17 novembro 2008

SAUDADE

Adoramos ter coisas só nossas e sentimentos que mais ninguém consegue partilhar. Faz-nos sentir especiais, únicos, e até misteriosos. Vem isto a propósito da palavra saudade que aprendemos e ensinamos não ter tradução em mais nenhuma língua viva. Pura ilusão! Saudade tem tradução em todas as línguas presentes ou pretéritas e terá certamente tradução nas línguas que vierem a formar-se no futuro. Talvez as palavras traduzidas possam não ter o rigor da palavra original, mas conseguem seguramente representar o sentimento subjacente. A saudade é aliás um dos sentimentos mais intemporais e universais experimentados pelo homem.

Quando Ronald Biggs, o assaltante do comboio correio de Sua Majestade, que vivia num exílio dourado no Brasil a gozar o fruto do roubo, resolveu voltar para Inglaterra e passar os seus últimos anos de vida numa prisão, fê-lo porque estava derramadinho de saudades da sua terra e não queria morrer sem voltar a pisar solo pátrio.

Quando Vasili Mitrokhin, desertor do KGB, teve que enfrentar a vida em Inglaterra e os passeios nas pindéricas florestas britânicas, confessava para quem o queria (e podia) ouvir que morria de saudades das florestas russas. E acabou por morrer, coitado, dizem de tristeza e de saudades.

Quando o filho de Napoleão viu confirmada a sua prisão domiciliária no palácio de Schonbrun, entristeceu, definhou e morreu. O boletim de óbito indicava ter sido a neurastenia a causa da morte. Mas é evidente que foi a saudade.

Da saga escandinava à poesia trovadoresca, do folclore búlgaro à música sertaneja brasileira, da tradição africana à poesia persa, não deve existir manifestação cultural que não tenha a saudade como elemento central. Como o amor, a saudade é um sentimento unificador, que irmana o aborígena australiano ao yuppy nova-iorquino. Ao contrário do amor, é no entanto um sentimento negativo. Uma saudade como deve ser provoca dores físicas e pode mesmo levar à morte como se viu nalguns dos exemplos atrás referidos. Mas mesmo antes da morte, a vida deixa de existir quando só resta a saudade.

Curioso é que se podem ter saudades de lugares e situações que nunca vivemos. Eu por exemplo tenho saudades do Rio de Janeiro dos anos 60, da Paris do princípio do século XX, da Viena imperial do século XIX, do oeste americano do tempo dos cowboys, do Portugal do tempo dos Descobrimentos, da Europa feudal e dos tempos do início da Cristandade.

E poderão perguntar-me porque raio é que escrevi este texto. Naturalmente porque tenho saudades, muitas saudades.

J. Buggs

3 comentários:

Anónimo disse...

Escreveste este texto também para se conhecer a tua prosa, que está a afirmar-se ciclopicamente de semana para semana: então vc tinha talentos e não os revelava? Isso faz-se? Faz favor de nos ir surpreendendo sempre, ouviu? A prosa profissional ajuda a exercitar, não duvido, mas não há nada como um bom texto criativo, de vez em quando, para «fazer mão»! Seremos fiéis! Beijos com saudades fritas

Anónimo disse...

Sim, sou a RF! Da tribo, claro!

Anónimo disse...

não, não sou desta tribo,
sou da tribo dos que têm saudades, muitas, também do que já não há ou é
e dos que apesar delas, tentam que elas moam, mas não matem...

Abraço

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