Desde cedo que a Sétima
Arte foi em parte capturada pelo
poder político, ciente do enorme alcance comunicativo desta forma de expressão,
que combina magistralmente som e imagem. Por isso, não se estranha que quase todos
os regimes ditatoriais (e não só…) dos países mais desenvolvidos o tenham utilizado.
Hitler foi dos líderes
que mais e melhor instrumentalizou as várias artes, apropriando-as como
bandeira da ideologia nacional-socialista. No cinema, Leni Riefenstahl é só a realizadora
de maior talento, carisma e fotogenia do regime, um sucesso que pagou caro no
final da Guerra.
Estaline também tem um
filme de propaganda marcante, rodado nos anos 30, com uma qualidade audiovisual
assombrosa. Tive a oportunidade de o ver numa exposição temporária sobre
propaganda política, no Museu de História da Alemanha (Fev. 2007 - Berlim), apresentada com o rigor e
detalhe germânicos. Inesquecível aquele arquivo do segundo quartel do
século XX. Como inesquecível foram as perspectivas sobre
a Praça Vermelha, no tal filme de entronização
do déspota soviético. A célebre praça impunha-se pelos pináculos coloridos da
lindíssima Catedral de S.Basílio e pela gente simples que a inundava. Sobressaíam
as expressões doridas, de aspecto desamparado – uma sensação habilmente acentuada
pelo manto de neve a cobrir tudo, açoitado regularmente por rajadas de vento,
que lançavam ao ar pesados turbilhões de gelo. O desconforto, tão expressivo, atingia
o próprio espectador nesses raids de
-30ºC! Dói ver rostos sulcados pela fome e pela escassez de toda a ordem, em camadas de sofrimento acumuladas há
gerações. À voz paternalista (e demagógica) do grande líder, a gente simples respondia
com um frémito filial e crédulo, a clamar pelo Pai do Povo. Percebe-se que muitos queriam mesmo acreditar. Precisavam,
desesperadamente! Seria dali que lhes viria a salvação? Hoje, sabemos a
resposta.
No outro lado do
Atlântico, de modo bem mais ligeiro e algo subtil, a Casa Branca também se
desdobrava em encomendas a Hollywood, sem cultos de personalidade, nem
exaltações populistas. Durante a Segunda Guerra, pretendia-se denunciar a
barbárie das Forças do Eixo, apoiar os soldados nas frentes de batalha, criar
simpatias a nível mundial e achincalhar
o inimigo, que dava azo a rábulas óptimas para o entretenimento de massas nas salas
de cinema de todo o planeta.
A Guerra Fria não aliviou
a pressão sobre Hollywood, apenas alterou o alvo… Tão pouco mudou o modus operandi dos norte-americanos, continuando
a privilegiar a abordagem positiva, cativante. Aliás, basta ouvir a música de
rádio num qualquer táxi à saída do aeroporto J.F.Kennedy para se embater nesta
boa onda do American way of life.
Em 1941-42, quando Roosevelt
precisou de congregar o apoio de toda a América Latina para a causa Aliada, especificamente
o Brasil justificou uma investida de charme produzida pelos estúdios da Disney.
O próprio desenhador demorou-se no Rio de Janeiro para se embeber dos ares
cariocas e realizar uma deliciosa curta-metragem –«AGUARELA DO BRASIL»(1) – da
série de título hispânico «Saludos Amigos».
Walt Disney a desenhar
num cenário privilegiado
Tudo roda em torno da
música e da alegria esfusiante do Zé Carioca, guia de luxo da Cidade
Maravilhosa e do ritmo afro-americano do samba. Quase se poderia dizer que duas
outras personagens contracenam com o Zé Carioca: por um lado, a beleza deslumbrante
das colinas na baia do Rio de Janeiro e, por outro, o som morno e contagiante do
samba «Aguarelas do Brasil», escrito por Ary Barroso, em 1939, que inspirou
o título do filme.
Cover
of the 1942 musical score of “Brazil,” with
lyrics in English, Portuguese and Spanish
lyrics in English, Portuguese and Spanish
É giro observar os
caminhos criativos da história, onde também pesam os pequenos reveses e os caprichos
pessoais, capazes de interferir no curso dos acontecimentos. Assim aconteceu a
Disney, quando em Agosto de 1941 se deslocou ao Brasil, integrado numa missão
oficial dos E.U.A., para cumprir a encomenda que o Governo lhe fizera. Zangado
por a banda do hotel onde ficara hospedado, em Belém do Pará, insistir em só
tocar toadas do seu país, Walt queixou-se ao jornalista que o acompanhava – Celestino
Silveira. Em face do protesto, a banda arriscou, ao piano, o novo hit de Ary Barroso, já muito popular no
Brasil e q.b. conhecido nos próprios Estados Unidos. Apesar de a execução ter
sido bastante sofrível (segundo consta), Disney apanhou-lhe a graça e quis aquela
música para acompanhar o seu Zé Carioca.
