Foi hoje, mas há dezasseis anos...
E eu rezava, baixinho: “é minha! É minha! É minha!”
Quanta vez, quanta vez, cansados de brincar,
Ficávamos a olhar um para o outro, a olhar,
Todos cheios de sol, ofegantes ainda...
Era feia, talvez, mas Deus achou-a linda...
E, numa noite, a minha alma, a minha luz morreu!
Deus, se ma quis tirar, p’ra que foi que ma deu?
Para quê? Para quê? *
Este pequeno texto fez-me companhia enquanto a minha alma ia escrevendo esta carta. Fala de perda, seguramente. Algo que é comum a tanta gente a quem as circunstâncias da vida amputaram um pouco de si próprio – um filho, um marido, um projecto de vida, uma carreira, um sonho, uma dignidade.
Sabes, desde há muito que acredito, com aquela convicção de que se revestem as ideias intangíveis, que a essência das coisas não está, verdadeiramente, naquilo que nos acontece. A alegria com que celebrámos o teu surgimento, hoje mas há dezasseis anos, não se pode quedar na satisfação universal com que sempre festejamos o nascimento de uma filha; na mesma ordem de ideias, a tristeza com que lembramos a tua partida não se pode limitar ao sentimento de uma dor maior que todos nós.
Por mais irónico que possa parecer, de ambos os acontecimentos pode nascer um milagre, se bem que ambos sejam explicáveis à luz de uma ciência disponível à compreensão de todos. Onde está, então, o acontecimento que espanta? Está, tão somente, na forma como agarramos os eventos e os colocamos no nosso coração. É por isso que creio, com uma força superior à de muitos medicamentos, que o assombro não está em ver o acontecimento - o nascimento ou a morte - mas em ver além dele. O milagre está no modo como vislumbramos o que os outros não conseguem ver, porque estão presos a uma obsessão pelos factos que desfoca o encanto da imaginação.
O pouco tempo que estiveste connosco ensinou-nos isso. Não vieste para ser, mas para revelar; não vieste para mostrar, mas para inspirar; não vieste como uma certeza, mas como um ensejo. E, no dia em que partiste, ninguém te levou, porque o teu destino não era ficar: seguiste de mão dada com o mesmo Deus que te trouxe até nós num dia quente de há dezasseis anos.
O nascimento e a morte dos outros, início e fim de uma caminhada sobre a terra, não são episódios sobre os quais devamos olhar com a distância da normalidade. São, isso sim, oportunidades. E, no entanto, muitos de nós repetem a pergunta angustiada do personagem. Mesmo que as palavras sejam diferentes, a raiva e o desalento são os mesmos. Porque razão mo deram, se era para mo tirarem? E Deus, que não é senão Amor, transforma-se em algo afastado, como um Amigo que nos traiu com o seu silêncio, a sua distância, a sua ausência. Muitos de nós olham-se ao espelho e, para além dos olhos cavados e húmidos, de umas mãos que tremem de fraqueza e saudade, não têm um vislumbre de esperança, algo que se perfile no horizonte como a aurora de um novo dia. A hipótese do milagre está lá mas atravessa-nos, como se não fosse mais do que uma aragem indiferente ao nosso vazio.
Tal como há um ano, a história do nosso passado vai sendo escrita, em doses nem sempre justas, com letras de dor e alegria, inspiração e cegueira. Continuamos a perseguir o milagre, aquele ponto no infinito que é igual para todos, se bem que uns lhe chamem felicidade e outros o Céu. Continuamos, talvez, a não identificar o caminho. Resta-nos saber que estás lá, paciente e amorosamente à espera, segura de que é o Amor que tudo cura, mesmo que seja nas palavras metafóricas de um personagem.
Afinal,
Foi esse anjo, ao morrer, que me fez Cardeal!
E eu hoje sirvo a Deus – a Deus, que ma levou. *
Foi hoje, mas há dezasseis anos...
JdB
* A Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas
10 comentários:
João, palavras sábias e cheias de amor, as suas. Á medida que lia o texto, dei comigo a acenar com a cabeça, para cima e para baixo, em sinal de total concordância. De facto, em todos os acontecimentos há um milagre por detrás. Compete-nos, a nós, procurar e vislumbrar esses milagres. A vida faz tão mais sentido! Quando me olho ao espelho, vejo para além das rugas, para além dos cabelos brancos e da pele sem brilho e por isso gosto do que vejo, não desanimo.
A sua força, esperança, perseverança e enorme fé são um alento para nós, um exemplo de vida a seguir. Obrigada por partilhar connosco momentos de tão grande intimidade.
Maf
Mais que perfeito: nas conclusões, na partilha, na serenidade, na aceitação, na Fé. Um texto que vou guardar. Porque partindo numa experiência pessoal, é totalmente universal na forma como é transmitido. É como aqueles quadros dos grandes pintores (ou os grandes textos literários, ou os concertos que nos transportam): ficam para sempre. Este seu texto tem essa "qualidade". Obrigada e um grande beijo. pcp
Muito bonito, obrigada pela partilha, sobretudo quando andamos (quase) todos angustiados com a vida que temos, cheios de medo de perder aquilo que nem sequer é nosso, bem precisam de ser elevados a um estado de consciencia do que é esta incrivel experiencia de ser.
Sem mais palavras - porque uma partilha desta natureza é talvez uma janela para olhar para dentro!
Extraordinária esta partilha tão profunda e tão luminosa. Nem há palavras para lhe agradecer a forma espantosamente generosa com que vive e olha a realidade! Claro que o JdB faz totalmente parte do milagre e por isso teve-a e viu-a partir para depois voltar a reconhecê-la e tê-la para sempre... Obrigadíssima, MZ
João,
Li o seu texto de manhã cedo, talvez pelas 7, que me deixou de lágrimas nos olhos pela perfeição da escrita, serenidade, dor, tudo misturado num texto que inspira.
ML
Palavras de conforto que transmitem uma serenidade que só alguém com uma grande Fé consegue alcançar . Aquele ponto no infinito a que alguns chamam felicidade está lá bem junto dela e de outros que, tal como ela já partiram, mas que deixaram cá na terra bem presente o testemunho de um verdadeiro Amor . São muitos os caminhos cruzados, as estradas feitas em bocados, as vidas que Deus baralhou, mas o Amor dela é mais forte, e lutando contra a morte um dia Deus afinal nos juntou . Resta-nos saber que ela está lá, paciente e amorosamente à nossa espera…
João,
talvez um dias consiga verdadeiramente sentir como minhas as suas palavras, e não apenas comover-me com elas.
Sinto-me Marta, que já parou, mas que ainda está zangada e tem dificuldade de ir até Ele.
Parabéns.
Querido João,
Venho aqui celebrar o milagre e acreditar cada vez mais nestas suas palavras tão inspiradas e reveladoras. Só me apetece deixar a ecoar esta sua frase:"Não vieste para ser, mas para revelar; não vieste para mostrar, mas para inspirar; não vieste como uma certeza, mas como um ensejo."
Obrigada por nos ajudar a rezar.
Beijinhos
maf, pcp, Maria Ana, MZ, ML, Anónima, Fugidia, Arti Netoj: obrigado a todas pela visita e pelas palavras simpáticas. Ter-se uma fé tão esclarecida quanto possível não é um mérito. É uma sorte, talvez mesmo uma graça. Gente há, de entre quem comentou o post, a quem tenho de agradecer - e elas saberão quem são, até porque conhecem os caminhos cruzados desta vida. Às outras, a quem não tenho o gosto de conhecer pessoalmente, fica o agradecimento pela visita, que me honra sempre.
Um abraço.
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