estavam àquela
 hora 44 graus. Lembro-me do bafo que entrou no avião quando a porta se abriu 
e lembro-me também da água da piscina do hotel ser quente ao ponto de não 
apetecer tomar banho. Na volta turística que dei pela cidade não houve 
igreja na qual não entrasse. Não por nenhum súbito acesso de Fé ortodoxa,
 mas porque eram os únicos sítios frescos onde se podia estar.



6º Sevilha (Espanha)

Sevilha é, segundo consta, a cidade da Europa que detém o record da 
temperatura mais elevada. Não estive lá no dia do record, mas os dias de 
Verão que lá passei deram para perceber que o calor faz parte integrante da
 vida daquela cidade. Nas horas mais quentes não se vê ninguém na rua, porque
efectivamente não é humanamente possível andar na rua. É uma espécie de 
Sibéria ao contrário. A minha mãe tentou andar 100 metros para apanhar um
 táxi e desmaiou.



7º Darwin (Austrália)

Haverá certamente sítios mais quentes no interior da Austrália, mas Darwin é 
seguramente a cidade litoral com temperaturas mais altas ao longo de todo o ano. Estive lá num Verão particularmente rigoroso e lembro-me concretamente 
do vento escaldante e das enormes dores de cabeça que provocava. A cidade
 mais próxima fica a 4 horas de avião. No meio apenas um enorme deserto de
 onde sopra o vento. Nos jardins públicos de Darwin vêm-se centenas de
 aborígenes alcoolizados à procura de sombras para curar as bebedeiras.
 Pudera...



8º Dubai (Emiratos Árabes Unidos)

Dubai tem o típico calor do deserto apenas temperado por uma ténue brisa
marítima. É o Algarve nos piores dias elevado à décima potência. No entanto,
 tudo lá é tão climatizado que se consegue estar vários dias sem se dar pelo 
calor. O pior é quando se tem que vir à rua durante o dia. Armei-me em
independente e resolvi caminhar do hotel até um centro comercial lá perto.
 Pensei que ia ter um treco. Fiquei completamente desidratado e, à chegada ao 
centro comercial, devo ter bebido alguns três litros de água.



9º Roma (Itália)

Muita gente já deve ter ido a Roma no Verão e sabe pois o calor que lá se
 pode apanhar. Lembro-me concretamente de um dia de Julho em que tinha umas 
horas livres entre duas reuniões e resolvi fazer turismo a pé, engravatado.
 Acabei por ter que ir a correr ao hotel tomar um duche e mudar de roupa pois
fiquei encharcado em suor. Lembro-me também de ter desligado o ar
 condicionado antes de adormecer e de ter acordado no meio da noite como se
 estivesse dentro duma sauna. 



10º Almodôvar (Portugal)

Que me lembre, foi em Almodôvar que apanhei o maior calor em território 
português. Vinha do Algarve para o Alentejo e parei para pôr gasolina. O 
termómetro do carro indicava 43 graus.




JdC

* publicado originalmente a 10 de Novembro de 2011

05 agosto 2025

Amar a imperfeição

 Ouvi aí umas duzentas vezes o poeta Tonino Guerra citar o verso de um monge medieval: «É preciso ir além da banal perfeição». É isso mesmo: a perfeição pode ainda ser um caminho que trilhamos pela superfície ou constituir uma ilusão que nos impede de aceder ao verdadeiro e paradoxal estado da vida. Levamos tanto tempo até perder a mania das coisas perfeitas, até nos curarmos do impulso que nos exila no aparente conforto das idealizações, ou finalmente vencermos o vício de sobrepor à realidade um cortejo de falsas imagens! «É preciso ir além da banal perfeição».

Lembro-me de um filme de Nanni Moretti, acho que é “O quarto do filho”, em que uma personagem, estando a viver um duro luto, se coloca a arrumar no armário as chávenas de chá. Percebe então que uma tem um lado partido. Tenta disfarçar o facto, colocando visível apenas o lado intacto. Mas ela sabe que àquela chávena falta alguma coisa. Aquela chávena é o símbolo da sua vida, da nossa vida, que ela e nós temos de aceitar e redescobrir continuamente. Acolher isso é uma condição necessária no amor e na amizade, no viver comum e na maturação pessoal que nos cabe fazer.

Há aquele mote de Samuel Beckett que, se o soubermos ouvir, derrama sobre os nossos embaraços grande luz. Diz assim: «Errar, errar de novo, errar melhor». O que é errar melhor? É saber que, no fundo, erramos sempre. Isto é: a perfeição encontrámo-la nos catálogos, mas não nos nossos gestos ou em nós próprios. O mais sensato é mesmo adotar a humilde sabedoria de quem procura conscientemente o melhor, mas sabe que o seu melhor ficará ainda aquém. O que podemos aprender é, pois, a semear, num trabalho de confiança, de desprendimento e simplicidade cada vez maiores. Jung escrevia: «o importante não é ser perfeito, mas sim inteiro». E para nós, o que é realmente importante?

Durante anos tive em casa um cartaz de uma peça de teatro infantil, de um grande autor italiano. Para saber falar às crianças como ele o faz, a gente percebe que se tem de apetrechar não apenas uma enorme habilidade, mas uma afetuosa esperança. Os miúdos sabem distinguir bem quem lhes fala para entreter ou quem realmente lhes quer comunicar uma verdade de coração. Este autor, chamado Gianni Rodari, é assim. Durante anos tive um cartaz seu com esta frase: «errando também se inventa». Olhar para aquela frase transmitia-me o ânimo e a leveza de que precisava.

A perfeição coloca-nos perante a realidade como se de um facto consumado se tratasse: se formos mexer, intervir, retocar ou alterar, sentimos isso como uma perturbação. Essa perfeição é estática. Existe só para ser admirada… à distância. A imperfeição, porém (e penso também naquelas que identificamos na nossa vida interior), é uma história ainda em aberto, que conta ativamente connosco. Na imperfeição é sempre possível começar e recomeçar. A imperfeição permite-nos compreender a singularidade, a diversidade, o real impacto da passagem do tempo, o traço dos seus vestígios. A imperfeição humaniza-nos.

José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira)
21.05.11

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