Com o apoio diplomático,
em menos de 24h agendou-se o encontro entre o realizador americano e o
compositor brasileiro, aproveitando um cocktail no Consulado dos EUA, no Rio.
Assim se fixou a excelente banda sonora do filme, que é uma autêntica filigrana
em versão animada. Tudo no filme flúi pacatamente, a começar pelo pincel genial
do desenhador. Impressionante, até pelo detalhe de cada cena, sem quaisquer
efeitos especiais, nem a facilidade dos computadores.
O novo herói de
Disney – o papagaio do Brasil.
Impera ali o
profissionalismo das terras do tio Sam, a par da forma estimulante de os
americanos proporem as suas causas, ao serviço de uma campanha de nome
inequívoco – Good Neighbor Policy Mission – e directamente
coordenada pelo U.S State Department, cuja comitiva (ao Brasil) incluía figuras
tão diversas como um realizador-produtor de cinema...
Naturalmente que na tela,
o Pato Donald e o Zé Carioca entendem-se às maravilhas, sob o céu quente e
luminoso dos trópicos, no ritmo contagioso do samba. À maneira dos EUA, os
protagonistas trocam cartões e mostram as suas habilidades um ao outro.
Estrategicamente, o Zé Carioca revela um encanto irresistível, só ultrapassável
pela elegância festiva das cariocas.
Magia dos desenhos de Disney,
que nos agarram logo ao primeiro
passo
Na cena final, num contraluz
de tons encarniçados, Donald ginga
animadamente na pista de dança, tentando acompanhar o balançar envolvente e hiper
musical de uma brasileira salerosa, a
deslizar, a flutuar por todo o salão de dança.
Esboços para o trabalhoso filme
Não se estranha que o filme
redunde numa homenagem generosa à boa vida e às belas gentes do Brasil. De
facto, fora concebido como manobra de sedução, destinada, não apenas às
autoridades, mas a todos aos cidadãos, numa política de aproximação clara entre
as populações dos dois países. Digamos que são os norte-americanos no seu
melhor, a promover tudo e todos: das pessoas aos produtos cariocas. De facto, o
samba de Ary Barroso entrou de imediato nos top
de venda, sendo rebaptizado nos EUA por «Brazil» e adoptado por Bing Crosby
(entre outros), a quem muitos atribuíram, erradamente, a autoria da canção. Assim
correu mundo, com inúmeras versões personalizadas, de Cármen Miranda a João
Gilberto, para além das interpretações anglófonas:
http://www.youtube.com/watch_popup?v=_mQHr8bAojU&vq=small
Sente-se quanto o filme
está impregnado da vitalidade e da alegria do Novo Mundo. Quem dera que o nosso
Velho Continente as interiorizasse com o mesmo entusiasmo do Pato Donald na sua viagem
de descoberta dos encantos do Rio…
que é como quem diz: de povos diferentes ou, simplesmente, dos
outros. No fundo, os votos de Bom Ano continuam a rolar, como diria o Zé Carioca!
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico,
para daqui a 2 semanas)
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(1) FICHA
TÉCNICA
Título original:
|
WATERCOLOR OF BRAZIL
|
Título traduzido
em Portugal:
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AGUARELA DO BRASIL
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Produção:
|
Walt
Disney
|
Banda sonora:
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“Aguarela do
Brasil”, de Ary Barroso (1939) na interpretação de Aloysio Oliveira,
Samba: “Tico
tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu (instrumental)
|
Duração:
|
8 min.
|
Ano:
|
1942
|
País:
|
EUA
|
Elenco:
|
José Carioca (voz de José Oliveira)
Pato Donald
(voz de Clarence Nash)
|
Local das filmagens:
|
Brasil, com especial incidência no Rio de Janeiro
|
2 comentários:
Sou fã do WD e não conhecia isto ou talvez não me lembrasse. Boa dica, como sempre.
Boa semana MZ
Aliás, é impressionante ver a quantidade de realizadores e artistas bons que alinharam com a causa aliada. Note-se que este filme é um contributo mto válido na guerra contra a barbárie nazi. Boa semana e obrig. pelos comentários, MZ
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