O QUE DISTINGUE OS HUMANOS
Segundo a famosa antropóloga norte-americana, Margaret Mead (1901-1978), o indício primordial da presença humana no planeta – dado distintivo da raça humana, recuando ao tempo do Homo sapiens – não está nos avanços técnicos proporcionados pela produção de novas ferramentas para caçar e combater, por formidáveis que fossem, nem no processo de sedentarização, que se encontra na génese da vida gregária. Em contracorrente com os outros académicos, a célebre investigadora feminista, que trouxe a antropologia para a ribalta, considerou como primeiro vestígio de humanidade o gesto solidário mais antigo de que há prova.
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Celebrizou-se, logo nos anos 20 no século passado, nos trabalhos de campo em Samoa, que deram origem ao seu livro «Coming Of Age In Samoa». |
Nesses primórdios de luta constante para extrair meios de subsistência no seio de uma natureza indomável, alguém partir um osso que afectasse a sua mobilidade era prenúncio certo de morte, pois o ferido costumava ser abandonado à sua sorte, para não pôr em risco o resto do grupo. Imperando a lei do mais forte e com maior destreza física, ninguém arriscava ficar a cuidar de um coxo. Ser ágil e veloz era condição sine qua non para escapar aos incontáveis perigos de um habitat hostil. Esse o motivo por que Mead qualificou de salto quântico na história da humanidade a descoberta rara de um fémur cicatrizado, pois redundava num acto heróico esperar quatro a seis semanas pela convalescença da perna partida, além de abrigar e alimentar o sinistrado.
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Um fémur partido e recuperado prova que alguém ficou a cuidar do ferido, resguardando-o em lugar seguro, trazendo-lhe comida, cuidando da fractura. |
Não por acaso, ao longo dos tempos, quem contraía doenças contagiosas – como a lepra, a peste, a cólera – era banido da comunidade, por motivos de saúde pública, vendo-se obrigado a subsistir sozinho ou com outros companheiros de infortúnio. De facto, ao longo dos séculos, têm-se registado práticas sociais impiedosas, quando a sociedade se sente ameaçada. No início dos tempos, tal como hoje, ir além da reacção espontânea de sobrevivência, demonstrando uma compaixão que comporta risco de vida, sempre foi e será um gesto maior, que se eleva acima do feroz ciclo da natureza, da mera subsistência natural.
Foi, precisamente, esse gesto maior que Mead escolheu para datar o início da civilização humana, elegendo a descoberta arqueológica invulgar de um fémur de há 15 mil anos marcado por uma fractura cicatrizada, porque significava que alguém se sacrificara generosamente, correra perigo para abrigar um ferido. A resposta da antropóloga ao aluno, que a questionou sobre o primeiro acto humano conhecido na Terra, tornou-se viral (diríamos hoje) e antológica, até pela originalidade, bem nos antípodas da generalidade da academia sua contemporânea:
«O PRIMEIRO SINAL DE CIVILIZAÇÃO
Há anos, um estudante perguntou à prestigiada antropóloga Margaret Mead qual seria, na sua visão, o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga. Ele esperava uma resposta técnica — talvez ferramentas, cerâmica, armas. Mas Mead surpreendeu: "O primeiro sinal de civilização é um fêmur quebrado… e depois curado."
No mundo selvagem, um osso fracturado é uma sentença de morte. Um animal ferido não consegue fugir, caçar, buscar água. Morre sozinho. Porque na natureza, ninguém pára, ninguém espera, ninguém cuida.
Por isso, um fémur curado é uma evidência poderosa. Alguém viu a dor. Alguém parou. Carregou. Protegeu. Alimentou. E ficou ali tempo suficiente para que o outro se curasse.
Isso, para Margaret Mead, correspondeu ao início da civilização: o momento em que um ser humano decidiu que a vida do outro importava mais do que a própria pressa (e necessidade) para sobreviver, quando a compaixão superou o instinto, quando cuidar se tornou um acto de sobrevivência coletiva.»
Adaptado de artigo de Remy Blumenfeld
publicado na Forbes a 21 de Março de 2020.
Em sentido análogo, defenderam grandes teóricos de estratégia política que a força de qualquer grupo se mede pela força do elo mais fraco e pela sua aceitação do seio do corpo gregário. De certo modo, valida o raciocínio da célebre antropóloga, reconhecendo que o grau de coesão de uma comunidade humana também (mas não apenas) está correlacionada com o grau de compaixão. E vai mais longe, ao considerar que a capacidade de sobrevivência de uma comunidade – desde a escala micro, até à mais global – se pode medir pelo nível de integração dos mais débeis e improdutivos da sociedade. Porém, o mais interessante é tal conclusão não provir de um ímpeto magnânimo, per se, mas de uma observação lógica e pragmática, pois só as soluções mais justas resultam estáveis e duradouras.
Retornando à famosa antropóloga americana – premiada com a Medalha da Liberdade (atribuída postumamente, pelo Presidente Jimmy Carter, em 1979) pela sua luta a favor dos direitos das mulheres, nas décadas de 50 e 60 do séc. XX –, é reconfortante ouvir de investigadores da craveira de Mead a ideia de que os humanos se diferenciam dos outros seres vivos pelo grau de empatia, interessando-se pelo destino dos demais, a ponto de se disporem a dar a vida pelo outro.
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| Selo lançado pelos Correios norte-americanos, a 28 de Maio de 1998. |
Transcorrido tanto tempo desde o Homo sapiens, constata-se que nem tudo mudou, nem sempre se avançou. Numa lógica naturalista (de certo modo egoísta) valorizar alguém tornado improdutivo, visto como um fardo, continua a ser anti natura. Mas na linha de raciocínio de Mead este olhar configuraria um primitivismo sub-humano, uma vez que antropóloga só reconhece humanidade em comportamentos elevados, supra natura, como proteger alguém diminuído sob algum aspecto. Curioso e interpelativo ser uma estudiosa das civilizações ancestrais a associar grandeza ao rosto humano.
Desafiante é garantir que esses traços distintivos da humanidade persistem, na nossa época tão competitiva e quantas vezes a parecer regredir para os critérios mais básicos da lei do mais forte!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)