Carlos era um homem reconhecidamente calmo, cordato, fugitivo de todas as discórdias estéreis, procurador incessante de consensos sorridentes e propiciadores de vitórias para ambas as partes. No emprego conheciam-lhe convicções - mas ignoravam-lhe teimosias. Sabiam que podiam contar com ele para resolver forma diligente e pacífica uma disputa, mesmo que alheia.
Todos se lembravam de uma semana terrível em que o carro do Carlos tinha sido roubado e vandalizado, a ponto de se questionar a sua utilidade futura. O arquitecto manteve uma atitude admiravelmente serena, alegando - naquele lugar-comum que pode ser desarmante - que há coisas piores na vida. Antes isso que partir uma perna... A resposta não exige o esforço da memória, mas deve ter sido semelhante quando se viu preterido numa promoção, ou quando deram um cliente importante a um profissional menos experiente. Tudo era encarado com uma aceitação e uma bonança de fazer inveja.
Tinha casado há 14 anos com a Verónica, sua colega de faculdade. Apesar do feitio caprichoso e conflituoso da mulher, Carlos levava-a bem, sem palavreado inútil - em termos de quantidade ou de volume. Era uma relação calma na vida pública, como o era também no remanso de uma noite de semana. Era-o, ainda, na intimidade do quarto, onde ele convertia a quietude numa lentidão extasiante de gestos e movimentos. Havia uma sensualidade toda feita de sossego na forma como ele se movia, percorria o corpo da mulher, a beijava, lhe atrasava os desejos de fim. Verónica acabava derreada, a suar, umas vezes a chorar de tensão libertada, outras vezes abraçada ao marido, como se ele fosse a único elo que a ligava à dimensão mansa que lhe anulava as tensões. Carlos sorria, e retribuía o abraço com outro mais forte.
Decidiram ambos que festejariam os 15 anos de casados no recato do lar, fora do bulício impessoal de um restaurante da moda. Um jantar simpático a dois, prenunciando uma noite escaldante ao som de velas aromáticas, óleos inebriantes e experiências novas. Verónica foi encontrá-lo no chão da cozinha, esgazeado e a tremer. O cenário era dantesco: pratos partidos e espalhados numa sementeira de cerâmica, uma peça de carne esfaqueada numa raiva assassina, copos atirados contra os armários, legumes desfeitos num destroçamento selvático, panos de cozinha furiosamente rasgados. À pergunta fomos assaltados? o arquitecto, que sempre procurava os consensos sorridentes, respondeu ofegante, perturbado, nuns olhos vidrados que fitavam o vazio: não puseste o champanhe no frigorífico...
JdB
2 comentários:
Oh que pena... a noite prometia...!!! Bjs e volte mais e mais com o seu estilo e humores inconfundíveis. Bjs. pcp
Mais um momento delicioso, mas como diria alguém que eu conheço, ele há coisas, tão aparentemente sem importância, que nos levam a matar ou a deixar morrer.
Boa semana JdB e volte sempre.
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