13 fevereiro 2010

A Esperança de Margarida

Porto, 1965 - Londres, 2007. Um homem dificilmente definível, tantos os contrates e contradições que faziam parte dele. Um ser superior em coragem, sensibilidade e inteligência. Um homem excessivo. Ter-lhe acesso tanto foi um privilégio como um desafio (nalguns casos, uma provação). Curso de Direito pela metade, pensamento rasgado e límpido, foi autor de “Porto A'Abrir”, juntamente com Rita Burmester, no âmbito do Porto Capital da Cultura 2001, bem como de “Uma família do Porto”, uma viagem pela genealogia familiar. O conto em questão foi publicado postumamente e insere-se num livro, iniciativa de Rita Burmester, intitulado "Splendid Garage". Uma vida invulgarmente rica, verdadeiramente experimental, marcou todos aqueles que com ele se cruzaram. Morreu como viveu: com a cabeça erguida e a dignidade intacta.

***

A velha Condessa de Vivalma, naquele dia de Abril dentro, estava especialmente nervosa. No seu quarto, onde vivia sempre com uma sensação de desperdício de espaço, entre cadeiras Chippendale de pau-santo, espelhos de talha dourada e maples forrados com pássaros exóticos, flores e luas dispostos simetricamente como Poirot gostaria, procurava impaciente os brincos, a carteira, as chaves, o lenço e os óculos. O cabelo estava muito fino, caramba! Irritava-se com as bainhas do saia-casaco que não estavam bem, mas a Maria Costureira já andava nos oitenta, coitada! Hoje era dia de conferência vicentina em casa do Senhor Abade, como todas as terças, e os bolinhos de areia ainda estavam quentes para levar. Era uma receita secreta de família muito apreciada, e era-lhe mais grato ouvir elogios a eles do que aos feitos épicos dos seus antepassados, reais ou não. Estava tão nervosa que nem conseguia espetar bem o alfinete que segurava o chapéu. 

O mundo estava louco e os homens queriam ir à lua, onde só Nossa Senhora podia por os pés! A prima Piedade tinha deixado o marido e os filhos e tinha ido para Las Vegas com um artista de variedades que parece que cantava com um casaco de lantejoulas azuis ou prateadas, tipo corista mas em homem; havia outros homens assim em Inglaterra que não cortavam o cabelo; e as netas do caseiro usavam saias acima do joelho e queriam ir estudar para o Porto, para quê, meu Deus, para quê, se iriam para o campo a vida toda, iriam costurar, servir, ou qualquer coisa do género? O Senhor Abade estava raladíssimo com tudo isto, não entendia nada, achava que o fim do mundo estava para chegar. Todos estes problemas preocupavam em excesso a Condessa.

Enquanto endireitava as costas e lançava um olhar terno à fotografia do marido, como que a pedir-lhe protecção do céu, viu o venho Senhor Regaleira no jardim, de chapéu de palha e de avental vincado, entre o buxo e as rosas, as margaridas aos molhos e os amores-perfeitos perto do tanque, como se conhecesse cada flor pelo nome próprio. Regaleira, porque era a perdição das criadas velhas, um regalo para os olhos, diziam elas inocentes, perante a Senhora. Bateu então na janela e pediu-lhe com gestos já conhecidos de ambos que tirasse o carro da garagem. 

Ah, aquele carro novo que o seu procurador de Lisboa a tinha aconselhado a comprar, porque lhe acompanhava a dignidade e era material sólido, americano; era um pesadelo que tinha de enfrentar sempre que era preciso ir à vila, como hoje! Saiu do quarto e atabalhoadamente ia pondo as luvas enquanto arranjava os punhos pelo corredor, com o som austero dos tacões no soalho, amaciados de vez em quando por arraiolos e sempre sob os olhares austeros dos avós e bisavós nos quadros a óleo, cheios de brasões. A Rosa, a criada desde sempre que tinha sido criada consigo em casa dos seus pais, esperava à porta com um sorriso e com os bolinhos dentro de um avental com uma gola engomada, exactamente igual ao que tinha vestido há quarenta anos atrás. 

Agora a Condessa tinha uma empreitada: abrir aquela porta com uma mão de espessura e sentar a sua silhueta pequenina naquele imenso banco corrido. Abrir talvez um bocado o vidro e mais uma vez estamos na mão de Deus. Com o nariz colado ao pára-brisas da frente, acenou ao Regaleira e à Rosa que foi logo a correr para junto do lume escuro com brasas, rezar o terço para partilhar a aflição da Senhora, por causa do volante, das mudanças e essas coisas! E enquanto isso o Pontiac descia a estrada e serpenteava toda a Serra da Cabreira, sereno e solene por entre campos amarelos e roxos e árvores fortemente verdes até entrar na vila e parar exactamente em frente à porta vermelha do Abade Afonso Bento que às terças-feiras era especialmente mimado pelas senhoras respeitáveis da vila que lhe levavam sempre especialidades de novas experiências, absolutamente suculentas, obrigatório. A mulher do Doutor Marques desta vez com enroladinhos de chouriço; a Dona Adelaide Novais com barrigas de freira com mais amêndoa do que manda a receita; a Dona Deolinda Freitas com bolos de gengibre e de chocolate; a Dona Beatriz da Quinta das Camélias com tigelas e tigelas de marmelada algumas ainda com caroços dos dias em que se esqueceu de tomar o cadilium, o remédio da memória, que acabava por ser o que a tornava respeitável entre as suas pares! Os bolinhos de areia da Condessa eram indispensáveis, porque vinham do céu completamente e davam sempre um ar aristocrático ao lanche semanal. Eram herdados de alguém com sangue forte! 


Nota: Continua na próxima semana

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