O segundo andar das traseiras foi, na altura em que me mudei para cá por causa do emprego, uma novidade extravagante. Tinha ouvido falar dos esquerdos e dos direitos, mas nunca dos de trás.
Não fiquei triste, a sério que não, duas tardes de equilibrista foram suficientes para me livrar de todo o verdete da marquise e, no fim da trabalheira, fiquei com vista para duas laranjeiras, mirradas pela sombra daquele poço esquecido entre prédios anónimos. Concluí sem pressa que ninguém, de entre todos os vizinhos anónimos empilhados à minha volta, se virava para aquele buraco e assumi, com assinalável alegria, que a escada de incêndio tinha sido ali colocada pela mão de alguém raro, com olho para o encanto das pequenas coisas.
Não fiquei triste, a sério que não, quando uma das janelas mortas dos segundos andares, a do prédio a norte, o único com acesso à escada que, todos os dias, me leva ao meu jardim bafiento, se acendeu num desassossego. Gosto de pessoas e sei fazer o meu silêncio mesmo em lugares onde o barulho não descansa. Para ser franco, não percebi ao certo quando é que as laranjeiras deixaram de ser exclusivamente minhas e passaram a ser um bem comum e, se não fosse o Carlos enroscar-se na cadeira com almofadas floridas que surgiu ao lado da minha, eu nem teria reparado nela.
Não fiquei triste, a sério que não, quando na semana passada o Carlos miou num sobressalto, acordando-me da minha leitura, porque o assustaste com a tua acesa discussão sobre coisas pesadas e dores entaladas, enquanto descias as escadas, numa distracção que quase te custou um tornozelo magoado, não fosse eu ter-me levantado para te receber, acabando por facilitar o amparo improvisado à pequena queda que deste. Agradeceste-me com os olhos e eu resolvi deixar o jardim para ti. Quando cheguei à marquise tentei não escutar, eu que sou tão bom a fazer silêncios, mas uma sensação que, a ser arrumada numa gaveta, iria para a mesma que a dos apartamentos das traseiras, a das novidades extravagantes, segurou-me a atenção.
Não fiquei triste, a sério que não, quando tive a certeza que choravas, enroscada na minha cadeira de pau, porque o Carlos havia ficado pela tua cadeira de primavera, num novelo de compaixão e tu, ou por indiferença ou por bondade, não o quiseste enxotar. Fiquei apertado por dentro, desconcertado e desvalido, conseguia ouvir cada soluço engasgado, e estremecia sem saber o que fazer, mas não fiquei triste.
Desculpa aquilo de ontem, disseste de olhos vermelhos, a meio da tarde de sábado, Não tinha reparado que estavas aqui. Sorri um Não há problema enquanto te sentavas ao meu lado. Ficámos muito tempo sem dizer nada. Não te preocupes, está tudo bem, já passou, começaste a dizer sem eu ter perguntado nada. Tinha um mundo de emoções estrangeiras atadas num nó, à porta da boca, e suponho que uma expressão interrogativa, porque continuaste, Adoptei este jardim sem saber que era teu, precisava de um lugar, agora que fiquei sozinha, Sabias que eu tinha escutado tudo e não estavas zangada, Não te importas? Sorri, não estava capaz de sequenciar palavras de forma lógica.
Hoje desceste com lanche para mim, Como haveria de me importar, vizinha? É uma alegria ter movimento por aqui, atirei-te eu, num descompasso do coração que até um tolo alienado conseguiria notar. Tinha-te espreitado a roubar laranjas, descalça, de manhã, mas nem os meu delírios mais ousados impediram que ficasse desarmado, Andei a roubar laranjas para te fazer um sumo! A conversa perdeu-se nas horas e eu dei por mim num remorso incontrolável, Não fiquei triste, a sério que não, expliquei-te eu. O teu silêncio fez-me cair dez vezes a altura daquele poço estreito e escuro onde, ainda há momentos, levitávamos contentes e só sosseguei quando me abraçaste. Não disseste mais nada até ires para casa e eu não consigo sair cá de baixo, com medo que me falhem as pernas.
ZdT
2 comentários:
Que bonito. É tão interessante a sensibilidade masculina!! Parabéns, ZdT. pcp
interessante é a facilidade com que a perdem :)
mas gostei muito texto, ZéDasTelhas. à sua!
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