Ó velhos, vós que como os gatos vêdes no escuro
o que as crianças escondem, a distância
por dentro do silêncio, dai-me hoje
lembranças da doçura das manhãs de Julho
e dos vivos crespúsculos de Agosto.
Velhos, divinos velhos, como esquecer-vos?
E às vossas manhãs curtidas nas pedras dos rios
nas noites sinceras de luar?
Que sois cautos nos afectos ao tempo presente
e audaciosos no modo como interpelais fantasmas
numa cisma de amor, numa recriminação,
há muito o aprendi.
E sei que por detrás das vossas humildes máscaras
guardais ainda o segredo das rasteiras ao destino,
do lançar pedras contra os vidros do desalento.
Velhos, quem sois, onde estais? Porque vos escondeis?
Avançai, não temais o néon da incompreensão,
avançai por aqui, até ao proscénio do poema
senhora hortaliceira, senhor tanoeiro,
honrada leiteira, orgulhoso picheleiro;
funileiro e homem de contas
e, tu, ó habitante da mansarda,
entre os sós, poeta romântico.
Todos vós outrora fostes mui respeitados
e se agora, à distância de um postigo,
apenas criais laços com gatos,
pardais, nuvens e morreis pela calada,
tal não é verdadeiramente culpa vossa.
Por vezes, julgais ter errado todos os propósitos
de amor, com a excepção de um cão, um neto
ou um amor enquistado na memória;
qual o grau de verdade nisso não o sei.
Seja como for, este outro convite vos faço:
vinde hoje comigo fazer um carro de rolamentos,
pegar na gancheta, empurrar o arco, rua abaixo;
perscrutar as macieiras e as mãos da mãep
enteando o cabelo.
Como eu, muitos de vós, madrugais
para esperar o céu, um sereno fio de palavras,
a chegada do verão à praia da infância,
e aí nos rendermos ao culto de respirar
junto às rochas o iodo de deus.
Enquanto outros o fazem ao modo vareiro,
dando de comer a um periquito,
rejubilando com o caminho
que ainda têm para trás.
Ladinos, ó como sois ladinos, a reconhecer
a contrafacção dos risos dos netos,
que ainda assim cobris de lambarices e mesadas.
Velhos, soberanos escorraçados da beleza,
ouço-vos, falai comigo, ó meus amigos do coração,
pois sois peritos, mestres,
do meu país a riqueza inestimável.
Jorge Gomes Miranda in 'Velhos', edição Teatro de Vila Real, 2008
[um conselho: leiam-no depressa. lembrem-se das palavras de mário quintana, esse velho sábio: 'os livros não mudam o mundo; quem muda o mundo são as pessoas. os livros só mudam as pessoas.')
gi
As melhores viagens são, por vezes, aquelas em que partimos ontem e regressamos muitos anos antes
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