“Certifico, por este meio, que a família Fritz foi inquilina do apartamento da Grolmanstrasse, nº 15, em Berlim Charlottenburg, desde o ano de 1938 até à destruição daquele prédio, em Agosto de 1943, do qual fui administrador. Durante todo esse período não pude constatar da parte do senhor Fritz, nem da mulher, nem dos filhos, que a família fosse simpatizante de Hitler. A família também nunca me cumprimentou com a saudação idiota (“Heil Hitler”), facto que sempre apreciei. Por estas razões, estou em condições de testemunhar a seu favor.”
Hans Mulka
29 de Maio de 1945
Naquela manhã do dia 29 de Maio de 1945, Gottfried vestiu o melhor fato e despediu-se da mulher com um beijo. “Vou registar-me. Não demoro”. Faltavam dois dias para acabar o prazo que obrigava ao registo obrigatório de todos os militares ou membros de forças de segurança junto das autoridades de ocupação. Durante todo o dia, as mulheres da casa espreitaram-lhe o regresso da janela. Depois no outro. E no outro.
Gottfried Fritz voltaria a Berlim quatro anos e oito meses mais tarde, em finais de Janeiro de 1950. Esse intervalo da vida, de que nunca falou, passou-o em dois campos de internamento, como lhes chamavam, à época, e o maior período, quatro anos e um mês, esteve no Campo Especial nº 2, ex-campo de concentração nazi de Buchenwald, transformado pelo comando soviético em campo de prisioneiros. Gottfried, ex-agente da Krippo, a versão alemã da polícia judiciária, foi um dos 28.455 homens e mulheres (cerca de mil mulheres, algumas acompanhadas de crianças pequenas) internadas em Buchenwald no pós-guerra. Nenhum deles foi julgado.
Cheguei a Buchenwald numa manhã fria e de céu encoberto. Um dia de Inverno, quatro décadas e meia depois de Gottfried ter partido com um livre-trânsito da Cruz Vermelha na mão e licença para apanhar um comboio de regresso a casa. Cheguei num desses dias em que o mundo fica da cor do chumbo e a terra parece suar em frio. Buchenwald está afundado em sombras. Onde os pesadelos tomam conta do ar. Primeiro, o pesadelo dos 50 mil que aqui morreram de fome, doença, maus tratos e puro assassinato às mãos dos nazis; depois, o dos sete mil, enterrados sem nome na floresta que se adivinha ao fundo, durante a administração soviética do campo.
Quase seis décadas depois, nada disto tem importância e importa ainda a muito poucos. Na Grolmanstrasse, nº 15, em Berlim, ergue-se hoje um edifício moderno, onde tem sede uma consultora imobiliária, com negócios centrados na Alemanha, em França, na Europa Central e de Leste. Hans Mulka, o administrador do velho prédio arrasado por uma bomba aliada desapareceu há muitos anos. O testemunho que escreveu naquele dia 29 de Maio de 1945, seria anexado, em 1950, ao processo de “desnazificação” de Gottfried, que viveu até aos 100 anos. Sobreviveu para ver o muro cair em Berlim e a Alemanha reunificada.
Este fim-de-semana arrumei papéis. Velhos papéis que herdamos um dia. E que um dia deixamos que nos contem histórias de uma história que intuímos, como uma recordação que nunca vivemos.
Lembro-me bem das mãos do meu avô. Grandes e ásperas como a vida. E que guardavam as minhas quando me levava de passeio pelos jardins do palácio de Charlottenburg.
Mónica Bello
6 comentários:
Lindo, Mónica!... Aqueceste-me a alma numa noite em que a julguei inaquecível! Rita Ferro
De como arrumar papeis antigos se pode tornar num exercício exemplar e resultar numa belíssima evocação. Sugestiva e tão actual...
De como se mantém estreita a ponte entre a condição de carrasco, por equívoca generalização, à real condição de vítima.E no sentido inverso, como estamos a testemunhar todos os dias.
Um conselho breve e egoísta: arruma mais vezes os teus papeis. Velhos ou não.
HN
Um excelente testemunho, abrangente e lúcido.
Continue a arrumar papeis!
fq
Vêmo-nos pouco... o que vale é que hoje em dia graças às novas tecnologias e aos mails dos mais atentos (recebi mail com link ao blog e informação que havia texto da Mónica) vamos estando em contacto. Gostei vou passar a ler. Gr Bj Maria Sá Fernandes
Belo texto, Mónica. Daqueles que nos aquecem a alma, como já disse a RF.
I have to write in English - I hope you can read this. Did the Gottfried Fritz of this story have a little sister named Edith who moved to the USA in 1923? Edith Frieda Fritz was my gradnmother and I am trying to find others in my larger family. Please write me at glinda0@yahoo.com. Thanks!
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